10 set Democracia com ou sem máscaras? A liberdade de reunião e manifestação, por Ingo Wolfgang Sarlet
Que um Estado Democrático de Direito não pode dispensar as liberdades fundamentais de comunicação, dentre as quais despontam as liberdades de reunião e manifestação, resulta inequívoco e representa também conquista vital da democracia brasileira, especialmente desde a Constituição Federal de 1988, que consagrou o direito de toda e qualquer pessoa reunir-se e expressar a sua opinião de forma pacífica e sem armas. Tal direito fundamental, considerando as frequentes e intensas manifestações que têm sacudido o Brasil, especialmente, ao menos na última década, desde meados de 2013, vem ocupando as primeiras páginas dos principais periódicos, da mídia em geral e das redes sociais na internet, atraindo um debate acalorado sobre os seus limites e a legitimidade de intervenções do poder público, especialmente quando se trata de coibir abusos e atos de vandalismo de toda a espécie.
É nesse contexto que assume relevância o fato de que a liberdade de reunião implica também deveres de proteção estatais, que envolvem prestações de segurança para o exercício do direito de reunião, devendo o poder público assegurar aos participantes da reunião o livre exercício e sem perturbações do seu direito, o que envolve a proteção contra grupos de oposição, evitando que os participantes sejam agredidos ou submetidos a riscos. Dentre tais medidas debate-se, por exemplo, a prévia identificação dos manifestantes e mesmo a proibição do uso de máscaras ou similares, o que foi até mesmo objeto de projetos legislativos.
Como se dá com as liberdades fundamentais em geral, os direitos de reunião e de manifestação não são direitos absolutos, pois esbarram em limites previstos na própria Constituição Federal (que protege apenas reuniões pacíficas e sem armas) e na legislação, especialmente pelo fato de o exercício de tais direitos impactar outros direitos fundamentais da cidadania, inclusive e também constitutivos para a democracia, como as liberdade de locomoção, a segurança e a saúde públicas, entre outros. Como dispõe o artigo 15 da Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil, o exercício desse direito só pode ser objeto de restrições que, sendo previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.
É diante desse pano de fundo que atualmente se há de debater acerca da legitimidade constitucional de uma série de medidas que importam em intervenções do Estado em relação às manifestações por meio de reuniões e que vez por outra tem sacudido o país. Que a identificação e detenção dos autores de atos de violência pessoal e patrimonial é desde logo legítima, não é preciso aqui sublinhar e desenvolver, desde que, é claro, sejam respeitados os parâmetros constitucionais e legais e afastado todo e qualquer abuso por parte da autoridade pública. Mas existe toda uma gama de medidas interventivas, que, a despeito do objetivo de assegurar o pleno exercício da liberdade de reunião e salvaguardar direitos de terceiros, nem sempre corresponde aos requisitos constitucionais, importando mesmo em violações dos direitos de reunião e de manifestação.
Assim, ao passo que o uso de qualquer tipo de arma, compreendida a noção como abrangendo todo e qualquer instrumento que possa ser utilizado como meio de agressão, tem sido corretamente tido como vedado, o mesmo, contudo, já não parece ocorrer em relação ao uso de instrumentos destinados à proteção, tais como elmos, escudos, máscaras, que objetivam, em primeira linha, resguardar os participantes da reunião e não são utilizados para fins de agressão. Aqui prevalece o entendimento de que por si só a utilização de tais objetos não se enquadra na noção de armas e não desnatura o caráter pacífico de uma reunião. Já por tal razão, a legislação que venha a proibir pura e simplesmente o uso de máscaras importa em restrição ilegítima da liberdade de reunião e de manifestação. Embora a Constituição Federal, quanto ao exercício da liberdade de manifestação do pensamento (individual e coletiva) expressamente proíba o anonimato (artigo 5º, inciso IV), tal proibição não resulta inconciliável com a possibilidade do uso, desde que de modo pacífico, de máscaras ou congêneres pelos manifestantes.
Convém recordar que, desde o período das tragédias gregas, o uso de máscaras assume precisamente uma determinada forma de expressão do pensamento, um meio de comunicação, não podendo ser, pelo menos não como regra e salvo circunstâncias muito particulares, genericamente proibido. Outro aspecto digno de nota, especialmente tendo em conta a ocorrência de atos de violência no contexto das manifestações verificadas nos últimos tempos, manifestações que (afastada a violência) têm injetado uma saudável e necessária dose de indignação popular em relação aos descaminhos e perversões no campo de nossa democracia representativa, é o fato de que a mera previsão pelas autoridades de que possam ocorrer atos de violência ou tumultos não basta por si só para legitimar a proibição da reunião, sendo necessário, como pontua a doutrina constitucional dominante, que existam atos de violência que caracterizem a reunião como tal e que não advenham de uma minoria de participantes. Pelo contrário, em ocorrendo atos de violência contra os manifestantes pacíficos, o poder público deverá intervir para proteger a liberdade de reunião e os seus participantes.
Disso tudo resulta que apenas a clara indicação de que a reunião está afetando concretamente a segurança pública poderá justificar as restrições mais gravosas do direito de reunião, como é o caso da proibição e da dissolução, o que deverá sempre ter caráter excepcional e quando evidentemente não existir outro meio de proteger direitos fundamentais essenciais de terceiros e dos próprios manifestantes. A mera ocupação temporária (desde que, é claro, observados os demais requisitos da liberdade de reunião) de rodovias, praças e outros locais públicos, desde que não impeditiva de vias minimamente razoáveis de deslocamento, não poderá justificar a proibição e dissolução da reunião e muito menos amparar atos de violência contra os manifestantes, incluindo aqui a proibição do uso de máscaras. Com isso, todavia, não se confunde a legítima possibilidade de identificação dos manifestantes, com ou sem máscara, quando forem flagrados incorrendo em atos de violência e que desbordem dos limites legítimos (reunião pacífica e sem armas) da liberdade de reunião, de modo a assegurar a sua regular e ulterior responsabilização.
Em síntese, o propósito legítimo de proteção de terceiros contra o exercício da liberdade de reunião não poderá jamais resultar no silenciamento da voz (ainda que esta possa causar algum incômodo vez por outra) das “ruas”, que, afinal, é a voz do povo, legítimo titular da soberania num Estado Democrático de Direito.
Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Juiz de Direito no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris).