01 fev Proibição e dissolução de partidos políticos na Lei Fundamental da Alemanha, por Ingo Wolfgang Sarlet
Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado
no dia 20 de janeiro na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur
O processo de radicalização que se tem verificado no mundo já há algum tempo, retomado depois de um período de relativa “calmaria”, ao menos em relação a determinadas partes do planeta, tem diversas causas e formas de manifestação. Com efeito, o incremento do terrorismo e do crime organizado, dos movimentos migratórios causados por problemas econômicos, políticos, religiosos, ambientais e por uma série de conflitos armados (com triste destaque para o caso da Síria), a crise econômica (associada, dentre outros aspectos, ao aumento dos níveis de desigualdade mesmo em países desenvolvidos e o crescimento do desemprego) tem transformado o nosso planeta num lugar cada vez mais difícil de viver.
Tais processos têm sido acompanhados (e, por sua vez, retroalimentados) por uma reconfiguração geopolítica de alta significação e impacto, cujos desenlaces ainda não são de todo previsíveis, mas que já se fazem perceber e são fontes de grande preocupação. Basta, para tal efeito, referir — em caráter ilustrativo — a saída da Inglaterra da União Europeia, o modus operandi adotado nos últimos tempos pela Rússia, assim como os pronunciamentos públicos do presidente eleito dos EUA, Donald Trump, que tomou posse nesta sexta-feira (20/1) e que tem causado intensa apreensão.
Particularmente relevante para esta coluna — e também conectada com os fenômenos relacionados — é o avanço gradual, mas firme, dos movimentos sociais, partidos políticos e mesmo governos com tendências reacionárias e situados no plano daquilo que se convenciona designar de uma extrema direita. O discurso xenófobo, protecionista e mesmo de cunho nacionalista tem voltado a se manifestar (não que tivesse desaparecido) de modo preocupantemente, inclusive representando grave risco não apenas para os processos de integração entre os Estados, mas também para a democracia.
Nesse contexto, o papel dos partidos políticos, que no campo das democracias representativas e da evolução constitucional se transformaram em estruturas onipresentes e articuladoras das relações entre a sociedade e o Estado, é essencial, podendo tanto assegurar e mesmo aperfeiçoar os regimes democráticos, mas também, a depender do seu discurso programático e modo de ação, contribuir para o esvaziamento e mesmo derrubada de determinada ordem democrática.
Por tal razão, alguns Estados optaram por prever — inclusive nos respectivos textos constitucionais — o instituto da proibição e dissolução de partidos políticos que atentarem contra a ordem democrática, justamente como meio de defesa contra movimentos radicais e antidemocráticos, que buscam, valendo-se dos próprios instrumentos disponibilizados pelo Estado Democrático de Direito (como justamente a liberdade partidária, o direito de manifestação, entre outros), justamente colocar em cheque e mesmo fazer ruir a democracia e suas instituições.
Dentre os países que previram um procedimento dessa natureza (proibição e dissolução de partidos políticos), situa-se a República Federal da Alemanha, cuja Lei Fundamental, no artigo 21 item 2º, prevê que mediante requerimento por parte do Conselho Federal (Bundesrat) — a Casa do Parlamento Federal que assume uma posição similar ao Senado —, da Câmara de Representantes (Bundestag) ou do governo federal, o Tribunal Constitucional Federal analisa e decide sobre a inconstitucionalidade e dissolução do partido político cujo programa e cujas ações forem tidas como atentatórias à ordem livre e democrática.
Nesse contexto, calha sublinhar que a razão histórica que motivou a inserção de tal disposição na Lei Fundamental (1949) reside precisamente numa tentativa de correção de evidentes fragilidades da Constituição da República de Weimar, em especial para salvaguardar o Estado Democrático de Direito de uma corrosão e mesmo desconstrução interna por parte de agentes e movimentos de natureza autoritária e manifestamente antidemocrática, como ocorreu, precisamente, com o Partido Nacional-Socialista.
De qualquer sorte, cuida-se de medida excepcional e acionada quando estritamente indispensável, já que do contrário também poderia ser manejada para o seu efeito contrário, inibindo fortemente a liberdade política e partidária e mesmo para afastar do jogo democrático-deliberativo formações partidárias tidas como inconvenientes aos interesses das grandes agremiações. Já por tal razão a Lei Fundamental prevê que o requerimento ao Tribunal Constitucional seja inicialmente deliberado no Parlamento, passando por um duplo controle.
Assim, ao longo de toda a história da República Federal da Alemanha, antes e depois da reunificação, o Tribunal Constitucional reconheceu a inconstitucionalidade e determinou a dissolução de apenas dois partidos políticos, formados na fase imediatamente posterior ao final da 2ª Guerra Mundial, num contexto marcado pelo início também da polarização entre o bloco soviético (socialista) em formação e o bloco formado pelos países ocidentais liderados pelos aliados que, juntamente com a União Soviética, saíram vencedores do conflito.
Cuidava-se, na ocasião, do SRP (Partido Social Imperial) e do KPD (Partido Comunista), ambos de caráter extremista (direita e esquerda) e com programas e ações políticas tidas como flagrantemente contrárias ao modelo democrático concebido pela Lei Fundamental. No caso, evidencia-se também — como já adiantado — o contexto de polarização que já se havia estabelecido na ordem mundial, mas também os precedentes do período que permeou as duas grandes guerras, onde a extrema direita (representada em especial pelo Partido Nacional-Socialista) e a extrema esquerda revolucionária (representada pelo Partido Comunista) se digladiavam com violência ostensiva.
Mais recentemente (2003), o Tribunal Constitucional Federal foi provocado conjuntamente pelos três órgãos legitimados para decidir sobre a extinção, nos termos do artigo 21, item 2, da Lei Fundamental, do Partido Nacional-Democrata Alemão (NPD), agremiação de direita, tendo rechaçado o pleito, na ocasião em virtude da violação de garantias essenciais ao Estado de Direito na obtenção de elementos para fundar a acusação.
Em 2013, foi então formulado novo pedido, agora apenas pelo Conselho Federal (Bundesrat), o qual foi objeto de julgamento pelo Tribunal Constitucional, tendo a decisão sido publicada na terça-feira (17/1). A decisão já tem gerado controvérsia, pois o Tribunal Constitucional novamente julgou a ação improcedente, desta feita adentrando o mérito propriamente dito.
Num primeiro passo, o tribunal admitiu que o NPD, que adota uma postura similar à do Partido Nacional-Socialista, de fato expressa e defende uma concepção política contrária à ordem constitucional livre e democrática, objetivando substituí-la por um Estado autoritário, nacionalista e caracterizado como uma comunidade etnicamente definida, de modo a advogar um conceito de povo excludente (em relação a minorias religiosas, estrangeiros e imigrantes) e que ofende a dignidade humana, sendo, ademais, favorável à derrubada da democracia representativa e parlamentar.
A despeito desse reconhecimento, o tribunal entendeu que ainda não é possível ter como perfectibilizado o suporte fático da regra constitucional justificativa da proibição do partido, pelo fato de que ainda (e é conveniente frisar o ponto) faltam elementos concretos de suficiente peso (gravidade) que permitem constatar e real viabilidade de efetivação dos objetivos anticonstitucionais do NPD.
Por um lado — argumenta o tribunal —, o NPD não possui condições reais de alcançar isoladamente uma maioria ou mesmo dispõe da possibilidade efetiva de participar de uma coalização partidária que lhe permitisse alcançar os seus objetivos. Da mesma forma, o NPD não apresenta condições de atingir os resultados pretendidos fora da esfera de ação parlamentar, em virtude de seu pequeno número de militantes (menos de 6 mil em toda a Alemanha) e da baixa capacidade de organização, mobilização e mesmo de influenciar de modo relevante o processo de formação de opinião. Além disso, o tribunal recorre ao princípio da proporcionalidade, entendendo que eventuais e pontuais ações criminosas cometidas por integrantes do partido ou simpatizantes, ainda que registradas, não têm o condão de inquinar a agremiação como tal, podendo e devendo ser combatidas, em caráter preventivo e repressivo, por meio do exercício do poder de polícia e da persecução criminal pessoal.
Apresentada em apertada síntese a decisão, cabem algumas observações.
Numa primeira aproximação, é possível sufragar as críticas à decisão, no sentido de que o Tribunal Constitucional estaria emitindo um sinal positivo para não apenas a continuidade e mesmo radicalização e incremento das atividades do próprio NPD, como também contribuindo para, senão estimular, ao menos não inibir desde logo a formação ou mesmo evolução de outros partidos políticos marcadamente antidemocráticos e manifestamente adeptos de uma concepção política extremista, nacionalista e excludente, ainda mais num cenário internacional caracterizado, como já adiantado, pelo avanço da intolerância e dos fundamentalismos.
Mas há sem dúvida outra leitura a fazer, mais simpática ao Tribunal Constitucional.
Em primeiro lugar, uma interpretação extensiva (visto se tratar, no caso da ordem livre e democrática, de um conceito extremamente aberto) e não estritamente excepcional no que diz com o fundamento constitucional para a proibição e extinção de partidos políticos, poderia ser também uma forma de silenciar minorias ainda que incômodas e destoantes dos princípios democráticos. Além disso, de um ponto de vista prático, há quem diga que até mesmo a inteligência política recomenda que a possibilidade de observar, monitorar e mesmo intervir topicamente mediante outros instrumentos disponíveis é em regra mais eficaz do que a desconstituição de um partido. Isso pelo fato de que a experiência revela que os partidos, ainda que desapareçam como tais, passam a se organizar e agir de modo informal, o que torna mais difícil controlar suas atividades antidemocráticas, até voltarem a entrar na cena política com novo rótulo e programa (cf. Utz Schliesky in: Josef Isensee/Paul Kirchhof {Org.}, Handbuch des Staatsrechts, vol. XII, 3ª ed., Heidelberg: C.F. Müller, 2004, p. 871).
De todo modo, no caso concreto, o tribunal logrou demonstrar, à luz de elementos concretos, um estado atual das coisas que não aponta para uma real possibilidade de o NPD colocar seus projetos em prática no cenário político, de modo a — por ora!! — serem suficientes outros instrumentos eficazes disponíveis. Isso significa — há que enfatizar — que o tribunal deixa em aberto a possibilidade de, no futuro, em sendo o caso, alterar seu posicionamento, desde que existam elementos concretamente aferíveis para justificar a extinção do partido. Já essa ressalva, salvo melhor juízo, somado às demais circunstâncias e ao risco de uma interpretação demasiadamente flexível do fundamento constitucional para a proibição, anima a sufragar a decisão.
Há que agregar, contudo, que os riscos em termos do acirramento dos ânimos e da intolerância possam ser maiores do que os imaginados pelo tribunal, mas ao menos não resta afastada a propositura, à luz de novas circunstâncias concretas, da ação e de uma decisão então distinta e mais severa por parte da corte. Isso pressupõe, no entanto, que medidas alternativas para conter o autoritarismo, o fundamentalismo, a xenofobia, o racismo e a intolerância em geral sejam efetivamente tomadas, do contrário (que seria de lamentar profundamente!) os críticos do Tribunal Constitucional teriam razão.
Por derradeiro, embora não se trate de uma situação igual à do Brasil, o instituto da proibição de partidos políticos e o caso apreciado pelo Tribunal Constitucional podem servir de inspiração ao menos para alguns aspectos do nosso sistema partidário, mas isso também envolve a sua reestruturação, visto que o elevado número de partidos pequenos torna a situação mais complexa e mesmo mais arriscada do ponto de vista democrático. Mas, como está mais do que na hora de repensar e ajustar o sistema político brasileiro, quem sabe temos aqui mais um mote para aperfeiçoar o debate e pensar em algumas possibilidades de melhoria e que possam auxiliar a resgatar a política no sentido mais nobre do termo.