12 jan Em artigo, magistrado propõe debate sobre reformulação do sistema penal
O magistrado, que integra a Direção da AJURIS no cargo de assessor da Presidência, fez um brainstorm abordando pontos como a revisão do sistema progressivo de cumprimento de penas, apontando a necessidade de prazos certos para a conclusão de procedimentos em cada uma das instâncias, assim como a elevação da pena mínima do crime de homicídio e a exclusão do uso de drogas do sistema penal.
Confira abaixo o texto na íntegra:
Brainstorm para a reformulação do sistema penal
Por Orlando Faccini Neto*
Os trágicos episódios de Manaus e Boa Vista, com os quais o país ingressou tristemente no ano de 2017, para além do descalabro de nosso sistema carcerário, confirmaram que, em termos de Direito Penal e Política Criminal, a discrepância de pensamentos que possuímos é imensa, quase a tornar írrita qualquer esperança de busca de consensos.
Entre aqueles que, diante da catástrofe evidenciada, preconizam a soltura irrefletida de presos, e os outros, que aplaudiram as mortes, afinal cuidar-se-iam de infratores, há, todavia, algo em comum: estão errados.
Meu objetivo, aqui, é meramente o de enunciar propostas neutras, desapegadas de uma ideologia que, em nossas terras, ao invés de iluminar, cega; propostas, seja dito, de caráter estrutural, e envolventes do sistema normativo criminal, porquanto sem um sistema normativo consistente a configuração da realidade dá-se a partir da pura força dos acontecimentos.
Antes, contudo, as premissas: as mortes de presidiários são fato lamentável, e que deve chocar-nos a todos. Se passamos, enquanto pessoas, incólumes ao teste da mortandade de homens, em geral jovens, à conta da violência e do assassinato, então talvez não valha a pena refletir, pois na pressuposição da reflexão está que sejamos minimamente pautados pelas boas intenções. Assim, o leitor que enalteceu a ignomínia havida está convidado a parar por aqui.
Aos que nos seguem, entrementes, vai a premissa segunda: cada morte matada de Manaus e Boa Vista está a requerer punição, e punição rigorosa, visto que a mutilação e a decapitação de cada uma daquelas pessoas, pelo fato de serem pessoas, exige a atuação penal do Estado, e isto, por si só, elide a posição confortável dos abolicionistas, que nada propõem, encastelados na crítica pela crítica, na paixão pela própria voz.
Agora, as propostas.
1. Precisamos prender menos:
(a) Há um contingente significativo de pessoas encarceradas, para as quais, na sentença criminal, estabeleceu-se uma pena substitutiva, de caráter restritivo de direitos. São os casos em que foram aplicadas prestação de serviços, limitação de final de semana ou prestação pecuniária, e que, não obstante, por decorrência do descumprimento da sanção alternativa, reavivou-se a pena privativa de liberdade.
É certo que a ausência de fiscalização dessas medidas contribui significativamente para o seu descumprimento, mas, apesar disso, em nosso quadro atual, se o magistrado anteviu a suficiência da medida alternativa, o seu descumprimento não deveria ter o efeito de fazer ressurgir, com toda força, a pena carcerária imposta.
Nossa proposta vai na contramão dos que, e são a imensa maioria, refutam penas curtas de prisão: as penas restritivas de direitos deveriam deixar de ter o caráter substitutivo, e serem, isto sim, a pena principal. Algo como, no furto simples, termos, como pena, a prestação de serviços comunitários por um a três anos, sendo que, se descumprida fosse essa sanção, fixar-se-ia uma semana, duas semanas, ou algo similar, de prisão, e ponto. Cumprida essa estaria o indivíduo liberado de amarras com o sistema.
Notem que, atualmente, se alguém é condenado a um ano de reclusão, e essa pena é substituída por prestação de serviços, o descumprimento destes implica em um ano de encarceramento.
(b) A liberação do indivíduo do sistema criminal em prazos mais curtos é decisiva. Por isso que devemos rever o sistema progressivo de cumprimento das penas.
Em boa medida, as penas altas, no Brasil, ostentam caráter meramente simbólico, visto que raramente a sua execução sucede pelo interregno fixado na sentença.
E pior, pois o indivíduo que passa do regime fechado para o semiaberto é lançado numa situação de completa esquizofrenia, dado que está preso e solto ao mesmo tempo, na medida em que realiza trabalho externo ao cárcere, obtém saídas temporárias, e, entretanto, retorna todas as noites e nos dias de folga para a prisão. Torna-se, destarte, massa de manobra de presos mais perigosos, ademais de incidir em frequentes faltas disciplinares, que levam a sucessivas regressões e novas progressões de regime, o que, por absurdo, faz com que os seus laços com o Estado subsistam por período muito maior do que o de sua própria pena. Por exemplo: progride, foge, passa um ano e é recapturado, regride, um tempo depois progride novamente, e o ciclo se repete, sem contar da inusitada situação de que muitas vezes comete novos crimes, de tal modo que temos, no Brasil atual, uma enormidade de delitos que são cometidos por pessoas presas.
Nossa proposta vai na contramão dos que, e são a imensa maioria, defendem a progressão de regime. Pensamos que é hora de um rebaixamento quase geral do patamar de nossas penas, as quais, porém, deveriam ser executadas sem qualquer cogitação de progressão.
Notem que essa proposta, somada à anterior, indica que, deveras, a segregação estará restrita aos crimes mais graves; contudo, nestes casos, a retirada da progressão de regime diminui o contato pernicioso dos encarcerados perigosos com o mundo exterior, e confere seriedade ao sistema penal, porque tanto a sociedade, quanto o próprio infrator, saberão qual a exata medida da sanção que haverá de ser cumprida.
(c) A segregação cautelar deve, efetivamente, ser excepcional. Para que isso aconteça, contudo, é preciso diminuir o tempo de tramitação dos processos.
Explico: há uma falácia, repetida por muitos, de que o país ostenta um índice de 40% de presos que ainda não foram julgados. Trata-se de falácia, porque este número alude aos presos provisórios. Só que, em nosso país, é preso provisório mesmo aquele que tenha sido condenado em primeira e segunda instância, com recurso negado no Superior Tribunal de Justiça e com embargos de embargos de embargos no Supremo Tribunal Federal. Ora, com este modo de empreender-se a conta, e dada a vastidão, sem precedentes no mundo, de recursos que temos, inevitavelmente será elevado o quantitativo de presos sem condenação definitiva. Nosso número de presos cautelares, sem sentença de primeiro grau, não é assim tão elevado.
Isto, contudo, não afasta o problema. Precisamos, realmente, intensificar o manejo das medidas cautelares alternativas, e precisamos compreender que, com a correta decisão do Supremo Tribunal Federal, a respeito da execução provisória, esvazia-se parcialmente o discurso de que as próprias finalidades da pena perderiam o seu sentido, quando necessário aguardar-se a imutabilidade completa pelo trânsito em julgado. Este interregno, doravante, será mais curto.
Nossa proposta, todavia, é a de que mesmo no caso de absoluta necessidade da prisão preventiva, sejam fixados prazos legais para a conclusão do processo em primeira instância e para o julgamento de cada qual dos recursos possíveis, a partir do decurso dos quais a minimização da cautelar seja impositiva. Na maioria das situações, a delonga imposta até o desfecho de um processo deriva mais da demora no julgamento de recursos do que na conclusão do processo em primeiro grau, de sorte que virtual alteração legislativa deve, ao modo como sucede em vários países europeus, contemplar essas várias fases do procedimento.
2. Precisamos prender mais:
(a) Se há um contingente de crimes em relação aos quais a atuação estatal é minimamente efetiva, outros, todavia, alcançam patamares inaceitáveis de impunidade. O paradoxo está em que, muitas vezes, isto se dá em detrimento dos crimes mais graves.
Quero falar apenas do homicídio. Sem qualquer contradição frente à proposta de redução geral dos patamares máximos das penas, para o homicídio impõe-se, a seu turno, uma elevação da pena mínima. Trata-se do bem jurídico de maior relevância, cujo nível de proteção penal, em nosso país, está francamente defasado.
Para mais disso, os processos pelo crime de homicídio são os mais delongados que temos. Este texto não permite aprofundar questões cruciais sobre um necessário revigoramento do Tribunal do Júri, cujo clamor por mudanças é inequívoco, mas um ponto, simples e relevante, não pode ficar à margem: ora, se temos júri, com competência constitucional e soberania, a tal ponto que suas decisões não podem ser alteradas pelo mérito por nenhum Tribunal, de duas, uma: (i) ou tornamos a decisão de pronúncia, proferida pelo juiz, irrecorrível, e assim atalhamos em vários anos o julgamento destes casos, ou (ii) se da pronúncia continuar cabendo recurso para o Tribunal Estadual, de cuja decisão se vai ao Superior Tribunal de Justiça e depois ao Supremo Tribunal Federal, para, só aí, realizar-se o julgamento, cuja decisão será suscetível do mesmo caminho recursal, ora, como dizíamos, se da pronúncia continuar cabendo recurso, ao ser condenado o réu em Plenário do Júri, acaso estivesse solto, dele deveria sair preso. Pois é evidente: se o Tribunal apreciou o recurso da pronúncia e disse haver indícios de autoria, sendo o réu condenado, obviamente que o mesmo Tribunal não proverá a apelação, neste caso cabível apenas se a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos.
Se deste jeito prestigia-se o sistema de Justiça criminal, pois é mesmo curioso ver alguns júris em que o acusado é condenado a mais de cem anos de prisão e sai pela porta da frente com os familiares das vítimas, também dá-se prestígio efetivo ao órgão julgador para o qual a Constituição Federal entregou a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Mas não achamos essa a melhor ideia; nossa proposta é a mais simples: tornar a decisão de pronúncia irrecorrível, atalhando o julgamento pelo Júri e mantendo, nos limites que lhe são próprios, a competência dos Tribunais de segundo grau, para o julgamento da apelação.
(b) O tráfico de drogas é um problema em separado. Razões de ordem constitucional e mesmo situadas no plano da moral, sempre nos levaram a defender, quanto ao uso de entorpecentes, a descriminalização. Não a legalização, o que é diferente. Descriminalizar significa manter no âmbito da ilicitude, mas não da ilicitude penal. De modo que as autoridades sempre teriam a prerrogativa de apreender a droga e estabelecerem multas graduais, como sucede quando violamos certas normas de tráfego viário.
Essa discussão, porém, parece despicienda. A rigor, no Brasil, atualmente o usuário não é preso, sendo-lhe fixadas medidas alternativas. O problema é o critério.
Ou seja, está no modo de distinguir quem é usuário de quem é traficante um dos problemas sérios que enfrentamos atualmente em nosso sistema penal.
Alguns países o fizeram a partir da quantidade de entorpecente com que se encontra o sujeito. É um método que apresenta virtudes, mas encerra uma questão tormentosa: com isso, surge o crime de tráfico presumido; pois qualquer pessoa que estiver com quantidade de droga superior à permitida será condenada como traficante tout court.
Deixar tal definição, por seu turno, exclusivamente no nível da discricionariedade dos juízes criminais tem produzido enormes distorções, sempre refutáveis quando comparadas situações similares decididas por juízes diferentes.
Nossa proposta, neste ponto, é radical, e precisa ser bem entendida. Ela possui duas premissas, quais sejam: (i) a de que o usuário não deve, em hipótese alguma, receber sanção penal, a tal ponto que para eles defendemos a descriminalização, e, por outro lado, (ii) de que o traficante de drogas deve ser punido com rigor, rigor que, seja dito, hoje em dia é uma raridade, frente à flexibilização da jurisprudência quanto à minorante do artigo 33, parágrafo 4º da Lei de Drogas, quanto ao regime de pena e quanto à sua substituição — no mesmo compasso dessa flexibilização veio, não tenham dúvidas, um exponencial aumento no número de indivíduos que passaram a dedicar-se ao tráfico de drogas.
Apontadas essas premissas, retomo a proposta radical: nos casos duvidosos, em que a condição do tráfico não foi cabalmente demonstrada, em que nada além do que a prova policial produziu-se, em que a vida pregressa do acusado, a quantidade de drogas e as circunstâncias da prisão não forem evidentes, nestes casos, a situação do que designarei como incerteza de tráfico de drogas deve receber o mesmo tratamento que preconizei quanto ao usuário comprovado, ou seja, deve-se afastá-lo, quanto possível, dos rigores da repressão penal.
Seguramente o desenvolvimento de protocolos para a atividade policial e a melhoria no aparato investigatório haverão de, com boa vontade, diminuir a incidência dessa zona de penumbra, que tem gerado a condenação, como traficantes, de muitos jovens brasileiros apanhados com alguma quantidade de drogas, por um ou dois policiais, que, ao fim e ao cabo, são as únicas testemunhas de um processo em que, de certo, o que se tem é a apreensão do entorpecente. É muito provável que as consciências tenham sido aplacadas pela aplicação de minorantes, regime aberto, substituição de pena, que, descumprida que seja, e assim unimos o laço deste tópico com o nosso início, no fim das contas implicam no ingresso do sujeito no sistema carcerário nacional.
Resumo:
O leitor haverá de criticar uma, algumas ou todas as nossas propostas. O debate é salutar e debate sério nunca é demasia.
Deixamos de lado as citações e notas, bem como as exemplificações, o que é natural num brainstorm.
Nossas propostas são:
(i) que para alguns crimes as penas restritivas sejam as principais, tendo seu descumprimento o corolário de um curto período de encarceramento;
(ii) que o sistema progressivo de execução das penas seja extinto e que a pena máxima de boa parte dos crimes seja reduzida;
(iii) que as cautelares alternativas sejam intensificadas, no que está pressuposta uma maior fiscalização, fixando-se, nos casos de prisão preventiva, prazos certos para a conclusão do procedimento em cada uma das instâncias;
(iiii) que a pena mínima do crime de homicídio seja elevada e que o rito do Tribunal do Júri seja revisado e modernizado com, no mínimo, a supressão do recurso contra a decisão de pronúncia;
(iiiii) que o uso de drogas seja retirado do sistema penal, bem como que o tráfico de drogas seja punido com maior rigor; a incerteza do tráfico resolve-se equiparando-a à primeira hipótese.
Excurso:
Quem matou e mutilou em Manaus e Boa Vista fê-lo à conta de uma responsabilidade individual que não pode ser obnubilada culpando-se uma qualquer estrutura. É apenas punindo quem age desta forma que o Estado revela, efetivamente, que dá importância à vida de cada uma das vítimas.
Mas a reformulação das estruturas, se não evita por completo o risco de repetição da ignomínia num mundo de homens imperfeitos, mitiga-o.
*Orlando Faccini Neto é doutor em Direito em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa, mestre em Direito pela Unisinos — Universidade do Vale do Rio dos Sinos e juiz de Direito no estado do Rio Grande do Sul.
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