25 maio Administração Pública em tempos de (neo)corrupção: tem que manter isso, viu!, por Leonel Pires Ohlweiler*
Na última semana, conforme o Jornal El País, a divulgação da frase “Tem que manter isso, viu”, aprofundou ainda mais a crise da atual Administração Pública Federal, sob a batuta do Presidente Michel Temer, com a divulgação de conversar mantidas com o empresário Joesley Batista, investigado por crimes de corrupção. A espetacularização promovida pela imprensa, não se pode negar, foi seguida pelo requerimento formulado pelo Procurador-Geral da República de abertura de inquérito contra o Presidente Temer, a fim de ocorrer a devida investigação por crimes de corrupção passiva e obstrução à investigação de organização criminosa.
A decisão proferida pelo Ministro do STF Edson Fachin refere o diálogo mantido entre o Presidente e o empresário, provavelmente no dia 07 de março de 2017, pasmem, no Palácio do Jaburu! É impressionante como não se leva a sério o sentido de bem público. Recordo que não faz muito, certo Ministro utilizou o espaço do gabinete para fazer uma sessão de fotos provocantes com a esposa[1]. Não há a menor dúvida sobre a necessidade de investigações sobre o caso amplamente divulgado, perícia nas gravações, juntada de documentos, inquirição de testemunhas, etc.
É preocupante, no entanto, como pouco a pouco se sente que o autêntico sentido de república foi para o ralo, e não é de agora. Perdemos a batalha? A Constituição salva, certo, mas o quanto já se fez em detrimento do surrado texto constitucional, cujo artigo 1º refere que o Brasil é uma república, cujos objetivos, dentre outros, são salvaguardar o bem de todos! Sim, também dos donos da JBS, mas o problema, caso os graves fatos relatados se confirmem, é que o capital de alguns grupos apropriou-se do espaço público.
Na lição de Maurice Hauriou, a Administração Pública, como instituição, destina-se a servir à utilidade pública, aplicação das leis e para a gestão do serviço público[2]. O ilustre professor refere que é difícil precisar a parte da missão dos entes públicos consistente em realizar a utilidade pública, considerando que se trata de definição variável no tempo e no espaço. Mas, foge de qualquer possibilidade de sentido, a mais importante autoridade da Administração Pública Federal receber no espaço público da residência oficial alguém com o alto grau de suspeitas por envolvimento em práticas não republicanas e tratar de assuntos tão sensíveis, para dizer o mínimo.
Quaisquer justificativas, palavras de ordem ou apelos emocionais, não são capazes de lhe atribuir qualquer compreensão de algo relacionado com o bem público dos cidadãos brasileiros.
Ainda que circunscrito ao contexto do conhecimento do campo do Direito Administrativo e com racionalidades próprias, vale a menção de Hauriou: “De ce point de vue, l’utilité publique doit être définie par ce qui est public, par opposition à ce qui est privé. Les intérêts privés même de forme collective sont essentiellement d’ordre économique. Ils ont trait à la production ou à la répartition des richesses, sans se préoccuper des répercussions que leur porsuite peut avoir sur la chose publique.”[3]
Muito embora as dicotomias gerem simplificações, o autor ressalta algo para pensarmos profundamente com tudo que ocorreu na Administração: precisamos resgatar o interesse público, que é do povo, dos cidadãos. Infelizmente, ao que tudo indica, os interesse econômicos alastraram-se e obnubilaram o fazer público. Aqueles que lutam de modo intenso contra tal estado de coisas sentem-se como refugiados institucionais, dentro do seu próprio país! Algumas notícias veiculadas, cuja investigação séria e constitucional deve ser aprofundada, indicam que o Grupo JBS nos últimos anos pagou cerca de R$ 400 milhões de reais em propinas a políticos e servidores públicos, cujas finalidades passam pela troca de favores em procedimentos públicos como licitações, aprovação de textos legais, pagamento de despesas pessoais, etc.
Verdade ou invenção para obter benefícios? O fato é que se aproveita da crise institucional e econômica para cada vez mais destruir o Estado e alguns lucrarem com isso. O Estado é uma construção, o detentor do monopólio da violência legítima, dos meios simbólicos e de tantas outras qualificações bastante discutíveis, mas é evidente que seus espaços institucionais há muito são utilizados para preservar o interesse de grupos, públicos ou privados. É preciso mudar ou “tem que manter isso, viu”?
A professora Susan Rose-Ackerman faz análise interessante sobre a corrupção, destacando que ela “ocorre na interface dos setores públicos e privados. Sempre que uma autoridade pública possui poder discricionário sobre a distribuição de um benefício ou de um custo para o setor privado, criam-se incentivos para que haja suborno. Desse modo, a corrupção depende da magnitude dos benefícios e dos custos sob o controle de autoridades públicas.”[4]
O conjunto de notícias veiculadas e investigações já realizadas indicam exatamente que há diversos campos de vantagens e custos relacionados com a res publica nas mãos e sob o controle de autoridades. Vejam a liberdade para a construção de emendas orçamentárias e o grau de patrimonialismo que ronda a lógica de distribuição de muitos recursos públicos. Um dos pontos cruciais hoje em dia reside em como emancipar a democracia de patologias corruptivas?
O número de operações já realizadas pela Polícia Federal não pode de fato surpreender, considerando as diversas oportunidades para ações consideradas corruptas. Algumas foram sublinhadas por Susan Rose-Aeckerman, partindo do seguinte pressuposto: “A demanda por serviços corruptos – ou seja, a oferta de subornos – depende do porte e da estrutura do Estado. Os subornos são pagos por duas razões: para obter benefícios do governo e para evitar custos. Uma estratégia anticorrupção eficiente deve não apenas reduzir os benefícios e os custos sob o controle de agentes públicos, como deve também limitar os poderes de que dispõe para alocar ganhos e provocar prejuízos.”[5]
Como sugere a autora, (a) o Governo compra e vende bens e serviços, além distribuir subsídios, organizar privatizações e realizar concessões. Tais atividades, especialmente quando permeadas pelo monopólio da informação por parte de agentes públicos e ausência de transparência, são incentivos para a corrupção; (b) não há dúvida sobre as limitações orçamentárias, reduzindo a escassez de alguns serviços, o que representa a possibilidade de um campo para que alguns tentem realizar pagamentos indevidos para que sejam os agraciados; (c)do mesmo modo, a Administração Pública edita atos regulamentares, arrecada tributos e aplica leis restritivas de direitos e sancionadoras. Aqui, os espaços para práticas corruptas surgem no sentido de autoridades utilizarem tais prerrogativas, ora para beneficiar, retardar, ora para incomodar empresas, possibilitando-se a aplicação seletiva da lei; (d)na esteira do quadro normativo do Estado, empresas igualmente podem pagar para obterem interpretações mais favoráveis ou julgamentos administrativos a seu favor, além de mancomunarem-se com agentes públicos responsáveis pela arrecadação de tributos.
O acima descrito foi um simples retrato da radiografia do poder, dos espaços de decisões que podem ser maculados por atos de corrupção. Dai não surpreende a cifra de R$ 400 milhões distribuídos entre agentes políticos e servidores públicos, nos termos do conteúdo das declarações dos representantes da JBS e que, com certeza, serão republicanamente apuradas. Aqui não se computam os bilhões de prejuízos aos cofres públicos decorrentes de outras ações contra o patrimônio dos cidadãos brasileiros e causadas por empreiteiras como a Odebrecht.
De qualquer modo é relevante explicitar o discurso da corrupção e compreender que ela ocorre nas relações entre elites econômicas do país e os detentores de poder público. É óbvio que o regime do capital não é responsável por todos os males do mundo, mas corrupção, subornos, fraudes de licitações e obtenção indevida de favores públicos possuem algo em comum: relacionadas luro, dinheiro e poder.
Construir alternativas como exacerbar transparências e controles, com certeza, é uma espécie de caminho, ao menos para aqueles que não querem cair no refrão: “tem que manter isso, viu!”
Notas e Referências:
[1] Vejam a coluna do dia 05/05/2016 intitulada O Sentido de Bem Público e a Mulher do Ministro. Qual o Problerma?, www.emporiododireito.com.br/o-sentido-de-bem-público.
[2] Precis de Droit Administratif et de Droit Public. 12ªed. Paris? Dalloz, 2002.
[3] Précis de Droit Administratif et de Droit Public, p. 59.
[4] A Economia Política da Corrupção, In: A Corrupção e a Economia Global. Brasília: UNB, 2002, p. 59.
[5] A Economia Política da Corrupção, In: A Corrupção e a Economia Global, p. 64.
HAURIOU, Maurice. Precis de Droit Administratif et de Droit Public. 12ªed. Paris? Dalloz, 2002.
ROSE-ACKERMAN, Susan. A Economia Política da Corrupção, In: A Corrupção e a Economia Global. Brasília: UNB, 2002.
* Leonel Pires Ohlweiler é desembargador do TJRS, Mestre e Doutor em Direito (UNISINOS) e professor e pesquisador do UNILASALLE. Artigo publicado no dia 25 de maio de 2017, no portal Empório do Direito.