11 fev Evitando a era dos extremos interpretativa no caso da violação do domicílio, por Ingo Wolfgang Sarlet
Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 5 de fevereiro na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.
Antes de iniciarmos um período de quatro semanas (duas colunas) de férias para retomarmos a rotina dia 11.03.16 e movendo-nos ainda numa perspectiva retroativa, de recuperação e rediscussão de colunas anteriores, ousamos resgatar hoje o tema da recente orientação adotada pelo STF no que diz com a ilegitimidade constitucional do ingresso forçado da autoridade policial em domicílios em virtude de flagrante delito e sem prévia autorização judicial.
Esse resgate encontra sua motivação no fato de que por ocasião da coluna anterior sobre o tema, publicada dia 4 de dezembro de 2015, foram assacadas algumas críticas (e um elogio) de cunho bastante ácido (para sermos mais elegantes do que os críticos) em relação à posição adotada. Sem prejuízo da conveniência e oportunidade de se discutir com maior atenção o tom e o dom da crítica – em si sempre saudável e mesmo indispensável – o fato é que cada vez mais se observa que a crítica em muitos casos tende a enveredar para a ofensa pessoal ou então veicula posições fundamentalistas de rechaço personalista, isto sem falar em críticas movidas pela leitura equivocada ou mesmo pautadas pela distorção do próprio pensamento do autor criticado e de seus argumentos. Com efeito, não são raros os casos em que o crítico simplesmente “coloca palavras na boca do autor” e depois critica o que sequer foi dito, ou quanto o crítico se limita a pinçar um ou outro argumento e passagem do texto, retirando-o de seu contexto.
Além disso, por vezes e cada vez mais vezes, a regra constitucional expressa que veda o anonimato quanto do exercício da liberdade de manifestação do pensamento tem sido pura e simplesmente atropelada por críticos que em muitos casos clamam precisamente pelo rigoroso cumprimento da normativa constitucional, que, todavia, parece aplicar-se aos outros e sempre na medida em que isso não representa afronta aos próprios ideais e argumentos, esses sempre corretos, de modo que eventual e saudável contraditório é então (por esses mesmos “críticos”) utilizado como via de mão única. Isso, por exemplo (e aqui não importa de qual autor se trata) ocorre quando eventual divergência em uma ou outra situação que não harmoniza com o pensamento (é claro que sempre escorreito, correto e honesto) do crítico leva a afirmações do tipo cada vez mais comum de que “vou retirar da estante os livros desse sujeito”, “fulano está a trair tudo o que já escreveu”, “nunca mais vou ler algo desse autor” e assim por diante. Por evidente que é direito de cada um deixar de ler e mesmo não ler o que bem entenda, o que não está aqui em discussão, mas sim, que tais afirmações não representam crítica no sentido de avaliação e discussão de pontos de vista ou afirmações de terceiros.
Não é a toa que, com razão, autores de ponta como Lenio Streck, em coluna sobre o tema, buscam iluminar a questão e demonstram como determinadas críticas ou não são propriamente críticas ou se transmutam mesmo em ofensas ou manifestações de caráter fundamentalista que nada mais pretendem do que desmerecer o autor criticado ou mesmo repudiar de forma sectária todo e qualquer argumento que não esteja de acordo com pensamento do assim dito crítico.
É claro que — e disso estamos convictos — entre os extremos da mudez e da surdez, portanto entre da ausência de crítica e a ofensa e o fundamentalismo – num Estado Democrático de Direito, tal como formatado ao menos formalmente na Constituição Federal de 1988, preferível conviver com críticas eventualmente mais sectárias e no limite mesmo ofensivas do que com a ausência de crítica, de modo que é com esse espírito crítico (em relação a determinado modo de fazer a crítica) mas receptivo que consideramos as críticas que nos foram endereçadas quando nos posicionamos relativamente aos limites da interpretação do flagrante delito para justificar a legitimidade constitucional do ingresso compulsório e sem mandado judicial na esfera domiciliar.
Em primeiro lugar importa sublinhar que o posicionamento adotado (que reconhece a possibilidade do ingresso no domicílio quando existirem elementos concretos que indiquem a ocorrência de um flagrante delito) tem sido — no ambiente jurisprudencial e acadêmico gaúcho — rechaçado por todos os lados. A ampla maioria o considera liberal, garantista e mesmo irresponsável, impeditivo da investigação e persecução penal, inclusive no sentido de propiciar e impunidade, ao passo que apenas uma pequena minoria (no TJRS apenas a terceira câmara criminal) entende que se cuida de posição equivocada e que não merece guarida por ofensiva à garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio. Assim sendo, já se percebe que num ambiente plural onde evidentemente não poderia prevalecer sempre apenas a iluminada visão de alguns (para esses a única leitura adequada ou correta, a depender das preferências) críticos, pois sempre haverá a concorrência de outras visões.
Esse, aliás, um problema sério a ser enfrentado com lucidez e simpatia, pois é precisamente a cada vez mais presente oscilação entre os extremos (que definitivamente não correspondem ao paradigma plural e aberto de uma sociedade democrática) que é possível testar os limites do Estado de Direito. Ora, não há nem problema em si quando policiais, membros do Ministério Público e Secretários de Segurança aplaudem determinadas teses, nem quando tal aplauso (pois sempre há – e não poucos – que inverteriam o repúdio aos aplausos) é oriundo da sociedade civil, dos advogados, integrantes da academia, magistrados, defensores públicos, políticos e outros. Em primeiro lugar pelo fato de que pressupor que tais categorias todas possam ser rotuladas generalizadamente por si só é equivocado e profundamente preconceituoso, para não dizer nada democrático, dialético e plural. Aliás, tal rotulagem tende mesmo a ser é intolerante, quando a legítima intolerância no Estado Democrático de Direito deveria ser direcionada à própria intolerância.
Ademais disso, está a se descuidar do fato de que no esquema da articulação e distribuição das funções e atribuições inerentes ao funcionamento do Estado Democrático de Direito, resulta evidente que determinadas instituições e organizações devem mesmo cumprir determinados papéis (inclusive o da persecução penal e da segurança pública), desde que evidentemente o façam em obediência às regras do jogo democráticas e respeitando e protegendo os direitos fundamentais de todos.
De outra banda, na arquitetura institucional e normativa de toda e qualquer Democracia Constitucional e mesmo na seara do direito internacional dos direitos humanos, inexiste direito propriamente absoluto justamente para permitir, no limite, a convivência minimamente harmônica do exercício e proteção de todos os direitos de todas as pessoas. Aliás, a própria garantia da inviolabilidade do domicílio prevê hipóteses excepcionais nas quais o ingresso sem mandado judicial é permitido, hipóteses agasalhadas pela nossa Constituição Federal.
Mas ainda que mesmo tal modelo soe equivocado para alguns, especialmente os que entendem que existem direitos absolutos, coloca-se o dilema de quem estabelece tais limites. No Estado Constitucional, ao menos, tais limites seguem, ao menos em tese e formalmente, sendo fixados em primeira linha pela Constituição, o que também se verifica no caso brasileiro.
Portanto, os que em nome de determinada orientação hermenêutica bradam (corretamente) que os limites da interpretação, ainda mais judicial, residem na própria ordem constitucional, designadamente no texto constitucional, deveriam ao menos cuidar antes de vociferar que quem precisamente busca sustentar que qualquer ingresso no domicílio deve observar a Constituição Federal deva ter seus livros rasgados ou mantidos presos e escondidos nas estantes até que venha a escrever algo que agrade ao crítico. Note-se que é a Constituição Federal que expressamente estabelece que nos casos de flagrante delito a autoridade policial poderá ingressar de modo forçado em qualquer domicílio a qualquer momento, sem prévia autorização judicial, o que em momento algum foi contestado — pelo contrário, foi enfaticamente sublinhado — na coluna ora relembrada.
O que pode isso sim ser objeto (e é importante e necessário que o seja) de controvérsia, é o que configura em cada caso e em cada figura delitiva, o flagrante delito, para que então se possa ter como legítima o ingresso forçado na esfera domiciliar.
Quanto a isso e desde logo, nunca deixamos de sufragar – ao menos é isso que a posição adotada claramente indica – que a noção de flagrante delito deve ser interpretada de modo restritivo, limitando-se a situações determinadas e que encontrem sempre algum suporte nas circunstâncias concretas.
Por evidente que por mais que se queira discutir isso, resulta elementar que se a Constituição autoriza o ingresso sem mandado judicial em caso de flagrante delito tal ingresso além de não configurar violação do direito (porquanto expressamente autorizado pela CF) também terá sempre de ter sido em primeiro lugar avaliado (já que não está condicionado previamente ao mandado judicial) pela autoridade policial na situação concreta em que se verifica o problema. Aliás, o próprio Magistrado – que também terá de se embasar em dados apontados pela autoridade policial ou Ministério Público – decidirá sempre a respeito de elementos indicados por terceiros e distante dos fatos.
O que resta ao intérprete é, portanto, ser rigoroso e buscar limitar ao máximo e vincular à demonstração da existência de elementos concretos à existência da situação de flagrância, fulminando por ilícita as situações em que isso não se verifica.
Mas ainda que não houvesse previsão constitucional expressa ressalvando a hipótese de flagrante delito, remanesce a possibilidade de adentrar o domicílio alheio em caso de grave ameaça à pessoa que lá se encontre ou mesmo terceiros (incêndio, desabamentos, acidente doméstico, etc.). Mesmo aqui cuida-se de conceito normativo indeterminado a carecer de concretização e também aqui a primeira valoração (também sujeita ao crivo posterior) será de qualquer pessoa ou mesmo autoridade que se sinta em condições e no dever de prestar o auxílio necessário ou aparentemente necessário, o que apenas as circunstâncias concretas de cada caso e do seu contexto poderão indicar com maior ou menor precisão.
Por isso, ainda que as hipóteses sejam distintas (pela motivação e finalidade) em ambas – considerada a dicção do texto constitucional vigente – não há como contornar (no máximo limitar a situações excepcionais) uma atuação prévia e situada em determinado contexto fático de qualquer pessoa ou autoridade sem prévio mandado judicial, que, como já apontado, embora assegurando uma proteção mais forte (ao menos em termos ideais) do ponto de vista do devido processo jurídico-constitucional, não dispensa uma valoração por parte da autoridade judicial dos aspectos fáticos que lhe são fornecidos pela autoridade não judiciária.
Poder-se-á dizer certamente que aos olhos de alguns tal situação não é a desejável e que a o domicílio deveria ser mais robustamente protegido, o que, em certa medida, também consideramos possa ser um objetivo a alcançar. Isso, todavia, poderá ser obtido de três modos: a) uma interpretação o mais restritiva possível das hipóteses autorizativas previstas na CF, mas que não pode à evidência desconsiderar tais ressalvas constitucionais expressas; b) a declaração de inconstitucionalidade ou interpretação conforme a CF das hipóteses previstas na legislação infraconstitucional se e quando for o caso; c) mediante emenda constitucional que exija em todo e qualquer caso prévia autorização judicial, mas pelo menos quando se cuida de flagrante delito.
Cuida-se, ademais, de alternativas que reclamam maior digressão e desenvolvimento, para o que remetemos a reflexão posterior nossa e de todos os que se ocupam do crucial problema do alcance do âmbito de proteção dos direitos e garantias fundamentais num Estado Democrático de Direito, por definição não sectário, sempre aberto e plural, ademais de tolerante e avesso ao anonimato e fundamentalismo. Assim, que viva a crítica contundente, séria, bem fundada e leal, pois apenas com ela é que podemos construir uma sociedade livre e bem ordenada.
*Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Juiz de Direito no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (AJURIS).
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