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Os fundamentalistas da transparência, por Pio Giovani Dresch

Os fundamentalistas da transparência, por Pio Giovani Dresch

Os sistemas jurídicos de uma sociedade desenvolvida são sempre compostos de um conjunto de normas principiológicas que se equilibram em tensão. Às vezes há conflitos entre diferentes princípios, e neste caso é necessário encontrar soluções que os harmonizem ou, em situações especiais, afastem total ou parcialmente a incidência de um deles no caso concreto.

Quando, por exemplo, proíbe a exposição de imagem de criança em situação de risco, privilegia nossa legislação a proteção aos direitos das crianças e adolescentes, em prejuízo à liberdade de imprensa.

A recente entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação trouxe para as páginas dos jornais uma polêmica que bem expressa dois princípios em choque: a postulação pela exposição pública dos vencimentos de agentes públicos corresponde a um legítimo desejo de conhecer os gastos do Estado, do qual não se pode mais aceitar que esconda da sociedade as suas ações; por outro lado, neste ponto, a busca da transparência estatal resultará na exposição pública de informações privadas de seus servidores.

De um lado, encontra-se o princípio da transparência do poder público, de outro, o direito à intimidade, à vida privada. Nesse caso, impõe saber se ocorre uma total contradição entre um princípio e outro, que imponha o afastamento de um deles, ou se existe a possibilidade de mitigá-los, para que ambos tenham a maior efetividade possível no caso concreto.

Há uma solução simples para o caso: a publicação individualizada dos vencimentos, com a identificação por cargo, mas sem identificação nominal. Desse modo, saberá a sociedade o quanto o Estado gasta com os seus servidores e terão estes assegurado o seu direito à privacidade.

Todavia, o que se ouve em alguns círculos é que, em tomando esta medida, o governante estará escondendo dos cidadãos dados fundamentais, assim atentando contra a própria transparência e driblando a lei.

Nesse ponto, é de se esclarecer que a própria divulgação dos salários não resulta de um mandamento expresso da Lei de Acesso à Informação, mas de um atendimento ao seu espírito.

Dizer-se, como alguns dizem, que o contribuinte tem o direito de ver o nome de cada servidor ao lado de seu salário é conferir valor absoluto a um princípio em detrimento de um princípio individual básico. A pergunta é: o que ganhará o contribuinte, já sabedor dos vencimentos de todos os servidores, ao identificar o nome de cada um? Que benefício adicional terá isso para a transparência? Por outro lado, o quanto perderá cada servidor com a exposição de informações pessoais, que, se fossem divulgadas por qualquer empregador privado, certamente ensejariam direito a indenização?

Todavia, a cruzada segue, e com uma lascívia de voyeur exigem os fundamentalistas da transparência a exposição até as entranhas de cada detalhe funcional do servidor.

Até onde isso irá não se sabe, mas seria salutar esperar dos arautos da visibilidade que tenham igual empenho em exigir a publicação do lucro das empresas que contratam com o governo ou se beneficiam das isenções fiscais e da remuneração paga aos seus diretores.

* Pio Giovani Dresch é presidente da AJURIS

Artigo publicado em Zero Hora, pág. 15, no dia 10/7/2012.