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Nada mais atual do que o problema da vedação do retrocesso do social, por Ingo Wolfgang Sarlet

Nada mais atual do que o problema da vedação do retrocesso do social, por Ingo Wolfgang Sarlet

Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 24 de março na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur

Definitivamente, há temas que não perdem sua relevância e atualidade. Dentre esses, a proteção social e os assim chamados direitos sociais seguem na agenda política e jurídica e, mais do que nunca, escancaram sua fragilidade e a dificuldade de serem assegurados em níveis condizentes com uma existência digna e de modo a assegurar padrões razoáveis de igualdade material, o que nem sempre se revela como conciliável. Aliás, no cenário brasileiro, tal quadro se revela muito evidente e impactante, em especial quando considerados os indicadores sociais e econômicos e os níveis de desigualdade registrados.

Um dos setores recorrentemente sujeitos a reformas e ajustes segue sendo o da Seguridade Social, particularmente no que concerne aos seus três eixos, designadamente a saúde, a assistência social e a previdência social. Reformas nesse setor verificam-se de modo generalizado em todos os países, sendo em geral necessárias e mesmo cogentes, sob pena de aprofundar distorções em vez de aperfeiçoar os sistemas e assegurar mais equidade.

Também entre nós não há como negar que algumas reformas se fazem necessárias e que existem importantes desajustes a serem corrigidos. Todavia, quanto à extensão e ao modo de promover tais ajustes, o encaminhamento dos projetos de emenda constitucional que atualmente tramitam no Congresso Nacional apresenta, como já vem sendo denunciado em diferentes meios, graves vícios de ordem procedimental e material, que desafiam amplo debate e reflexão crítica, bem como uma fiscalização pela sociedade e, eventualmente — como sói acontecer nesses casos —, pelo Poder Judiciário.

Da mesma forma, inevitável que reformas dessa natureza envolvam a garantia de um equilíbrio orçamentário e financeiro, ademais de serem necessárias ao estabelecimento e à manutenção de padrões mínimos de equidade entre gerações e de sustentabilidade.

Todavia, por mais necessárias que sejam as reformas, devem elas obedecer — ou, ao menos, deveriam — a padrões formais e materiais mínimos do ponto de vista político-jurídico e que em qualquer caso se situem no âmbito dos princípios que regem um Estado Democrático de Direito, tal qual projetado — nem sempre observado — pela Constituição Federal de 1988.

Dentre tais parâmetros despontam — em especial para os efeitos desta coluna — os da proibição de retrocesso social e da segurança jurídica, que, por sua vez, dialogam com outros princípios estruturantes, como os da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade e da sustentabilidade, ademais da imperiosa necessidade de corresponderem às exigências da democracia.

Dito isso, em caráter introdutório, para além do fato absolutamente questionável quanto à sua legitimidade democrático-constitucional de as reformas propostas pelo Executivo não estarem sendo expostas a amplo e informado debate público e controle social, chegando-se ao ponto de a publicidade da reforma da Previdência ter sido proibida na forma pela qual vinha sendo veiculada, precisamente por sugerir que já se tratava de uma reforma aprovada e configurando, no limite, propaganda enganosa, chama a atenção que da mesma forma outros princípios e direitos fundamentais, a prevalecer o conteúdo atual dos projetos de emenda constitucional, estão sendo flagrantemente violados.

Como a nossa intenção, ainda mais considerados os limites da presente coluna, não é a de proceder a um inventário exaustivo dos problemas e muito menos uma análise aprofundada dos mesmos, elegemos apenas dois aspectos, mas que se revelam de elevado impacto para determinados direitos e mesmo para a dignidade humana.

O primeiro ponto diz com a proposta de assegurar o benefício da assistência social (Loas) apenas para pessoas a partir dos 70 anos e desvinculado do valor do salário mínimo. Aqui chega a ser desnecessário maior gasto de massa cinzenta e mesmo soa intuitivo que se trata de dois pontos manifestamente inconstitucionais e que, assim se espera, sequer venham a ser aprovados pelo Congresso ou então sejam fulminados pelo STF em sede de controle de constitucionalidade.

A majoração da idade mínima para os 70 anos não apenas se mostra em evidente conflito com o parâmetro estabelecido para a aposentação (65 anos), como, independentemente disso, é incompatível com a média da expectativa de vida dos que fazem jus ao benefício, particularmente tendo em conta que se cuida de pessoas integrantes das camadas menos favorecidas da população, onde a expectativa de vida é, em geral, inferior à média, e a dificuldade de absorção dos cuidados com o idoso pela família, muito comprometida.

Além disso, mesmo que mantida a idade atualmente estabelecida, a desvinculação do benefício do valor do salário mínimo, salvo se fosse para mais, viola frontalmente a dignidade da pessoa humana no sentido da garantia de um mínimo de condições materiais para uma existência digna. Se tal objeção já se justificaria em relação aos valores praticados em termos de salário mínimo, manifestamente insuficientes para atender os critérios constitucionais expressamente fixados no artigo 7º da CF. Nesse sentido, basta lembrar que o valor do salário mínimo adequado para uma família composta de um casal com dois filhos seria superior a R$ 3,5 mil em fevereiro de 2017 (dados do Dieese). Ao mesmo resultado se chega tendo como parâmetro o montante de renda livre do Imposto de Renda, qualquer valor aquém do salário mínimo acabaria também se situando aquém dos níveis mínimos de proteção social.

Muito embora se reconheça que existem (e não poucas) situações nas quais o critério do mínimo existencial e o argumento da dignidade humana tenham sido manipulados de modo abusivo, no caso ora comentado o que se verifica é precisamente o inverso, ou seja, se o salário mínimo legalmente estabelecido já é objeto de corretas objeções, tanto mais qualquer valor que se situe abaixo desse patamar. Portanto, em sendo mantidas as previsões respectivas e promulgados os projetos de emenda constitucional na forma acima referida, estará sendo violado o núcleo essencial do direito fundamental à seguridade social e o próprio conteúdo essencial.

O outro ponto, que já foi objeto de manifestação em escritos anteriores, toca a questão da proibição de retrocesso, muito embora sua formulação genérica não dispense critérios específicos de aferição da inconstitucionalidade da supressão ou mesmo da restrição a direitos fundamentais, sublinhando-se que a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial constituem dois dos mais importantes parâmetros para aferir se um ato governamental incide na proibição.

O que se pauta aqui é o fato de que a segurança jurídica é também um critério geral para o controle dos atos do poder público de modo a assegurar a proteção dos direitos adquiridos e mesmo das expectativas de direitos, ainda que de modo diferenciado. Como expressão da segurança jurídica, a proteção à confiança legítima depositada pelos cidadãos no Estado. Por tal razão, e já de acordo com as exigências da proporcionalidade, qualquer reforma que afete direitos fundamentais, deve assegurar regras proporcionais. Dito de outro modo, isso implica tratar os desiguais de modo desigual, ofendendo também o princípio da igualdade.

No caso do projeto da reforma previdenciária, a prevalecer a versão inicial, no sentido de que quem contar com 50 anos de idade quando da promulgação estará submetido à reforma e às respectivas regras de transição, ao passo que quem contar com 49 anos (e 11 meses e 29 dias), independentemente do seu tempo de contribuição maior ou menor, ficará excluído das regras de transição, não há como lhe dar sustentação jurídica. Pelo contrário, a ser chancelado esse modelo, mesmo os que por alguns dias ou meses tiverem sido incluídos na reforma estarão literalmente condenados a trabalhar muitos anos mais do que aquele que tiver sido dela excluído.

Assim, pelo que se descortina, também essa reforma — mantidas as condições referidas — viola até mesmo grosseiramente a ordem constitucional, tanto no que diz com as exigências da segurança jurídica quanto no concernente aos princípios da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana.

Por fim, embora os pontos aqui ligeiramente tematizados sejam de fácil justificação e compreensão de sua substancial inconstitucionalidade, o que se buscou aqui é simplesmente cerrar fileiras com os que, de um ponto de vista jurídico-político, se posicionam de modo crítico em relação a aspectos importantes das reformas em andamento no Congresso Nacional, sem, contudo, deixar de reconhecer que reformas são necessárias desde que preservem o núcleo essencial dos direitos fundamentais e dos fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito.

Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito da PUC-RS, desembargador no TJ-RS, doutor e pós-doutor em Direito.