24 mar Previdência, DRU e desemprego, por Adroaldo Furtado Fabrício*
Como outros governos antes dele, o atual tenta convencer-nos de que a Previdência Social é deficitária. Essa é uma caixa preta das mais cerradas. Há cálculos para todos os gostos, geralmente chumbados por critérios contábeis escolhidos a priori para obter os resultados pretendidos. Não há como saber ao certo se a receita específica cobre ou não o valor total dos benefícios. Mas há algumas verdades bem sabidas.
Uma delas: historicamente, recursos destinados ao custeio da Previdência Pública sobejaram e foram desviados para fins outros, da construção da medonha capital faraônica à implantação de megausinas hidroelétricas, passando pela abertura de estradas como aquela onde os caminhões hoje atolam aos milhares. Um rio de dinheiro, cuja cor os segurados nunca viram e jamais verão, e cujo montante é hoje impossível avaliar.
Outra: a chamada desvinculação das receitas da União (DRU) veio a dar suporte jurídico formal a esse desvio sistemático de verbas. Mediante sucessivas emendas constitucionais (a começar pela primeira “emenda de revisão”, de 1994), foram introduzidas alterações e textos novos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para autorizar o Executivo a dar destinações diversas e livres a uma parcela de quase todas a rendas federais.
É aceitável modificar normas transitórias quase trinta anos depois de editado o texto original? Não sei; perguntem aos constitucionalistas. Das mais de cem emendas à nossa Carta Magna, pelo menos trinta miraram aquele seu apêndice. E, especificamente em relação às desvinculações, o Supremo já decidiu que elas são legítimas, desde que feitas por essa via. Foi assim que se destruiu a sábia rede de proteção criada pelo constituinte originário para as verbas sociais.
Até 2016, a liberação das receitas vinculadas podia chegar a 20% do total. Acharam pouco; agora o limite percentual subiu dez pontos. E o prazo de vigência (sim, continuamos a editar regras constitucionais pro tempore) é mais dilatado, até 2023. Não é de crer-se que, no futuro, o Poder Executivo venha a abrir mão desse confortável expediente, ou a reduzir o limite de sua aplicação. E há mais uma novidade: agora, também os Estados federados estão autorizados a desvincular receitas.
Sendo assim, sempre que se falar de deficit ou saldo favorável das contas da Previdência, algo terá de ser explicado sobre as desvinculações e seus reflexos sobre esses valores. Mas esse dado não tem sido sequer referido na vistosa propaganda oficial da reforma, ainda que (segundo informa o portal de notícias do Senado Federal) a participação das verbas previdenciárias no total desvinculado seja da ordem de 90%.
Outro aspecto sobre o qual silencia a volumosa matéria paga oficial é o da repercussão da reforma sobre o nível de emprego. Como é do geral conhecimento, o País atravessa um momento de dramática crise da empregabilidade, com índices preocupantes de desocupação da mão de obra. Não é preciso ser economista nem vidente para perceber que, com a redução imposta ao ritmo das aposentadorias, a saturação do mercado de trabalho aumentará, pois o trabalhador ficará mais tempo na ativa.
Aí estão dois temas vitais (e outros haverá), sistematicamente sonegados ao debate. Um deles relativo à essência, outro ao momento. Talvez algum tipo de revisão da previdência social seja mesmo imperioso, como se tem feito alhures e aqui mesmo. É imprescindível, contudo, que matéria dessa relevância passe por discussão séria, ampla e prévia com a sociedade, baseada em contas claras e informações precisas. O passionalismo de uma ofensiva publicitária que raia pela chantagem não é o melhor caminho.
* Adroaldo Furtado Fabrício é Advogado, jurista e ex-presidente do TJRS.