10 abr Controle de convencionalidade dos tratados internacionais, por Ingo Sarlet
Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Sarlet, publicado na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.
Independentemente da posição pessoal adotada, em prol de uma “hierarquia” constitucional (no sentido de uma paridade entre a constituição e os tratados e resolução do conflito com base em critérios não hierárquicos) de todos os tratados em matéria de direitos humanos ratificados pelo Brasil, é possível afirmar que, tanto os tratados incorporados pelo rito previsto no parágrafo 3° do artigo 5° da Constituição Federal, quanto os demais tratados ratificados por maioria simples e aprovados até o advento da Emenda Constitucional 45/2004 (que, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, possuem hierarquia supralegal), ensejam a possibilidade de aferição da compatibilidade entre tais atos normativos e os tratados. Isso, como já referido, ficou evidenciado na decisão do STF sobre a proscrição — mediante um efeito “paralisante” — da eficácia de toda e qualquer hipótese legal prevendo a prisão civil do depositário infiel, seja ela criada antes da aprovação do tratado, seja ela introduzida posteriormente[1]. Assim, sem que se vá aqui adentrar o tema específico da prisão civil e do acerto da decisão do STF no concernente ao tema, o que importa nesta quadra é a constatação de que se cuidou da primeira vez em que a mais alta Corte brasileira efetuou o que passou, também no Brasil, a ser chamado de um controle de convencionalidade, pelo menos no sentido de afastar a aplicação de norma interna de matriz infraconstitucional.
A terminologia adotada e difundida no Brasil por Valério Mazzuoli (em adesão à tradição francesa) busca evidenciar a distinção entre o controle de constitucionalidade, pois independentemente de sua hierarquia constitucional, trata-se de afirmar que os tratados (aqui referidos pelo termo convenções) operam como parâmetro para o controle de outros atos normativos que lhes são — ou não — hierarquicamente inferiores.
A partir do que até agora foi sumariamente exposto, já é possível avançar com o tema e esboçar algumas considerações preliminares, todas, contudo, sujeitas ao crivo do contraditório e aguardando a evolução da prática política e jurisdicional brasileira. Assim, importa sublinhar, não faremos referência a experiência de outros países na matéria e nem ao que se processa na esfera da jurisdição supranacional, para o que, desde logo, remetemos à literatura especializada[2].
Uma primeira observação diz respeito ao fato de que a presente abordagem parte do pressuposto (em si merecedor de críticas!) de que, de acordo com a atual orientação do STF, há que distinguir entre os tratados aprovados pelo rito do artigo 5º, parágrafo 3º, CF, dotados de valor jurídico equivalente ao das emendas constitucionais, dos demais tratados, aprovados pelo Congresso Nacional por maioria simples e antes da entrada em vigor da Emenda Constitucional 45, de 2004. Todavia, a despeito das diferenças entre as duas espécies de tratados, o elo comum entre os mesmos é o de que, o simples fato de prevalecerem, por força da sua superior hierarquia e do caminho trilhado pelo próprio STF, sobre a normativa legal interna, lhes garante a condição de parâmetro do controle de convencionalidade. Tal controle, assim como ocorre no caso do controle de constitucionalidade, se dá, portanto — em sintonia com a orientação privilegiada pelo STF! — em virtude da hierarquia das normas. Da mesma forma não parece correto, salvo melhor juízo, distinguir, para efeitos do controle de convencionalidade, apenas uma parte dos tratados de direitos humanos, buscando definir convenções (ainda mais para o efeito ora discutido) como sendo uma espécie do gênero tratados, que, em virtude de determinadas peculiaridades, deveriam então ser incorporados pelo rito do artigo 5º, parágrafo 3º, da CF, ao passo que os demais tratados de direitos humanos poderiam então ser aprovados por maioria simples no Congresso Nacional.
O que de fato passa a ser relevante é que a diferença entre tratados com status equivalente aos de uma emenda constitucional e os demais tratados, dotados de hierarquia supralegal nos termos da orientação imprimida pelo STF, reside no fato de que os primeiros passam a integrar (para efeito interno) o bloco de constitucionalidade, e, portanto, operam como parâmetro tanto de um controle de constitucionalidade como de um controle de convencionalidade, já que o tratado não se incorpora ao texto constitucional propriamente dito. A dificuldade maior, nesses casos (por ora apenas o da Convenção das Pessoas com Deficiência e seu respectivo Protocolo Facultativo), será a de verificar, dadas as circunstâncias, a existência de eventual conflito entre o tratado aprovado e as cláusulas pétreas da constituição na sua versão originária, situação na qual, a prevalecer a posição do STF no sentido de que o embate entre tratado e constituição se resolve, em princípio, em favor da segunda, poderá resultar na declaração de inconstitucionalidade do tratado internacional (em verdade, do texto aprovado pelo Congresso Nacional). Tal hipótese, contudo, ainda não foi objeto de apreciação pelo STF e, de resto, caso venha a ocorrer o será em caráter isolado, especialmente pelo fato de que a CF é pródiga em direitos fundamentais e consagrou — expressa e/ou implicitamente — praticamente todos os direitos consagrados nos principais documentos internacionais, mas também pelo fato de que se haverá de recorrer à técnica da interpretação conforme a constituição, que, s.m.j., limitará ainda mais tal possibilidade, ainda que esta não possa ser afastada de plano.
Quanto aos tratados que, de acordo com o STF (visto que a nossa posição pessoal sempre foi favorável à simetria entre tratados e CF, abandonando-se, ademais, a lógica hierárquica para tal efeito), possuem hierarquia supralegal, podem ser vislumbradas já algumas alternativas: a) incompatibilidade entre a normativa interna infraconstitucional e o tratado aprovado pelo Congresso Nacional, mas compatibilidade com a CF; b) incompatibilidade com o tratado e com a CF; c) compatibilidade com o tratado e com a CF; d) compatibilidade com o tratado, mas desconformidade com a CF;
O quadro sumariamente apresentado revela que a duplicidade de regime criada pelo STF para os tratados de direitos humanos, mas especialmente o fato de o STF afirmar a sua competência para realizar o controle (difuso e concentrado) de constitucionalidade do tratado, tornam a questão ainda mais complexa, além de colocar o controle de convencionalidade — pelo menos no âmbito interno brasileiro — em uma condição subalterna ao próprio controle de constitucionalidade. De todo modo, isso não deveria servir de escusa para que os Juízes e Tribunais ordinários renunciem ao controle de convencionalidade, já que mesmo a hierarquia supralegal já se revela suficiente, como já se viu quando do julgamento do caso da prisão civil do depositário infiel, para superar toda e qualquer lei ou ato normativo interno naquilo que contraria tratado internacional de direitos humanos. Cuida-se, ademais, de autêntico poder-dever cometido ao Poder Judiciário, seja no âmbito de um controle difuso, seja pela via de um controle abstrato e concentrado, aspecto que aqui não temos a intenção de desenvolver.
Nesse contexto, chama a atenção o argumento de que a utilização da lógica da hierarquia, mesmo no caso de norma nacional decorrente de tratado internacional, não representa um autêntico controle de convencionalidade, mas sim, de constitucionalidade, o que não se revelaria compatível com o controle de convencionalidade, visto que, nesse caso, o que se aplica na solução de eventuais conflitos normativos são critérios materiais[3] Embora se possa concordar com a segunda parte do argumento, o qual busca apostar em critérios materiais e não mais num modelo baseado na hierarquia, pelo menos duas questões atraem um contraponto. Em primeiro lugar, nem toda relação de hierarquia, por ser hierárquica, equivale a um controle de constitucionalidade, pois há também um controle de legalidade, que, a depender do caso, opera de acordo com a mesma lógica. Além disso, embora a pessoal concordância com a tese — bem esgrimida no texto ora citado — de que o correto seria abandonar o esquema hierarquizado e adotar os critérios do pro homine ou pro persona –[4], não é o que, ao que tudo indica, o que STF acabou chancelando ao adotar a tese da supralegalidade, ademais de frisar que os tratados em geral (ressalvada aqui a discussão em torno daqueles aprovados pelo rito do artigo 5º, parágrafo 3º,da CF) encontram-se submetidos à CF e são passíveis de controle de constitucionalidade.
Por outro lado, há que considerar que o controle de convencionalidade (interno) não é um controle exclusivamente jurisdicional igualmente há de ser sublinhado e talvez possa merecer alguma atenção adicional como hipótese plausível. O Poder Legislativo, quando da apreciação de algum projeto de lei, assim como deveria sempre atentar para a compatibilidade da legislação com a CF, também deveria assumir como parâmetro os tratados internacionais, o que, de resto, não se aplica apenas aos tratados de direitos humanos, mas deveria ser levado ainda mais a sério nesses casos. Não se pode olvidar que legislação interna incompatível com algum tratado ratificado pelo Brasil e que esteja em vigor na esfera supranacional configura violação do tratado, cabendo ao Poder Legislativo operar de modo preventivo também nessa seara.
Da mesma forma, o Chefe do Executivo poderia vetar lei aprovada pelo Legislativo quando detectar violação de tratado internacional, ainda que não se cuide aqui de um veto justificado pela eventual inconstitucionalidade da lei, a não ser no caso de tratado aprovado pelo rito do artigo 5º, parágrafo 3º, da CF, onde, pelo menos assim o sugerimos, o tratado — mesmo de acordo com o entendimento do STF — integra, ao menos em geral, o bloco de constitucionalidade brasileiro, para além de integrar também um “bloco de convencionalidade”. De qualquer sorte, cuida-se de tópico a merecer desenvolvimento pela doutrina especializada e que poderá lançar maior luz sobre o tema do que aqui fomos capazes de fazer.
[1] Cf. especialmente o voto do Ministro Gilmar Mendes no RE 466.343, Rel. Ministro Cezar Peluso, publicado no DJ em 05.06.2009.
[2] V. por todos, especialmente pela inclusão de diversas contribuições de diversos países (cuida-se de um panorama latino-americano) e com enfoques em parte distintos, a obra coletiva coordenada por Valério Mazzuoli e Luiz Guilherme Marinoni, Controle de Convencionalidade, Brasília: Gazeta Jurídica, 2013. Por último e no plano monográfico, v. Marcelo Ramos Peregrino Ferreira, O controle de convencionalidade da Lei da Ficha Limpa. Direitos Políticos e Inelegibilidades, Rio de Janeiro: lumen Juris, 2015.
[3] Cf. Luiz Guilherme Arcaro Conci, “o controle de convencionalidade como parte do constitucionalismo transnacional fundado na pessoa humana”, in: Revista de Processo, vol. 232, Jun. 2014, p. 3.