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O barulho do ferro das algemas, por Luis Carlos Rosa

O barulho do ferro das algemas, por Luis Carlos Rosa

Artigo de autoria do juiz de Direito Luis Carlos Rosa, publicado no dia 28 de maio em coluna semanal no Jornal das Missões, de Santo Ângelo

Existem algumas coisas que é difícil imaginar que um ser humano possa se acostumar, contudo, pela repetição, inconscientemente acabamos por nos adaptar, tratando aquilo como algo normal, quando a rigor não é. Faço essa reflexão em cima de um fato acontecido nesta semana na sala de audiências do Juizado da Infância e Juventude e que depois me pôs a pensar. A audiência envolvia adolescentes que cometeram atos infracionais tidos como graves, internados provisoriamente na CASE e que foram apresentados para a audiência preliminar, estando presentes os pais e os advogados, além do Promotor de Justiça e o Juiz.

Estes jovens, quando os atos praticados exigem, são conduzidos no trajeto do compartimento onde aguardam para serem chamados (cela), até à sala de audiências, algemados, entram na sala algemados e ali são retiradas as algemas, seguindo as orientações do juiz, sob o olhar de compaixão dos pais, normalmente à mãe, que se vê impotente frente à cena.

Depois de ouvidos esses adolescentes, feitas todas as perguntas, assinado o termo de audiência, como gado que sabe o caminho a seguir, viram as costas para o magistrado e já dispõe as mãos para serem novamente algemados, naquele momento o silêncio dentro da sala impera, se ouve o barulho do ferro das algemas, que fazem as mães baixarem os olhares, respirarem fundo, por vezes algumas lágrimas e lá se vão adolescente, agentes da CASE encarregados da escolta e os pais complacentes atrás, irresignando-se com a situação.

Pois nessa audiência a advogada de um dos adolescentes, que não tem atuação frequente no Juizado da Infância e Juventude, fez uma observação, “nunca vou me acostumar com isso”, o que me fez pensar que de tantas vezes que a cena se repete acabamos incorporando-a naturalmente na nossa rotina, como algo absolutamente normal, quando aquilo é algo emblemático, cheio de significados que em regra são desprezados. A dor da mãe, o sentimento de que não conseguiu dar ao filho uma educação adequada, a irresignação com o cárcere fere fundo na alma.

Vou mais além, hoje temos no CASE de Santo Ângelo, cerca de 40 adolescentes e jovens internados, 100% pobres, não lembro de ter sido internado nestes quase 05 (cinco) anos de atuação na Vara da Infância e Juventude, algum adolescente da classe alta ou média. Hoje quem está encarcerado no sistema FASE são pessoas pobres, grande parte delas pessoas que conviveram com maus tratos, drogadição, alcoolismo e negligência, pessoas para as quais não se alcançaram investimentos públicos adequados, pessoas que praticamente foram jogadas para a prática de atos infracionais.

As famílias desses jovens, que certamente têm suas responsabilidades, muitas delas, arrisco a dizer a maioria, repetem histórias de miséria existencial, miséria cultural, as quais não têm a força necessária para sair desse círculo nefasto, lutam pela sobrevivência, vivem de aportes nutricionais de Secretarias de Assistência Social, campanhas de agasalho, moram mal, muitas vezes próximo das “bocas de fumo”, para onde os filhos são empurrados e nada ou muito pouco se consegue fazer.

A triste realidade é que enquanto não se instituir uma política pública eficaz de resgate da cidadania vamos continuar escutando em salas de audiências anônimas, sob o olhar complacente de juízes, promotores e advogados o barulho do ferro de algemas em mãos que deveriam estar segurando uma caneta em bancos escolares, de pessoas que ao saírem da escola teriam que ter a possibilidade de se refugiar em uma moradia digna e acolhedora, como uma alimentação adequada e com uma ocupação lícita.

Não podemos nos acostumar com essa realidade.

Um ótimo final de semana a todos.