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Coluna quer mesclar informação com reflexão e fugir do maniqueísmo

Coluna quer mesclar informação com reflexão e fugir do maniqueísmo

Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Sarlet, publicada na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur desta sexta-feira (16/1).

Iniciar uma coluna sobre direitos fundamentais por si só já representa um desafio, dada a gama de possibilidades à disposição quanto à escolha do primeiro tópico a ser versado. Poder-se-ia, por exemplo, arrancar discutindo alguma decisão polêmica proferida pelo STF ou mesmo algum Tribunal Constitucional estrangeiro ou Corte Internacional (Corte Interamericana ou Tribunal Europeu de Direitos Humanos), avaliando-a de modo crítico. Também seria possível iniciar com uma análise histórico-evolutiva, para, na sequência, seguir apresentando de modo rigorosamente sistemático e estruturado do ponto de vista metodológico os principais aspectos de uma teoria geral dos direitos fundamentais e dos direitos em espécie, seja na perspectiva do direito constitucional positivo brasileiro, seja pela ótica do direito comparado e internacional, sempre buscando recorrer a exemplos. Enfim, não faltariam temas, todos relevantes e em ampla medida polêmicos, tudo com o intuito de captar a atenção e, quem sabe, atrair pelo menos alguns dentre os tantos leitores, cativos ou mesmo ocasionais, desse fantástico veículo de informação e formação que é o nossa ConJur, cujo seleto time de colunistas ora me foi dada a oportunidade de integrar.

Mas penso que, antes de seguirmos em frente, é preciso “mostrar a cara”, seja para efeito de oferecer algo que nos identifique e mesmo em certo sentido nos “desnude” perante a comunidade de leitores, até pelo fato de ser impossível desvincular quem, do quê e do como. Dito de outro modo, sem conhecer um pouco do autor, seu contexto, sua formação, enfim, algo de sua história e mesmo de sua identidade pessoal, talvez não se logre compreender as opções temáticas (o quê) e o próprio modo de apresentar e enfrentar as questões propostas (o como). Também esta coluna terá o perfil do seu autor e, quanto antes todos souberem disso, tanto mais cedo poderão evitar maior “contágio” ou, quem sabe (e é modestamente o que se espera), optarão por nos conceder um voto de confiança e eventualmente lançar um olhar sobre os textos que seguirão. Iniciemos, portanto, comingo, aliás, comigo (o Ingo) e suas circunstâncias.

A trajetória que nos levou aos direitos fundamentais (especialmente na perspectiva atualmente trilhada) nem sempre esteve claramente definida, mormente nos primeiros semestres do Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, onde desde cedo (1980) tivemos ocasião de travar contato com alguns mestres notáveis, como é o caso de Manoel André da Rocha, que, nas suas lições de introdução ao Direito, nos conduziu (não coagiu!) à leitura de clássicos como Gustav Radbruch, Giorgio del Vecchio, Miguel Reale, Karl Larenz, Karl Engisch, Angel Latorre, Hans Kelsen, dentre tantos outros, todos literalmente “devorados” por quem então contava 17 anos recém feitos. No Direito Penal fomos iniciados por Ruy Rosado de Aguiar Júnior, pela mão de quem travamos contato com gigantes como Aníbal Bruno e Nelson Hungria.

Mas foi no âmbito do Direito Constitucional e da Filosofia do Direito, já então animados e preparados para tanto, que começou a se delinear o caminho que viria a desembocar no exercício do Magistério Jurídico e na paixão pelos direitos fundamentais e temas correlatos. Foi nas aulas de Antônio Carlos Wolkmer, hoje titular da UFSC, que nos abeberamos nas fontes da Ciência Política, da Teoria do Estado, da história do constitucionalismo e da Teoria Geral da Constituição, bem como, mais ao final do curso, na introdução à Filosofia do Direito. As leituras de Carl Schmitt, Georges Burdeau, Paulo Bonavides, Pinto Ferreira, Pontes de Miranda, Maurice Duverger, Alessandro Gropalli, Georg Jellinek, Maurice Hariou, Michel Mialle, os clássicos da Filosofia Política, desde Aristóteles, Cícero, passando por Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu, Thomas Paine, O Federalista, Marx, Engels, Lassalle, Althusser, entre tantos outros, nos abriram os olhos e as portas para um universo que não apenas determinou a opção temática para o trabalho de conclusão de curso, versando sobre Maquiavel, O Príncipe e a Formação do Estado Moderno, orientado pelo mesmo Wolkmer e agraciado com a nota máxima (distinção) e posterior publicação (um capítulo na Revista Estudos Jurídicos da Unisinos, mais adiante a íntegra na Revista da Ajuris), trabalho escrito aos vinte um anos e com o qual também iniciamos a nossa trajetória como pesquisador e autor. Nessa quadra, os interesses estavam fixados prioritariamente nos temas referidos e os direitos fundamentais ainda não haviam ocupado a posição cimeira no nosso universo pessoal. Mas foi essa fase e as lições então auferidas que nos asseguraram alicerces sólidos e dos quais ainda fruímos.

Em 1986, por iniciativa mais uma vez de Antônio Carlos Wolkmer (e com isso aproveito a ocasião para de público agradecer e homenagear meu Mestre a amigo), ao cursar uma Especialização em Direito Político (onde travei conhecimento com ilustres professores do quilate de Antônio Cachapuz de Medeiros, Eduardo Machado Carrion e Ruy Ruben Ruschel), veio a oportunidade de, mesmo jovem, me submeter a concurso público de provas (dissertativas e orais) e títulos e concorrer ao cargo de professor auxiliar de ensino (na ocasião o primeiro degrau da carreira acadêmica) de Direito Constitucional (incluindo Teoria do Estado), tendo sido aprovado pela banca examinadora composta por Antônio Wolkmer, Eduardo Carrion e Ruy R. Ruschel. As aulas iniciaram já em agosto de 1986 (o que me evoca a lembrança de que me aproximo dos 30 anos de magistério jurídico!) tendo de início concentrado as turmas de Teoria Geral do Estado, migrando aos poucos para a Teoria da Constituição e o Direito Constitucional Positivo, precisamente por ocasião dos trabalhos da Constituinte de 1987-1988. Assim, a exemplo do que costuma divulgar, com seu humor agudo e inteligente, o nosso amigo e colunista ConJur de escol, Lenio Streck, como ele eu me sinto também de algum modo implicitamente recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Foi também então, dada a relevância dos direitos e garantias fundamentais na Carta Magna, que acabara de ser libertada das fraldas e ainda impregnada dos intensos debates que a antecederam e forjaram, que iniciou e frutificou a minha relação com o tema desta coluna. Às leituras já referidas em caráter meramente ilustrativo, somaram-se cada vez mais novas vozes e enfoques, inclusive uma crescente atração (respeitosa e cautelosa) em relação à dogmática jurídico-constitucional de matriz alemã, determinante de boa parte da evolução pessoal e profissional posterior.

O Doutorado em Direito na Universidade de Munique (Ludwig-Maximilians-Universität-München), iniciado em 1990, foi seguramente o próximo passo mais relevante na minha trajetória acadêmica, tal como o foi, em outro âmbito, não menos importante, o gratificante ingresso na magistratura no estado do Rio Grande do Sul, em 1991, aos 27 anos, o que, embora (me) tenha significado uma temporária suspensão dos estudos, por outro lado agregou imenso valor pessoal e profissional, ademais de propiciar a invulgar oportunidade de um permanente e, tenho a convicção, frutífero diálogo entre a teoria e a prática, seja quando na jurisdição criminal, seja no campo cível, bem como quando da passagem pela fazenda pública e agora também pelo Tribunal Regional Eleitoral, onde atuo como titular desde março de 2013. Além disso, a despeito da interrupção inicial, foi também com licença especial para aperfeiçoamento concedida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul — a quem de público mais uma vez agradeço — que pude, com a necessária dedicação escrever a tese e levar a bom termo (com média geral correspondente ao conceito magna cum laude) mais esta etapa.

A tese, publicada em 1997 na Alemanha, mas que não foi traduzida por opção pessoal, visto que a ideia era enveredar para uma nova publicação, versou sobre a Problemática dos Direitos Fundamentais Sociais na Constituição Federal Brasileira e na Lei Fundamental da Alemanha, cuidando-se de uma abordagem de direito comparado, especialmente entre um modelo aberto à positivação generosa de direitos fundamentais e uma prática política e econômica deficitária em nível de justiça social (Brasil), e, por outro lado, uma ordem constitucional refratária à inclusão de direitos fundamentais de justiça social no texto da Lei Fundamental, cuja realidade é a de um Estado Social e Democrático de Direito robusto e calcado em níveis de desenvolvimento social, econômico, político e cultural sólidos. A imersão que tal investigação me propiciou, em especial na dogmática dos direitos fundamentais, assim como o contato com a metodologia do ensino e da pesquisa jurídica alemãs, por si sós, fizeram valer a escolha da Alemanha e da Universidade de Munique para a realização do Doutorado, concluído ao longo de 1996, com a entrega da tese (mais de 600 páginas em alemão) em julho e a realização das provas orais em dezembro daquele ano.

Na sequência vieram outras pesquisas e publicações, com destaque para as monografias Eficácia dos Direitos Fundamentais, editada em 1998 e atualmente na sua 12ª edição, bem como o ensaio sobre a Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, que veio a público em 2001 e que está com a sua 10ª edição no prelo, igualmente pela Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre. Ambos os textos, seguidamente atualizados e ampliados, buscam aproveitar da melhor forma possível as fontes germânicas, referenciais nas duas áreas, mediante uma devida filtragem constitucional e sempre com a invocação de outras fontes do direito comparado. Alguns períodos de pesquisa no exterior ao longo dos anos (Instituto Max-Planck de Direito Social e Política Social, Munique, Universidade de Munique, Georgetown Law Center, Harvard Law School, Universidade Católica de Lisboa, STIAS-Stellenbosch Institute for Advanced Studies, Universidade de Hamburgo) asseguraram um saudável processo de revitalização acadêmica e de acesso à literatura indispensável também para a incursão por outras searas, como a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, politicas públicas e seu controle, o direito constitucional ambiental e a teoria do direito ambiental e temas ligados ao direito, à inovação e à tecnologia, tudo acompanhado de novas obras, como dão conta os livros em coautoria com Tiago Fensterseifer (Direito Constitucional Ambiental, pela Editora Revista dos Tribunais, em quarta edição, e os recentes Princípios de Direito Ambiental e Direito Ambiental: introdução, fundamentos e teoria geral, ambos publicados pela Editora Saraiva em 2014). Com o propósito de contribuir para a formação acadêmica e atuação profissional em termos mais amplos, cabe referir ainda o Curso de Direito Constitucional, cujas primeiras três edições (2012, 2013 e 2014) foram publicadas pela Editora Revista dos Tribunais, em coautoria com Daniel Mitidiero e Luiz Guilherme Marinoni, bem como os Comentários à Constituição do Brasil, cuja coordenação pude dividir com J.J. Gomes Canotilho (o grande inspirador da obra), Gilmar Mendes e Lenio Streck, contando com a decisiva participação de Léo Leoncy na coordenação executiva, obra que obteve o segundo lugar na premiação de 2014 do prestigiado prêmio Jabuti na área do Direito.

Quanto à atuação profissional, sobreveio (ao doutorado) a migração da Unisinos para a PUC-RS, duas Instituições de ensino superior comunitárias que primam pela seriedade e excelência, para o efeito de integrar o Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD), em 1998, e ministrar disciplina sobre Direitos Fundamentais na ocasião inserida na estrutura curricular e depois tornada disciplina obrigatória e geral para as duas áreas de concentração do programa. Na mesma ocasião veio a promoção por merecimento para a comarca de Porto Alegre, onde assumimos como juiz de entrância final e, na sequência, a promoção por merecimento para Titular da Faculdade de Direito da PUC-RS, onde atualmente também exerço a posição de coordenador do PPGD.

Com isso está pelo menos delineado sumariamente o “quem” e da mesma forma já se percebe a razão da escolha do temário desta coluna: Direitos e Garantias Fundamentais não só formam, junto com os princípios estruturantes, o cerne material da nossa Constituição Federal, mas também representam o núcleo essencial do autor e professor que aqui inicia quem sabe uma longa e produtiva jornada como colunista da ConJur.

Mas escrever sobre direitos e garantias fundamentais implica privilegiar certo (embora aberto) espectro temático, que, todavia, não é excludente de outros correlatos e com os quais há de manter frequente diálogo, como é o caso dos direitos humanos, da constitucionalização do Direito (Privado, Penal, Ambiental, etc.) a partir dos princípios e direitos fundamentais, da jurisdição constitucional e de seu papel na efetividade dos direitos fundamentais. Por outro lado, a opção pelos direitos fundamentais (o que ficará melhor esclarecido já na próxima coluna) importa a permanente busca de uma abordagem constitucionalmente adequada, o que, dito de outro modo, significa que por mais que se vá recorrer ao direito constitucional estrangeiro e ao direito internacional dos direitos humanos, o objetivo central é o de apresentar, discutir e avaliar os direitos fundamentais no direito constitucional brasileiro, seu conceito, conteúdo, significado, eficácia e efetividade.

Sabe-se, outrossim, que há também diversas formas de apresentação dos temas, todas legítimas desde que fiéis aos seus propósitos (do respectivo autor) devidamente informados e tendo como pressuposto a indispensável integridade intelectual. Nessa senda, a presente coluna buscará mesclar informação, reflexão e formação, tentando resistir a toda e qualquer forma de maniqueísmo, panfletarismo e fundamentalismo, dentre outros “ismos” indesejáveis. Os direitos fundamentais suscitam muitas paixões e não raramente atraem posturas extremistas e mesmo sectárias. Clamores por tolerância de um lado por vezes descambam em intolerância no sentido oposto, quando não em fundamentalismos justificados por supostos “politicamente corretos”. Mas é precisamente isso, reitero, que se pretende evitar, ainda que eventualmente isso possa não soar tão atrativo.

Nessa perspectiva, os temas das colunas que se seguem serão apresentados e discutidos de modo mais sereno, numa toada afinada com uma dogmática jurídico-constitucional não formalista, mas também não canibalizada por saladas de fruta filosóficas indigestas e resultantes da mistura de autores e leituras em si inconciliáveis, o que, felizmente, parece ser cada vez mais raro entre nós. Mesclando temas de teoria geral dos direitos fundamentais, que serão priorizados nas primeiras edições, com problemas afetos aos direitos fundamentais em espécie, tanto no direito brasileiro, quanto internacional e comparado, não se deixará de invocar e avaliar criticamente julgados pertinentes do STF e de outros Tribunais Superiores nacionais e mesmo cortes estrangeiras e internacionais. Tudo isso, contudo, sem abrir mão do compromisso de uma abordagem pautada pela proporcionalidade, que antes de ser também (e de modo controverso) critério de solução de conflitos entre princípios e direitos fundamentais, é representativa de uma postura marcada pela busca de uma justa medida e de uma prudência possível. Ao contrário do que por vezes se afirma, também aqui nos anima a ideia de que o caminho do meio não é necessariamente o caminho do “muro”, mas sim a trilha para a efetividade de um autêntico Estado Democrático de Direito.

Na próxima semana e com isso já anunciando a pauta dos seguintes encontros aqui no ConJur, discutiremos as noções de direitos fundamentais e de direitos humanos do ponto de vista de suas convergências, divergências e tensões. Despedimo-nos com a esperança de que a presente coluna de apresentação não tenha o efeito colateral de afastar eventuais leitores, além de agradecer aos amigos Márcio e Marcos, da ConJur, pela receptividade em veicular uma coluna sobre os direitos fundamentais e aos amigos e colegas Otávio Luiz Rodrigues Júnior, Carlos Alberto Molinaro e Jayme Weingartner Neto pelo estímulo e apoio nessa etapa inicial.