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“Idosos, PCDs, portadores de doenças graves e a EC nº109/2021”, por Cíntia Mua

“Idosos, PCDs, portadores de doenças graves e a EC nº109/2021”, por Cíntia Mua

Promulgada a Emenda Constitucional nº 109/2021,  alguns questionamentos vem à tona.

Haverá intangibilidade das  isenções  de IRPF para os proventos (Tema 1037, STJ; ADI 6025) de idosos[1] e pessoas portadoras de doença grave[2] – previstas no artigo 6º, incisos  XIV  e XV da Lei nº 7.713/88, respectivamente –  ao plano de redução gradual de incentivos e benefícios federais de natureza tributária?  E quanto às isenções para as  pessoas com deficiência?

O escopo da Emenda em revista foi viabilizar esteio financeiro  para pagamento de auxílio emergencial à população vulnerável, em face da crise pandêmica de escala mundial causada pela COVID19. O valor alocado para esta rubrica, em 2021, chega a 44 bilhões de reais e fica excepcionado da regra de ouro da Lei de Responsabilidade Fiscal.

A arquitetura da alteração constitucional prevê em seu artigo 4º que o Presidente da República, no prazo de seis meses da publicação da emenda, deverá apresentar plano de contingenciamento, com a redução escalonada dos benefícios tributários federais que contemplando redução percentual de 10% no primeiro ano,   tendo por meta o teto máximo 2% do PIB, num prazo de 8 anos (§ 1º).

O parágrafo 2º, a seu turno, lista os benefícios fiscais expressamente imunes ao contingenciamento:  I – estabelecidos com fundamento na alínea d do inciso III do caput e no parágrafo único do art. 146 da Constituição Federal; II – concedidos a entidades sem fins lucrativos com fundamento na alínea c do inciso VI do caput do art. 150 e no § 7º do art. 195 da Constituição Federal; III – concedidos aos programas de que trata a alínea c do inciso I do caput do art. 159 da Constituição Federal; IV – relativos ao regime especial estabelecido nos termos do art. 40 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e às áreas de livre comércio e zonas francas estabelecidas na forma da lei; V – relacionados aos produtos que compõem a cesta básica; e VI – concedidos aos programas estabelecidos em lei destinados à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais para estudantes de cursos superiores em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos.

Sinteticamente, estão excluídos dos efeitos da EC nº 109/2021; o Simples nacional; as imunidades tributárias às entidades sem fins lucrativos; os Fundos Constitucionais do Norte, Nordeste e Centro-Oeste; a Zona Franca de Manaus, áreas de livre comércio e zonas francas criadas por lei; a cesta básica; o Prouni.

A alteração constitucional veio a lume para dar suporte aos vulneráveis.

Partindo deste ponto de referência,  forte no princípio da solidariedade – que é a face intersubjetiva da dignidade da pessoa humana – e na igualdade material,  força convir que a enumeração do §2º, do artigo 4º da EC nº 109/2021 é meramente exemplificativa, pois os aposentados ou reformados maiores de 65 anos e/ou acometidos por uma ou mais das moléstias graves previstas taxativamente (Tema 250, STJ) na lei regencial conformam grupos tão ou mais vulneráveis que aqueles que o novel arranjo constitucional procura acudir.

A situação de hipervulnerabilidade agudiza-se quando os idosos ou diagnosticados com as moléstias graves são também pessoas portadoras de deficiência.

Não é demasiado mencionar que os idosos são destinatários de proteção constitucional integral, na forma do artigo 230 da Magna Carta. O  Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) assegura-lhes  “todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” (artigo 2º).

O tratamento prioritário ao idoso já foi visitado pelo Supremo Tribunal Federal em várias ocasiões, sendo exemplos: ADI 3.534, Relator: Min. Marco Aurélio  j. 10-10-2019, DJE de 24-10-2019; ADI 3.768, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 19-9-2007, DJ de 26-10-2007; AI 707.810 AgR, Rel. Min. Rosa Weber, j. 22-5-2012, 1ª T, DJE de 6-6-2012.

A isenção tributária prevista no artigo 6º, XIV, Lei 7.713/88, como já assentado em precedentes vinculantes do STJ (Tema 1037) e do STF  (ADI 6025), tem por escopo minorar a redução da capacidade contributiva do portador de doença grave, em virtude dos inúmeros e constantes gastos com medicamentos e tratamentos médicos.

Na dicção do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, voto-vencido no REsp nº 1.814.919-DF, caso representativo da controvérsia do Tema 1037, STJ:

(…)

Parece notório ou fruto da intuição natural afirmar que a finalidade primordial da regra de exclusão tributária foi justamente propiciar meios que atenuem o sacrifício das pessoas acometidas de doença grave, ao assegurar-lhes mais recursos para tratamento médico e curativo, dando efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde – ou à sua busca – na defesa do postulado maior da proteção e da valorização da própria vida humana. (…)

Ademais, o idoso ou o portador de doença grave (e, não raro, as duas características são cumulativas) também  poderá ser pessoa com  deficiência.

Vale lembrar que a Convenção de Nova York foi  inserida no cenário jurídico nacional pelo rito do artigo 5º, §3º, CF/88, de molde que tem estatura de Emenda Constitucional.

Neste passo,  superado o conceito de deficiência como condição clínica, sendo fenômeno socioeconomicocultural, é obrigação do Estado promover políticas  públicas para a inclusão social, removendo as barreiras físicas, atitudinais, culturais financeiras, das quais as isenções tributárias são instrumento.

Por isto, na Magna Carta, a proteção especial à pessoa com deficiência (art. 7º, XXXI) é preocupação constante, v.g.: art. 40, §4º, I, art. 100, § 2º, art. 201, § 1º e art. 203, IV

A interpretação sistemática da Convenção de Nova York garante às pessoas com deficiência isenções fiscais para assegurar o pleno exercício dos seus direitos, removendo todos os obstáculos que impeçam esta plenitude.

Não bastasse, o Estatuto da Pessoa com Deficiência  prevê expressamente, em seu artigo 74, que é garantido o acesso a produtos, recursos, estratégias, práticas, processos, métodos e serviços de tecnologia assistiva que maximizem sua autonomia, mobilidade pessoal e qualidade de vida, para o quê o Estado deverá elaborar plano específico (art. 75 da Lei Brasileira de Inclusão, nº  13/146/2015), regulamento pelo Decreto nº.10.645/2021.

Destarte, com a devida vênia, não se pode concordar com obter dictum da ADI 6045, constante no voto do eminente Relator, Min. Alexandre de Moraes, quando diz que “(…) a referida Convenção não impõe a concessão de qualquer benefício fiscal(…)”[3]

As isenções de que se trata,  porque destinadas a grupos hipervulneráveis, são intangíveis ao plano de redução gradual de incentivos e benefícios federais de natureza tributária, também ao exame da proporcionalidade.

Os valores ressalvados no §2º do artigo 4ª da EC nº 109/2021 (regulação da ordem econômica, desenvolvimento nacional e regional e acesso à educação universitária) são muito menos caros ao conjunto do corpo social,  muito menos densos sob o ponto de vista humanitário e, por conseguinte,  tem latitude e densidade constitucionais menores que os protegidos pelo exercício da extrafiscalidade em questão: as isenções  previstas no artigo 6º, incisos  XIV e XV da Lei 7.713/88.

Nesta senda, lapidar a lição do RE 150.764-1-DF, Ministro Celso de Mello:

Argumentos de necessidade, por mais respeitáveis que possam ser, não devem prevalecer sobre o império da Constituição. Razões de Estado, ainda que vinculadas a motivos de elevado interesse social, não podem legitimar o desrespeito e a afronta a princípios e valores sobre os quais tem assento o nosso sistema de direito constitucional positivo. Esta Corte, ao exercer, de modo soberano, a tutela jurisdicional das liberdades públicas, tem o dever indeclinável de velar pela intangibilidade de nossa Lei Fundamental, que, ao dispor sobre as relações jurídico-tributárias entre o Estado e os indivíduos, institucionalizou um sistema coerente de proteção, a que se revelam subjacentes importantes princípios de caráter político, econômico e social. É preciso advertir o Estado de que o uso ilegítimo de seu poder de tributar não deve, sob pena de erosão da própria consciência constitucional, extravasar os rígidos limites traçados e impostos à sua atuação pela Constituição da República (DJU 12.04.93)

Linhas postas, incluir as isenções do artigo 6º, XIV e XV da Lei nº 7.713/88 no plano de contingenciamento de que trata o caput do artigo 4º, § 2º, da EC nº 109/2021  não merece acolhida à luz da exegese constitucional tópico-sistemática, porque  afronta a proteção do núcleo duro da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição Federal),  a solidariedade como objetivo da República Federativa do Brasil (art. 3º, I, CF/88), a proteção especial ao idoso (art. 230, CF/88) e à pessoa com deficiência (Convenção de Nova York[4]; art. 7º, XXXI, CF/88), ignorando a flagrante redução da capacidade contributiva destes grupos, pelo grave adoecimento e, portanto, infringindo gravemente a isonomia material  (art. 5º, caput, da CF).

 

Cintia Mua é magistrada aposentada e doutoranda em Direito pela PUCRS. Artigo publicado no site ConJur no dia 23 de março de 2021.

 

[1] Art. 6º Ficam isentos do imposto de renda os seguinte rendimentos percebidos por pessoas físicas:

XV – os rendimentos provenientes de aposentadoria e pensão, de transferência para a reserva remunerada ou de reforma pagos pela Previdência Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por qualquer pessoa jurídica de direito público interno ou por entidade de previdência privada, a partir do mês em que o contribuinte completar 65 (sessenta e cinco) anos de idade, sem prejuízo da parcela isenta prevista na tabela de incidência mensal do imposto, até o valor de: (Redação dada pela Lei nº 11.482, de 2007)

  1. a) R$ 1.313,69 (mil, trezentos e treze reais e sessenta e nove centavos), por mês, para o ano-calendário de 2007; (Incluído pela Lei nº 11.482, de 2007)
  2. b) R$ 1.372,81 (mil, trezentos e setenta e dois reais e oitenta e um centavos), por mês, para o ano-calendário de 2008; (Incluído pela Lei nº 11.482, de 2007)
  3. c) R$ 1.434,59 (mil, quatrocentos e trinta e quatro reais e cinqüenta e nove centavos), por mês, para o ano-calendário de 2009; (Incluído pela Lei nº 11.482, de 2007)
  4. d) R$ 1.499,15 (mil, quatrocentos e noventa e nove reais e quinze centavos), por mês, para o ano-calendário de 2010; (Redação dada pela Lei nº 12.469, de 2011)
  5. e) R$ 1.566,61 (mil, quinhentos e sessenta e seis reais e sessenta e um centavos), por mês, para o ano-calendário de 2011; (Incluída pela Lei nº 12.469, de 2011)
  6. f) R$ 1.637,11 (mil, seiscentos e trinta e sete reais e onze centavos), por mês, para o ano-calendário de 2012; (Incluída pela Lei nº 12.469, de 2011)
  7. g) R$ 1.710,78 (mil, setecentos e dez reais e setenta e oito centavos), por mês, para o ano-calendário de 2013; (Incluída pela Lei nº 12.469, de 2011)
  8. h) R$ 1.787,77 (mil, setecentos e oitenta e sete reais e setenta e sete centavos), por mês, para o ano-calendário de 2014 e nos meses de janeiro a março do ano-calendário de 2015; e (Redação dada pela Lei nº 13.149, de 2015)
  9. i) R$ 1.903,98 (mil, novecentos e três reais e noventa e oito centavos), por mês, a partir do mês de abril do ano-calendário de 2015; (Redação dada pela Lei nº 13.149, de 2015)

 

[2] Art. 6º Ficam isentos do imposto de renda os seguinte rendimentos percebidos por pessoas físicas:

(…)XIV – os proventos de aposentadoria ou reforma motivada por acidente em serviço e os percebidos pelos portadores de moléstia profissional, tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira, hanseníase, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, hepatopatia grave, estados avançados da doença de Paget (osteíte deformante), contaminação por radiação, síndrome da imunodeficiência adquirida, com base em conclusão da medicina especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída depois da aposentadoria ou reforma; (Redação dada pela Lei nº 11.052, de 2004) (Vide Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência) (Vide ADIN 6025)

 

[3] O artigo 4º  do Decreto nº.10.645/2021, de 11/03/2021 estabelece os objetivos do Plano Nacional de Tecnologia Assistiva, dentre os quais, em seu inciso IV,  “eliminar ou reduzir a tributação da cadeia produtiva e de importação de tecnologia assistiva;”.

 

[4] Promulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, aprovada pelo Congresso Nacional, na forma do artigo 5º, §3º, CF/88, por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008.