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Denise Oliveira Cezar destaca o papel do Judiciário na garantia do acesso à saúde

Denise Oliveira Cezar destaca o papel do Judiciário na garantia do acesso à saúde

Desembargadora e ex-presidente da AJURIS é a entrevistada
desta semana do Especial XI Congresso Estadual de Magistrados.

 

A desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS) e ex-presidente da AJURIS (2006/2007) Denise Oliveira Cezar é o destaque desta semana do Especial XI Congresso Estadual de Magistrados. Em entrevista ao Departamento de Comunicação da AJURIS e transmitida pela Radioweb, a magistrada aborda o papel do Poder Judiciário na garantia do acesso à saúde aos cidadãos. O programa tem o objetivo de antecipar assuntos que estarão em pauta no Congresso promovido pela Associação e, com isso, estimular a apresentação de teses pelos magistrados.

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A magistrada caracteriza o case da saúde como o de maior sucesso em relação à efetivação de direitos na via judicial. A chamada judialização da saúde surgiu no país na década de 80, quando pacientes de AIDS ingressaram na Justiça para garantir o tratamento da doença por meio de um coquetel de drogas importado dos Estados Unidos. Naquela oportunidade, foi necessário uma quebra de paradigma histórica, de acordo com a entrevistada.

A doutrina clássica do Direito administrativo e do Direito constitucional não permitia que o Poder Judiciário interferisse nas opções políticas do Poder Executivo, e assim eram entendidas todas as efetivações de despesas. “O Judiciário superou esse impasse considerando da seguinte forma: ‘é verdade, o Judiciário não pode interferir nas políticas públicas, não pode interferir no orçamento do Poder Executivo, mas uma pessoa não pode morrer por falta de medicação.’ Esse foi o grande case que mudou a efetivação de direitos no Brasil”, salienta Denise.

A primeira edição internacional do Congresso será realizada de 24 e 26 de setembro, em Montevideo, capital do Uruguay. O prazo para inscrição de teses encerra nesta quinta-feira (10/9).  

Programação completa e outras informações AQUI.

 

Desembargadora Denise, como a senhora avalia a chamada judicialização da saúde? Isso tem alguma relação com efetivar direitos? 

Bem, Rodrigo, tem toda a relação e o case da saúde é, sem dúvida, o de maior sucesso em relação à efetivação de direitos na via judicial. Os direitos são criados para serem efetivados na via administrativa, pelo cumprimento das leis e pela efetivação de políticas públicas, em especial quando são direitos que se dirigem ao Estado, a serem exercidos frente ao Estado. Então, o cumprimento normal desses direitos é por meio da efetivação de políticas públicas que deem acesso a esses direitos à cidadania. O case da saúde é peculiar pelo seguinte, mesmo antes da promulgação da nova Constituição, quando já se falava de direitos fundamentais e de direitos fundamentais implícitos, nós não tínhamos toda a extensão de direitos implícitos na Constituição, aconteceu uma situação muito dramática sob o ponto de vista da saúde que foi a epidemia da AIDS.  Naquela oportunidade, a AIDS era vista como uma doença grave, irreversível, incurável e intratável. Havia pouca medicação e, na década de 80, se descobriu a AIDS e, ao longo dessa década, começou-se a fazer experimentos de diversos medicamentos e um deles foi o chamado coquetel de diversas drogas diferentes que começou a ser empregado em caráter experimental para o tratamento da AIDS nos Estados Unidos, ainda em nível de pesquisa. O resultado, a eficácia do tratamento pelo coquetel foi fantástica. Pessoas que estavam à beira da morte, sem qualquer perspectiva de tratamento, reverteram a doença e ficaram equilibrados. Essa notícia se espalhou muito rapidamente pelo mundo, chegando ao Brasil, e pessoas que estavam sem a menor chance de tratamento começaram primeiro a pedir importação desses medicamentos, que era proibida porque se tratava de medicamentos não registrados, então foi a primeira leva de ações. Pessoas que tinham recursos entravam com o pedido de importação junto ao Judiciário, que deferia.

A sociedade civil se organizou muito rapidamente, por meio das organizações não governamentais constituídas para proteger direitos de doentes da AIDS, e começou a postular contra o Estado o fornecimento dessa medicação que não era registrada, justamente sob o fundamento de que o Estado, diante do direito fundamental previsto na Constituição de acesso à saúde, teria de fornecer a única medicação existente que poderia evitar a morte daquelas pessoas. Naquela oportunidade, o Estado teve que enfrentar uma quebra histórica de paradigma, porque até então a doutrina clássica do Direito administrativo e do Direito constitucional não permitia que o Poder Judiciário interviesse nas opções políticas do Poder Executivo, e assim eram entendidas todas as efetivações de despesas. Toda a despesa que tivesse que ser feita pelo Executivo era considerada uma questão administrativa interna e a intromissão do Poder Judiciário era considerada como uma ofensa à necessária independência dos poderes. Então, foi necessário, naquela oportunidade, o Judiciário superar essa dificuldade e isso foi feito por meio da aplicação da teoria dos direitos fundamentais, notadamente por influência de um doutrinador alemão, o Robert Alexy, que doutrinava que nessas situações quando há uma colisão entre princípios, no caso o princípio da independência dos poderes e no outro caso o princípio que assegura ao cidadão o direito à saúde, tende a haver uma composição entre os dois. Quer dizer, um não pode ser descumprido nem o outro. Os dois tem que ser balanceados e temos que ver “bem, então como vamos fazer?”. O Judiciário superou esse impasse considerando da seguinte forma: “é verdade, o Judiciário não pode interferir nas políticas públicas, não pode interferir no orçamento do Poder Executivo, mas uma pessoa não pode morrer por falta de medicação.” Esse foi o grande case que mudou a efetivação de direitos no Brasil. 

A interferência do Poder Judiciário no caso da judicialização da saúde ocorre pela ineficiência do Executivo? 

Veja bem, esse case da AIDS foi perfeito, porque pouco tempo depois, com uma grande repetição de ações, o Poder Público elaborou uma política pública que dá conta de forma perfeita e eficaz da atenção à saúde para AIDS. Quer dizer, ele aprendeu a lição de casa e fez a coisa certa. Mas depois que a porta está aberta, todas as outras pessoas que sofriam de outras doenças e que não tinham acesso a tratamento também começaram a buscar o Judiciário, porque há muitas doenças graves fundamentais e, muitas vezes, as pessoas não têm acesso a tratamento. Então, começou o que nós chamamos hoje de judicialização da saúde. Esse fenômeno atual, não aquele da década de 80,90, em que nós temos milhões de processos envolvendo à saúde e que todo âmbito da política pública está sendo trazido a juízo, isso que se tornou a judicialização. Bem, isso é ineficiência ou não é ineficiência? Não podemos ser simplistas nessa questão. O que acontece é o seguinte, o Poder Público tem diversas demandas para serem atendidas, de educação, de saúde, de segurança. Qual é a prioritária de todas elas? Isso nós não podemos dizer aprioristicamente, nem a Constituição diz aprioristicamente qual é a mais importante. A Constituição diz o seguinte: é necessário que a União empregue tanto na saúde, o Estado tanto e o município tanto. Estabelece receitas orçamentárias. Agora, o que acontece hoje, no meu ponto de vista, e por isso a judicialização é incrementada, é que a administração é muito burocratizada e lenta na incorporação de novas tecnologias e no estabelecimento de políticas públicas que possam ser adequadas. O que acontece na maior parte dos casos que envolvem saúde, os pedidos são feitos a partir de requisições dos médicos do SUS. A pessoa vai no médico do SUS, que diz que o medicamento que está na lista não é possível de ser empregado naquele caso. Que situação, quer dizer, o próprio sistema não da conta de si próprio.

Como é para o magistrado lidar com decisões que, muitas vezes, tem a ver com a sobrevivência das pessoas? 

É para o magistrado como seria para qualquer outro ser humano. Tu imagina que uma pessoa te procure e te diga o seguinte: “Rodrigo, está nas tuas mãos decidir sobre a minha vida. Eu tenho uma doença grave, está aqui o atestado médico. Já fiz todos os tratamentos que o SUS oferece e nenhum deles obteve resultado e agora existe a possibilidade, que é a ultima que eu tenho, de lançar mão de uma medicação que não está na lista do serviço público”. São situações diferentes, nem sempre são casos de vida ou morte, às vezes são casos de risco de invalidez ou de perda da condição de viver em sociedade devido a uma doença psíquica. Então são situações que sempre a pessoa está frente a uma possibilidade de perda da sua dignidade enquanto ser humano. Se tu, Rodrigo, tivesse colocado nas tuas mãos essa decisão e a outra face da balança fosse “mas o Estado não vai ter como pagar ou não sei de onde o Estado vai tirar esse dinheiro”, qual a ponderação entre um valor e outro, entre a vida, a dignidade, a saúde de uma pessoa e uma questão patrimonial que certamente poderá ser resolvida? Claro que nós estamos falando de decisões do caso a caso, microdramas, evidentemente que quem estabelece a política pública e quem administra tem que pensar no todo. Agora, se existe – e no meu pensamento existe uma disfuncionalidade no sistema como um todo – ela precisa ser corrigida sem o sacrifício das vidas.

E essas decisões são, em regra, sempre cumpridas? 

Olha, quando elas não são cumpridas, elas são cumpridas. Te explico. Também foi outra quebra de paradigma que aconteceu muito peculiar nesses casos que é o seguinte: em situações muito excepcionais admite-se o sequestro de verba pública. Então, por exemplo, há previsão na Constituição do sequestro de verbas públicas quando é descumprida a ordem do pagamento dos precatórios, quer dizer, quando há o favorecimento, um que está depois vem e recebe o dinheiro. Ou quando o Estado deixa de honrar o parcelamento constitucional do precatório. Olha, são três ou quatro situações em que o ordenamento jurídico admite o sequestro. No curso da judicialização da saúde, nós tivemos esse problema, os juízes deferiam as liminares e o Poder Público não cumpria. E então, mais uma vez quebrando um paradigma, o Judiciário disse “bem, o risco de ineficácia é absoluto”. Por quê?  Porque se a prestação não for efetivada corre-se o risco de o processo perder a sua finalidade. Se a pessoa morrer, o que vai adiantar ele depois cumprir a sentença? Então, quando as liminares não foram cumpridas, o Judiciário começou a autorizar ou mesmo a realizar o sequestro de verbas públicas. O Judiciário começou a entrar diretamente na conta do Estado e sequestrar o valor suficiente para a aquisição do medicamento, do insumo, mediante prestação de contas. Então, hoje, nós não temos mais o problema do cumprimento, pelo menos enquanto há dinheiro no caixa do Estado.

E isso volta naquilo que a senhora tinha dito antes, de ser uma interferência do Poder Judiciário no Executivo. Uma interferência para o bem, digamos assim. 

A questão aqui é a seguinte: quando nós estamos frente a dois princípios constitucionais, é uma regra de hermenêutica, interpretação. Quando nós estamos frente a dois princípios constitucionais não podemos interpretar de forma que um fique totalmente esvaziado. Então, se eu digo que a independência entre os poderes é tão prevalente sobre o direito à saúde que eu não vou interferir e nada vai ser feito, que a pretensão não vai ser feita, nós estamos aniquilando qualquer eficácia normativa do direito à saúde, então temos que contrabalancear.

O Poder Judiciário gaúcho, desembargadora Denise, está preparado para atender a essa elevada e crescente demanda? E que ações são necessárias objetivando o aumento dessa efetividade? 

O Poder Judiciário está preparado, tem dado conta dessa demanda com muito sacrifício, e realmente com os servidores e os magistrados trabalhando além daquilo que seria admissível, em prejuízo até de outras demandas de maior complexidade jurídica, mas de menor talvez relevância social. E isso, claro, gera uma insatisfação em relação aqueles outros que acabam sendo preteridos por essa demanda avassaladora da saúde. Essa disfuncionalidade tem que ser satisfeita. Penso que nós estamos dando um passo adiante, que é arriscado, mas que pode dar conta melhor desse sistema e desafogar um pouco uma via preferencial da Justiça, que é a implantação, a partir do mês de julho deste ano, da lei que instituiu o Juizado Especial da Fazenda Pública, que previu uma implantação gradual da obrigatoriedade da submissão dos processos ao sistema dos Juizados especiais. Agora, praticamente 90% dos processos da saúde, que são de valor inferior ao máximo permitido em lei, deverão ir para a vala dos Juizados especiais, liberando a Justiça comum para aquelas questões de maior complexidade. Isso vai ter um efeito, do ponto de vista organizador, porque vai diminuir a pulverização das decisões, vai haver uma concentração das decisões e com isso, talvez, se consiga ajudar, não apenas o Executivo, porque esse é um trabalho que tem que ser feito por muitas mãos com a colaboração de toda a sociedade, do Executivo, das outras instituições autônomas, da sociedade civil organizada, para dar um rumo na questão da saúde e deixar mais funcional, organizado, eficaz e econômico o sistema de saúde.

Desembargadora, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul é reconhecido como um dos mais eficientes do país. A senhora credita isso a quais fatores?

Bem, primeiro a nossa tradição positivista, no melhor dos sentidos, que nos legou a todos os gaúchos, não apenas aos servidores e magistrados, uma cultura do sacrifício, quase que estoica. Nós trabalhamos muito, nós gaúchos somos até meio neuróticos, conhecidos no Brasil inteiro por sermos meio neuróticos. Isso, evidentemente, faz com que se produza bastante. Então, acho que é da cultura do Rio Grande do Sul o amor ao trabalho, à dedicação, “primeiro o dever, depois o prazer”, essas coisas todas que a gente aprende em casa desde pequenininho e que depois até tenta se livrar e não consegue. Passa uma vida inteira trabalhando e se dedicando, tendo espírito público, se sentindo obrigado a produzir. Isso é uma das características do nosso povo. O Judiciário, até por conta das grandes figuras que nós tivemos ao longo da história, também construiu um conceito de excelência que é muito caro. Cada um, quando faz o concurso para juiz e ingressa na Magistratura, cada servidor quando faz o concurso e ingressa nos serviços judiciais, sabe disso, que o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul é visto pelo Brasil inteiro como um Poder Judiciário de excelência. Então a pessoa já entra, digamos assim, “olha eu não posso também deixar a peteca cair, preciso continuar correspondendo”. Eu acho que esse caldo de cultura, de dedicação dos magistrados e servidores, construído a partir da cultura geral do país e desse conceito particular do Poder Judiciário, é que são responsáveis pela manutenção permanente dessa conquista.

É claro também, isso é muito importante, que nós tivemos um grande incremento nas condições materiais de trabalho no Judiciário a partir do momento em que conquistamos autonomia orçamentária e, como o Judiciário não tem partido, diferente do Executivo que os partidos se alternam muito frequentemente e lamentavelmente há descontinuidade nas políticas administrativas por conta dessa alteração de grei partidária no comando, no Judiciário isso não existe. Existe, realmente, uma continuidade, administrativa. Cada presidente continua, não desfaz o que o outro fez porque o outro era de outro partido. Isso também é um valor positivo para nós. E, por fim, para não ficar muito longo, a questão dos depósitos judiciais, essa conquista da percepção do spread bancário sob os depósitos judiciais, não os depósitos em si, mas o fato do Judiciário em 2011 pela mão do presidente Luiz Felipe Vasques de Magalhães, com auxílio de grandes magistrados, como o Rinez da Trindade, ter conseguido fazer aprovar na Assembleia Legislativa esse projeto de lei que transfere esse dinheiro que antes ia para o banco para ser empregue no fundo de reaparelhamento do Poder Judiciário fez com que toda a sociedade fosse beneficiada com incremento de prédios, de equipamentos de informática, enfim, tudo aquilo que modernizou barbaramente o Poder Judiciário.

 

 

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