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Congresso Nacional trata soberania popular com descaso, por Ingo Wolfgang Sarlet

Congresso Nacional trata soberania popular com descaso, por Ingo Wolfgang Sarlet

Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 18 de agosto na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.

Quase 30 anos decorridos desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 segue forte (e mesmo fortalecida) a impressão de que o Congresso Nacional não leva de fato a sério os mecanismos de participação direta do povo na formação da vontade política nacional, ainda que esses tenham sido expressamente consagrados pelo Constituinte e mesmo guindados à condição de direitos fundamentais (artigo 14).

Aliás, tal constatação não demanda maior esforço, bastando apontar para a rarefeita utilização dos institutos do plebiscito e do referendum, mas também das dificuldades com o manejo da iniciativa popular legislativa, isso sem falar de outros sintomas que não envolvem tais mecanismos participativos, mas que dizem respeito à crescente insensibilidade de boa parte dos integrantes do Congresso Nacional com a opinião pública, em especial a abertura ao diálogo com a sociedade civil em época de crise e com reformas constitucionais de amplo impacto em andamento.

Mas o nosso foco aqui está centrado num problema em particular que, embora ainda em fase de cogitação e discussão, dialoga fortemente com o problema e poderá, a depender do encaminhamento, se transformar de fato em um problema, mormente na perspectiva jurídico-constitucional e política. Trata-se das recentes sugestões ligadas a eventuais ajustes no nosso sistema de governo presidencialista, de modo a mudar significativamente o seu perfil e mesmo de se implantar algum modelo de parlamentarismo no Brasil.

Um dos problemas que desde logo nos incumbe avaliar é o de analisar se (e em sendo afirmativa a resposta) como — do ponto de vista constitucional e particularmente na perspectiva do direito constitucional positivo — poderia ser legitimamente implantado o Parlamentarismo no Brasil.

Numa primeira aproximação já salta aos olhos (ao menos para quem faz algum esforço para ler — e enxergar — o texto constitucional) que o constituinte originário expressamente atribuiu ao Povo, titular da soberania nacional, a missão de — transcorrido um período relativamente curto (mais precisamente em 1993) — participar de um Plebiscito com o intuito de decidir sobre a manutenção da forma republicana de governo e a preservação do sistema presidencialista.

Aliás, a própria previsão, também no ADCT, de uma revisão constitucional tinha precipuamente a finalidade mais restrita (ao menos esta a posição da qual comungamos) a necessários ajustes no texto constitucional, de modo a promover as indispensáveis adequações no caso de aprovação da mudança da forma de governo (também questionada na ocasião) e/ou do sistema de governo para o parlamentar.

Que não foi assim que as coisas se sucederam é por todos sabido, pois mesmo tendo sido mantidas — por decisão popular — a República e o Presidencialismo, uma série de emendas constitucionais de revisão foi promulgada, ademais da acirrada querela em torno da incidência dos limites formais e materiais das emendas constitucionais estabelecidas no artigo 60 da CF e mesmo em torno da legitimidade da assim chamada dupla revisão, que aqui não é o caso de retomar.

O que importa para o momento é, portanto, recolocar em pauta um problema de alta repercussão teórica e prática, qual seja, se o sistema presidencialista de governo, uma vez sufragado — por delegação expressa do constituinte originário — por meio da decisão direta do Povo, mediante Plebiscito (portanto, por instrumento de participação direta que ostenta a condição de direito político fundamental e “cláusula pétrea”) se encontra blindado contra reformas constitucionais promovidas pelo Congresso Nacional.

A tese que aqui se sustenta dialoga precisamente com essa perspectiva e afirma a necessidade de o Congresso Nacional (o mesmo se aplica a todos os poderes constituídos) não apenas ser deferente para com a participação direta do Povo no processo democrático-deliberativo como superar a quase que completa indiferença e mesmo no mínimo implícita refutação do uso dos instrumentos de democracia direta (participativa) criados pelo constituinte originário e praticamente esvaziados desde então.

Já pelo simples fato de se tratar de decisão politica externada diretamente pelo titular da soberania (ao menos é também isso que está solenemente inscrito no artigo 1º da CF) eventual proposta de reforma constitucional destinada a alterar o sistema de governo para um modelo parlamentarista deveria ser submetida a consulta prévia (autorizando a medida) e ser referendada pelo voto popular para que seja legitimada também o projeto aprovado pelo Congresso antes da promulgação.

A situação se revela ainda mais delicada se considerarmos, como de certo modo já anunciado, que a manutenção do sistema presidencialista por força de decisão livre e soberana do titular da soberania (e, portanto, do titular do próprio poder constituinte), já por esta razão mas também por se cuidar de decisão política fundamental, passou a assumir a condição de limite material à reforma constitucional, sendo assim vedada até mesmo a deliberação, no âmbito do Congresso, a respeito de tal alternativa.

Assim, em se adotando tal ponto de vista, até mesmo a possibilidade de se convocar novo plebiscito sobre o tema é de ser questionada, porquanto o constituinte originário não deixou em aberta a alternativa de convocação de outra consulta popular direta, muito antes pelo contrário, limitou o plebiscito previsto no ADCT à deliberação sobre forma e sistema de governo e estabeleceu data específica para sua realização, assim como para a dai decorrente revisão constitucional.

Soma-se ao exposto — que aqui é lançado para instigar maior reflexão e contraditório — o fato de que uma proposta de tamanha envergadura e impacto, além de poder vir a constituir intensa intervenção na tradição constitucional inaugurada com a República (a fugaz experiência parlamentar no início dos anos 1960 foi abandonada também em virtude da robusta oposição popular), configura flagrante fraude aos propósitos do constituinte de 1988.

Ademais disso, a elevadíssima rejeição popular em relação ao atual Congresso Nacional e ao Poder Executivo (o que não afasta problemas de legitimação do Poder Judiciário), somado ao quadro de grande instabilidade econômica, social e política vigente no Brasil, ainda mais se o propósito for o de encaminhar a aprovar tais mudanças antes de novas eleições livres e regulares, indica que também por essa razão os legitimados para propor projetos de emenda constitucional deveriam pautar suas decisões por uma lógica do respeito e da deferência pela e para com opção tão crucial como a da migração do Presidencialismo para uma das modalidades de Parlamentarismo conhecidas.

O fato é que — por mais que cause desconforto admitir — a evolução constitucional brasileira republicana, a despeito de todos os avanços e conquistas assumidos e promovidos pela CF, revela que a efetiva consideração da voz do povo (mormente quando não está em causa a proteção das minorias quanto ao exercício de seus direitos fundamentais) ainda não logrou ocupar o seu devido espaço no nosso direito constitucional, revelando, ainda, a fragilidade do nosso Estado Democrático de Direito.

Não é à toa que mesmo no Brasil de hoje o recurso à opinião livre e diretamente exercida pelo povo, ou seja, a garantia da efetividade do direito fundamental ao exercício da democracia direta mediante os instrumentos constitucionalmente previstos e gravados de jusfundamentalidade, parece não encontrar a devida ressonância nos ouvidos de expressiva parcela da classe política eleita.