15 dez Internação obrigatória não pode ser utilizada de modo generalizado, por Ingo Wolfgang Sarlet
Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado
no dia 9 de dezembro na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.
Na presente coluna, mudando o foco das anteriores, optamos por revisitar de modo sumário, alguns dos problemas jurídico-constitucionais que dizem respeito às internações obrigatórias (termo que utilizamos em substituição à terminologia adotada pela assim chamada Lei da Reforma Psiquiátrica) para os casos de pessoas com doença mental ou mesmo, como defendido por alguns, para casos de dependentes de drogas e alcoolismo. Cumpre salientar, outrossim, que aqui estamos retomando, de forma resumida e seletiva, alguns aspectos de artigo produzido em coautoria com Fabio de Holanda Monteiro, Mestre em Direito pela PUC-RS [1], cuja dissertação de mestrado sobre o tema foi por nós orientada e que deve e merece ser lida (está disponível em PDF acessível on-line) tanto pela qualidade da análise jurídica quanto pelo relevante olhar interdisciplinar sobre tema tão atual e relevante, mas nem sempre suficientemente lembrado e discutido, em especial na seara do Direito.
Já de largada calha destacar que a Constituição Federal de 1988 (CF) — ao contrário, por exemplo, da Constituição da República Portuguesa (1976) — embora não disponha especificamente sobre o tema, não apenas enfatiza a dignidade da pessoa humana como princípio estruturante, mas também impõe uma perspectiva inclusiva das pessoas com deficiência, de modo a que sejam consideradas sujeitos de direitos fundamentais e, portanto, nessa condição, destinatárias de deveres de proteção e promoção de sua dignidade e personalidade pelo Estado e pela sociedade. Nesse contexto, a internação psiquiátrica obrigatória requer a observância do devido processo legal iluminado pela dignidade da pessoa humana e pelos direitos fundamentais e direitos humanos, visto ser o Brasil signatário dos tratados internacionais sobre a matéria, inclusive tendo internalizado, com força de emenda constitucional, a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência.
A internação obrigatória (expressão que aqui se utiliza como gênero, abarcando, nessa fase, as modalidades compulsória e involuntária), contudo, nem sempre tem sido apropriadamente manejada, seja no âmbito dos serviços de saúde, seja na esfera jurídica, o que se deve a uma série de fatores que aqui não poderão ser examinados, mas que desafiam maior reflexão e impõe o enfrentamento de uma série de perplexidades.
Para efeitos desta coluna centraremos a nossa atenção em alguns aspectos que dizem respeito à internação psiquiátrica obrigatória (involuntária e compulsória) com destaque para a modalidade compulsória, sugerindo — na esteira do já referido trabalho conjunto com Fabio de Holanda Monteiro — algumas ideias que possam contribuir para uma teoria e prática das internações obrigatórias compatível com a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais dos pacientes e de terceiros.
Antes de seguir por essa senda, relembre-se que para além dos parâmetros postos pelo marco constitucional e convencional (ambos integrados na perspectiva de um bloco de constitucionalidade), o regime jurídico da proteção das pessoas com transtorno mental encontra-se delineado na Lei 10.216, de 06 de abril de 2001, a intitulada Lei da Reforma Psiquiátrica (LRP).
Dentre os principais vetores da legislação referida, está a proibição de toda e qualquer discriminação das pessoas com transtornos mentais, além de privilegiar o acompanhamento e tratamento no núcleo familiar e evitar ao máximo a institucionalização de tais pessoas, de modo a assegurar a sua integração na vida social e familiar. Ademais disso, a Lei da Reforma Psiquiátrica enfatiza o respeito à autonomia da pessoa com transtornos mentais e aposta no caráter excepcional das internações involuntárias (aqui designadas de obrigatórias).
Especificamente no que diz respeito ao ponto focado nessa coluna, a internação psiquiátrica é regulada pelos artigos 4º, 6º, 7º, 8º e 9º, da LRP. Consoante o disposto no artigo 4º, caput, a internação psiquiátrica, em qualquer das modalidades, somente se mostra cabível quando os recursos não hospitalares forem tidos como insuficientes e houver risco à integridade física, à saúde ou à vida dos portadores de transtorno mental ou a terceiros. A situação de perigo concreto deve estar prevista em laudo médico circunstanciado, caso contrário, torna-se incabível a obrigatoriedade de internação do paciente (artigo 6º, caput). Em havendo necessidade do internamento, este deverá buscar a cessação do estado de perigo, com consequente reinserção social do paciente em seu meio (artigo 4, §§ 1º e 2º).
De acordo com a LRP são três as modalidades de internação psiquiátrica (artigo 6, § único, incisos I a III), quais sejam: voluntária, involuntária, e compulsória. Na internação voluntária pressupõe-se o consentimento do paciente, que deverá assinar uma declaração atestando sua escolha por este tipo de tratamento (artigo 7º, caput). A internação involuntária dá-se sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro, sendo que seu término somente ocorrerá por solicitação escrita do familiar ou responsável legal ou ainda quando houver manifestação do médico responsável pelo tratamento (artigo 8, § 2º). Nesse caso, tanto a internação como a alta do paciente devem ser comunicadas no prazo de setenta e duas horas ao Ministério Público estadual, (artigo 8º, § 1º). Restando configurado que a internação involuntária não atende aos requisitos legais e cuidando-se de restrição ao direito de liberdade, cabível a impetração de habeas corpus, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça. (STJ, HC 35301/ RJ, Rel. Nancy Andrighi, j. 03.08.2004).
Já a internação compulsória (artigo 6º, § único, inciso III), é decorrente de ordem judicial, necessariamente, amparada em laudo médico que descreva de forma detalhada a situação de perigo concreto. Será utilizada quando não for possível, ou insuficiente, o tratamento não hospitalar e houver probabilidade de risco à integridade física, à saúde ou à vida da pessoa com transtorno mental ou a terceiros. Tal tipo de internação consiste em um “procedimento judicial cautelar ou de mérito”, ao qual são aplicáveis, segundo entendimento corrente, as mesmas normas relativas à internação psiquiátrica involuntária. [2]
Um primeiro ponto a sublinhar é o de que pesem as distinções traçadas pela lei entre as modalidades involuntária e compulsória de internação, em ambos os casos se trata de internação levada a efeito sem a manifestação de vontade favorável por parte da pessoa que apresenta um quadro de transtorno mental, razão pela qual as duas hipóteses carecem de um rigoroso controle, inclusive na esfera jurisdicional. Por outro lado, embora para alguns efeitos as distinções traçadas pela legislação nacional entre as modalidades involuntária e compulsória de internação sejam relevantes, o que importa ao nosso propósito é sustentar que também na hipótese de internação involuntária se faz necessário o controle jurisdicional, razão pela qual, consoante já anunciado desde o início, entendemos que o termo internações obrigatórias é útil para abarcar as duas modalidades previstas na LRP.
A internação obrigatória (compulsória ou involuntária, nos termos da LRP) consiste em medida necessária ao tratamento da pessoa que esteja padecendo de sofrimento psíquico grave, com risco para si e/ou para terceiros, ou para a sociedade, exigindo, para tanto, a emissão de laudo médico circunstanciado que a justifique. Ressalte-se, ainda, que o uso da medida deverá ser determinado pelo juiz competente (no nosso entender, em ambos os casos) com a observância da legislação em vigor, a qual “levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários” (artigo 9º, Lei 10.216/2001).
Note-se que STJ já decidiu — sem nenhum questionamento sobre a constitucionalidade da medida — pela possibilidade do internamento obrigatório, entendendo que a medida, excepcional, objetiva resguarda a própria saúde e mesmo vida da pessoa com transtorno mental e mesmo de terceiros, não tendo por escopo a privação da liberdade em si (embora esta seja o meio e não deixe de ser uma restrição a direitos fundamentais, convém agregar!), mas sim, fazer valer o direito fundamental à vida e à saúde (STJ, HC 130.155/SP, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 04.05.2010)..
Justamente por ser uma medida extrema e forte restrição da liberdade pessoal, a internação obrigatória implica estrita observância, para além da demonstração clínica criteriosa e da autorização judicial (faz-se, aqui, defesa de tal necessidade, ao menos, quando necessário, em curto prazo posterior à internação), dos requisitos da proporcionalidade, de tal sorte que somente poderá ser utilizada enquanto imprescindível e quando os demais recursos restarem ineficientes às necessidades terapêuticas do paciente, a exemplo, aliás, do que se verifica em outros países, como é o caso dos EUA, onde a jurisprudência tem admitido a internação obrigatória como cabível se for o único meio para garantir a submissão ao tratamento mas jamais como simples medida de restrição de liberdade. [3]
Frise-se, portanto, a necessária observância de um devido processo formal e material para legitimar as internações obrigatórias (sejam compulsórias, sejam involuntárias, nos termos da LRP), o que também deverá balizar — em se admitindo tal hipótese!!! — eventuais internações cogentes em casos de dependência química ou alcoolismo, que, por não estarem expressamente previstas na LRP, se revelam particularmente controversas e tem sido objeto de acirrado debate e mesmo de projeto de lei, que aqui não poderá ser discutido.
Sem que se possa aprofundar tal aspecto, o que se destaca é a circunstância de que uma aplicação da LRP (inclusive para efeitos de internações obrigatórias) a dependentes de drogas e alcoolistas, apenas poderia — em sendo esse o caso — ser admitida em restando comprovado, mediante laudo médico-psiquiátrico circunstanciado, que da dependência química ou alcoólica tenham resultado graves transtornos mentais, equivalentes aos abarcados pela LRP, mas não apenas com base na demonstração da dependência em si. Com efeito, não há como agasalhar qualquer medida que tenha por escopo uma “conveniente limpeza das ruas e dos lares”, isolando pura e simplesmente as pessoas com dependência química e alcoólica, usando para tanto o instrumento da internação psiquiátrica obrigatória.
Nesse contexto, calha rememorar que de acordo com o Princípio 9 dos assim chamados Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental da ONU, “Todo usuário terá o direito a ser tratado no ambiente menos restritivo possível, com tratamento menos restritivo ou invasivo, apropriado às suas necessidades de saúde e a necessidade de proteger a segurança física de outros.” Além disso, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) — órgão de representação da OMS no continente americano —, por meio de nota técnica divulgada em maio de 2013, teceu críticas à priorização conferida à internação compulsória para o tratamento de usuários de drogas no Brasil. Por meio da referida nota, a OPAS considera inadequada e ineficaz o uso da internação involuntária ou compulsória como principal meio para o tratamento da dependência de drogas. Reconheceu, ainda, que a priorização do internamento obrigatório, como medida extrema que é, encontra-se na “contramão do conhecimento científico sobre o tema” e pode “exacerbar as condições de vulnerabilidade e exclusão social dos usuários de drogas”. [4]
É de se lamentar e repudiar, portanto, seja do ponto de vista moral, seja do ponto de vista jurídico-constitucional, a existência de decisões judiciais que chegam a considerar dispensável, no caso de internação de dependentes químicos, o prévio laudo médico circunstanciado e motivado, atropelando, de tal sorte, até mesmo requisito legal expresso (artigo 6º, caput, da LRP (v. decisão do TJ-SP no Agravo 2021291-37.2014.8.26.0000, Relator: Rubens Rihl, j. em 03 de abril de 2014).
Assim, em caráter de síntese, a internação obrigatória (aqui — cumpre repisar — compreendida como gênero!), além de assumir caráter excepcional, demanda adequada justificação médico-psiquiátrica, pressupondo a existência de transtorno mental grave (que poderá, ou não, decorrer do uso abusivo de drogas, álcool e congêneres, mas deverá sempre consistir em transtorno mental grave!) cujo tratamento seja inviável do ponto de vista de sua eficácia sem a medida coercitiva, o que, por sua vez, corresponde ao requisito do menor sacrifício, ou seja, da exigibilidade, que integra o teste de proporcionalidade. Além disso, a medida pressupõe que esteja em causa o grave comprometimento da própria integridade física e mental da pessoa que se busca internar e a salvaguarda de direitos fundamentais de terceiros.
Precisamente para evitar eventual abuso, a medida deve estar submetida sempre a controle judicial, em sede do qual haverá de ser rigorosamente verificada a observância dos requisitos referidos, o que não quer dizer que se faça imperativa autorização judicial prévia, ainda que esta não esteja afastada. Se tal controle judicial deve sempre ser prévio ou poderá ser posterior (o que parece acertado nos casos — devidamente fundamentados por laudo médico — em que o protelamento da internação poderá resultar em irreversível dano ao paciente ou terceiros), bem como outros aspectos de natureza procedimental, não será aqui avaliado.
De qualquer sorte, o que se percebe, é que se cuida de tema que reclama cada vez maior atenção e cuidado também no e pelo Direito, ainda mais em se levando em conta o elevado e crescente número de pessoas com transtornos mentais no Brasil e no Mundo. O que pode e deve ser adiantado, todavia, é que o instrumento da internação obrigatória em hipótese alguma poderá ser utilizado de modo generalizado, em especial para internações em massa e/ou em caráter preventivo de dependentes químicos ou outras situações (por vezes motivadas pela conveniência familiar em afastar a pessoa com transtorno mental de seu convívio) em que não esteja configurada, em concreto, grave distúrbio mental, a reclamar, para a própria proteção do paciente e de terceiros, ademais de inexistentes outras alternativas, sua temporária e controlada internação, assegurando-se sempre um tratamento humano e condigno em todo e qualquer caso e em sintonia com as exigências da ética e da medicina.
[1] SARLET, Ingo Wolfgang; MONTEIRO, Fábio de Holanda. Notas acerca da legitimidade jurídico-constitucional da internação psiquiátrica obrigatória. Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.10, n.2, 1º quadrimestre de 2015. Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica – ISSN 1980-7791.
[2] PINHEIRO, Gustavo Henrique de Aguiar. Comentários à lei da reforma psiquiátrica: uma leitura constitucional da lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Fortaleza: Tear da Memória, 2010. p. 86.
[3] PINHEIRO, Gustavo Henrique de Aguiar. O devido processo legal de internação psiquiátrica involuntária na ordem jurídica constitucional brasileira. In: RDisan, v. 12, n. 3. Nov.2011/Fev2012. p. 133.
[4] Disponível em: ˂http://www.douradosagora.com.br/brasil-mundo/ciencia-saude/priorizar-internacao-compulsoria-para-tratamento-de-drogas-e-inadequado˃. Acesso em: 28 jan. de 2015.