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Até que ponto se poderá falar de um direito fundamental de greve dos servidores?, por Ingo Wolfgang Sarlet

Até que ponto se poderá falar de um direito fundamental de greve dos servidores?, por Ingo Wolfgang Sarlet

Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 20 de outubro na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.

A greve no serviço público é, na perspectiva da Constituição Federal brasileira de 1988 (doravante apenas CF), um direito fundamental que já nasceu polêmico até mesmo quanto à sua própria condição de direito fundamental. Em parte, contudo, é possível afirmar que tal polêmica, notadamente quanto ao fato de se tratar de um direito fundamental constitucionalmente assegurado, acabou sendo resolvida pela CF, visto ter encerrado uma fase de proibição também da greve no serviço público, especialmente tal como estabelecido nas Constituições brasileiras anteriores, de modo a inaugurar, em certo sentido, uma nova era, não só em relação à greve no setor privado em geral, mas especialmente em relação à greve no serviço público.

Ainda em caráter introdutório, convém enfatizar que a CF, ao reconhecer o direito de greve no serviço público — e aqui se trata de aspecto elementar, mas não destituído de importância! —, o consagrou no âmbito do regime constitucional da administração pública, e não no título dos direitos e garantias fundamentais. Aliás, nem mesmo no capítulo dos direitos (fundamentais) dos trabalhadores, onde acabou sendo alocado o direito de greve do trabalhador na esfera privada, a greve no serviço público foi objeto de referência.

Essa diferença de localização no texto, como se sabe, não é necessariamente determinante para transformar o direito de greve dos servidores públicos em um direito especial, por via de consequência, sujeito a um regime jurídico-constitucional distinto. Por outro lado, não foi por acaso que a greve do servidor público foi contemplada em um capítulo próprio. É que o nosso constituinte realmente quis — ao contrário de outras constituições — contemplar o serviço público e a administração pública em geral com um conjunto de princípios e regras próprios, diferenciados. Portanto, criou um estatuto especial do serviço público e da administração pública no nosso texto constitucional.

Desde logo, à vista também das peculiaridades já referidas, assume destaque a própria discussão sobre a natureza do direito de greve dos servidores públicos, designadamente sobre a sua condição (ou não) de direito fundamental. Muito embora tal questão já tenha sido enfrentada pela doutrina e pela jurisprudência, cuida-se de aspecto preliminar e inarredável para a compreensão do conteúdo e alcance do direito de greve dos servidores públicos na ordem jurídico-constitucional brasileira. Em sendo positiva a resposta (o que, aliás, poderá ser antecipado e já está enunciado no próprio título do presente articulado), importa, por sua vez, examinar quais são exatamente as consequências jurídicas dessa condição de direito fundamental.

Uma terceira pergunta diz com o tipo de norma que está contida no artigo 37, inciso VII, da Constituição Federal, que consagra a greve no serviço público. Qual o âmbito de proteção objetiva e subjetiva desse direito fundamental e quais são os titulares desse direito? Há alguma interpretação restritiva em relação a alguma categoria do serviço público ser constitucionalmente ilegítima? Quais são os limites do direito de greve no serviço público? Por último, há que examinar, ainda que em caráter sumário, quais são os limites desses limites, ou seja, quais são os critérios que se pode utilizar para controlar eventuais restrições ao exercício do direito de greve, tal qual ocorre com qualquer direito fundamental.

Tais perguntas, que aqui indicam também o caminho a ser seguido ao longo do presente texto, já se justificam pelo fato de que a afirmação da condição de direito fundamental é, em geral (e pelo menos no Brasil é possível endossar tal enunciado!), acompanhada de um conjunto de prerrogativas que podem, a depender do sistema jurídico-constitucional, ser transversais, no sentido de serem comuns a todos os direitos fundamentais, onde quer que ele esteja sediado na constituição, mas também poderão ser diferenciadas, pois não é raro haver direitos fundamentais submetidos a um regime de proteção menos ou mais rigoroso, a depender da conformação de cada ordem constitucional concretamente considerada. Especialmente se olharmos para o Direito Comparado e mesmo Internacional, veremos que as respostas são mesmo bastante diferenciadas.

No caso brasileiro, contudo, a despeito de algumas controvérsias, prevalece, ao menos por ora, o entendimento de que os direitos fundamentais são submetidos substancialmente ao mesmo regime jurídico, em especial no que diz com sua força normativa e proteção. No caso do direito de greve no serviço público assegurado pela CF, foi o STF o responsável, após uma fase que se poderia designar como mais cautelosa (timidez não seria o termo adequado), por afirmar que o direito de greve do servidor público é direito fundamental de cunho instrumental, no sentido de que se cuida de direito que assegura as condições de lutar legitimamente pela efetividade de outros direitos, em sintonia também com o disposto no artigo 5º, parágrafo 2º, CF.

É claro que com isso não está afastada a possibilidade de discussão, especialmente se algumas categorias de servidores públicos estão impedidas de exercer o direito ou no sentido da legitimidade do estabelecimento de limitações mais rigorosas ao exercício do direito em determinadas circunstâncias.

Da mesma forma, resulta inequívoco que, a exemplo das demais liberdades fundamentais, o direito de greve, seja no setor privado, seja no público, não constitui um direito absoluto, infenso a limites e restrições, que, em regra, são veiculadas ou na própria CF, como é da exclusão dos militares (artigo 42), ou na legislação infraconstitucional e mesmo pela jurisprudência.

Aliás, não é incomum o entendimento (como é o caso de Jorge Miranda e Gomes Canotilho) de que, mesmo onde inexista vedação expressa, existe uma proibição constitucional implícita de que integrantes de órgãos de poder e determinadas carreiras de Estado (como juízes, detentores de cargos políticos, Ministério Público etc.) possam ser titulares de um direito de greve.

No caso brasileiro, contudo, tal exegese não se revela como cogente, embora também não possa ser descartado de plano, o que merece análise mais detida e não representa o nosso foco.

O que me parece muito mais adequado, como de certa forma já o fez o STF, é avaliar em que tipo de contexto se situa determinada função pública, qual o impacto que o não exercício regular da atividade, portanto, o exercício do direito de greve, causa a outros direitos e interesses fundamentais da população e até mesmo o nível de afetação do próprio funcionamento das instituições estatais. Assim, de forma tópica, com base numa rigorosa aplicação das exigências da proporcionalidade, é possível regular de modo adequado o exercício do direito de greve e os seus limites, haja vista que não se trata de direito absoluto, inclusive na perspectiva da própria normativa internacional.

A exclusão da titularidade do direito de greve para determinadas categorias, não se revela, salvo melhor juízo, em especial por decreto jurisdicional, a melhor solução. Mesmo para o caso dos agentes de Poder, eventual exclusão deveria passar por amplo debate e não dispensaria uma intervenção legislativa, ademais de em hipótese alguma poderem ser dispensados, mesmo para carreiras de Estado como a da magistratura e do Ministério Público, mecanismos efetivos e compensatórios de negociação coletiva, de acordo com a normativa da OIT.

É inegável que também e em especial no caso dos servidores se evidencia um agudo dilema, porquanto, ao passo que está como os trabalhadores da iniciativa privada, submetido a más condições de trabalho, perversas condições de remuneração, perseguição política, entre outras, por outro lado, encontra-se numa situação em que o não exercício do seu cargo pode comprometer severamente a estrutura de funcionamento do Estado, da própria democracia e dos demais direitos fundamentais. Por isso, quando se aplica a lógica de um controle de proporcionalidade, a doutrina tem dito que se trata de um equilíbrio muito difícil de obter em concreto, pois o que se busca é preservar o máximo de direitos de todos os lados envolvidos, entre a proteção dos direitos de quem exerce a greve — e quer proteger os seus direitos e com isso está buscando conquistá-los ou mantê-los — e a proibição de proteção insuficiente dos demais direitos em conflito.

Nesse contexto, é necessário aplaudir o STF quando passou não apenas a reconhecer ao direito de greve dos servidores públicos a condição de direito fundamental, como assegurar a sua imediata fruição a despeito da contumaz omissão legislativa no que diz com a regulamentação de tal direito. Ao mesmo tempo em que determinou, em regra, a aplicação do estatuto legislativo da greve no setor privado, o STF também reconheceu que greve no serviço público não pode ter, em toda sua extensão, o mesmo tratamento do que o verificado no setor privado, o que também harmoniza com o texto constitucional, já que não há como estabelecer plena simetria entre o ambiente público e o privado, pelo menos no que diz com os limites e restrições, posto que não há como confundir a condição em si de um direito fundamental, cujas normas são dotadas de aplicabilidade imediata e integram os limites materiais ao poder de reforma constitucional, com o plano dos limites e restrições.

Por outro lado, a depender da natureza dos limites e restrições chanceladas ou mesmo impostas pelo Poder Judiciário, em especial não respeitada a premissa de uma interpretação restritiva das intervenções restritivas e a estrita observância dos critérios da proporcionalidade e da salvaguarda do núcleo essencial, o direito de greve dos servidores facilmente poderá vir a ter esvaziada a sua condição de direito fundamental.

É por tal razão que a recente decisão do STF que, por maioria, declarou ilegítima a greve dos servidores civis diretamente envolvidos com a segurança pública (ARE 654432/GO, rel. min. Edson Fachin, red. para o ac. min. Alexandre de Moraes, julgado em 5/4/2017) atraiu, no nosso sentir, robustas críticas. Se é de fato exagerado afirmar que, com essa decisão se decretou o fim do direito fundamental de greve dos servidores públicos, é todavia preocupante que a nossa suprema corte esteja em ritmo de flexibilização crescente, tendo, no caso referido, deixado de considerar os estritos critérios de proporcionalidade, visto que, contrariamente aos policiais militares (onde, ademais, existe previsão constitucional expressa), os policiais civis não atuam, em regra, no policiamento ostensivo, mas, sim, na investigação. Portanto, entre os extremos, seria razoável que o STF impusesse restrições até mesmo fortes, exigindo o atendimento efetivo dos casos de urgência envolvendo crimes graves, manutenção de plantões, sanções pelo descumprimento de tais diretivas, entre outras, mas não impedisse pura e simplesmente o direito de greve. A vedação absoluta da greve (ainda mais não se tratando de agentes de poder) não apenas viola os critérios da proporcionalidade como chega mesmo a afetar o núcleo essencial do direito fundamental. Com isso, a depender da evolução futura, é mesmo o caso de se chamar a atenção para tal processo de relativização, pois a intervenção mais restritiva é, em regra, aquela que exclui por completo o exercício de um direito para um grupo de pessoas. Oxalá o STF venha a rever tal entendimento voltando a patrocinar uma jurisprudência mais equilibrada e afinada com a garantia de uma concordância prática (Hesse) entre os direitos e bens constitucionais em conflito.