17 ago A audiência de custódia, por Ingo Wolfgang Sarlet
Artigo publicado em 17 de agosto de 2015, no Caderno
Colunistas do jornal O Sul
O dia 30 de julho de 2015 marca a adesão oficial, mediante a implantação de um plano piloto para a Comarca da Capital do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul (por iniciativa da Presidência do Tribunal de Justiça e da Corregedoria-Geral de Justiça), à assim designada audiência de custódia, nome atribuído ao instituto da apresentação do preso à autoridade judiciária, tal como previsto tanto na Convenção Americana dos Direitos Humanos, quanto no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ambos ratificados pelo Brasil há mais de 20 anos.
Embora a audiência de custódia, na forma regulamentada que ora tem sido gradualmente assumida pelo Poder Judiciário, induzido pelo Conselho Nacional de Justiça, seja algo recente, cumpre noticiar que magistrados gaúchos, já na década de 1990 (portanto na sequência da ratificação dos tratados acima referidos), buscaram organizar um sistema de apresentação imediata dos presos em flagrante ao plantão judiciário, o que deu azo a uma orientação da Corregedoria-Geral de Justiça do RS recomendando tal providência a todos os juízes criminais do RS. Ainda que a iniciativa tenha, como já se era de imaginar, esbarrado em resistências de toda ordem, inclusive no seio da própria magistratura, a referência que aqui se faz tem o intuito de render justa e merecida homenagem aos que (e não apenas no RS, é claro) desde cedo tomaram ciência e consciência do caráter imperativo da providência e da necessidade de harmonizar o nosso em parte vetusto processo penal com as diretrizes dos Direitos Fundamentais da Constituição de 1988 e do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
De todo modo, em que pesem os respeitáveis argumentos em sentido contrário, parece-nos que se está mesmo – como não é incomum entre nós – promovendo, à feição de Shakespeare, “muito barulho por nada”, ou pelo menos, por muito pouco.
Dentre os motivos dos que resistem podem ser colacionados até mesmo argumentos desvestidos de um mínimo de juridicidade, não tendo faltado quem dissesse que não faria sentido cumprir convenção internacional uma vez transcorridos mais de 20 anos de sua ratificação, ou mesmo questionando a implantação gradual do instituto, mediante planos-piloto, por gerar uma discriminação em relação aos demais lugares onde não está sendo (ainda) oficialmente implantada.
Calha agregar que a audiência de custódia não tem como objetivo facilitar (ou dificultar) a prisão ou soltura de presos, mas sim assegurar um devido e informado procedimento para o controle tanto da legalidade da prisão quanto para prevenir ou mesmo viabilizar a investigação e sancionamento de eventual abuso de autoridade quando da prisão, especialmente no que diz com a garantia da integridade física da pessoa do preso. Eventual abuso de autoridade demandará investigação e, se for o caso, responsabilização pela via própria, mas por si só não é causa para a liberação do preso se presentes as hipóteses legais autorizativas. O que se está a promover é estabelecer um sistema mais eficaz de garantias, inclusive o de uma decisão mais informada e segura sobre eventual homologação da prisão em flagrante e/ou decretação de prisão preventiva ou concessão de liberdade provisória, mediante fixação de medidas alternativas.
Tudo somado verifica-se que a audiência de custódia, embora a necessidade de afinar algumas questões jurídicas e logísticas, além de atender, ainda que tardiamente, uma exigência do sistema internacional de direitos humanos, guarda sintonia com a nossa Constituição Federal e apenas aperfeiçoará o controle jurisdicional da legalidade das prisões, ademais de contribuir para assegurar com maior eficácia a integridade física do preso. Para tanto, o que mais se precisa, é de uma pitada de boa vontade e de um saudável diálogo institucional entre os atores envolvidos no processo.
Ingo Wolfgang Sarlet é Juiz de Direito e professor da PUCRS e da Escola Superior da Magistratura do RS