24 out ‘Racismo não se justifica’, por Karen Luise Vilanova Batista de Souza
Cada vez que o critério raça aparece como informador das reflexões de pessoas negras, pessoas brancas sentem-se legitimadas à desumanizá-las. A racialização do debate sobre as questões sociais causa incômodo e repulsa porque expressa de modo incontestável a hierarquização presente na nossa sociedade, fruto de privilégios compartilhados apenas entre poucos.
É nesses momentos que práticas racistas apresentam-se como forma de desestabilizar, ofender e neutralizar as denúncias e violências experimentadas pela população negra.
Recentemente, a sociedade gaúcha presenciou um desses episódios: artista nacional, homem negro, Seu Jorge era aplaudido enquanto se prestava a produzir entretenimento a pessoas brancas. No entanto, deixou de receber aplausos para ser provocado com ruídos de um macaco quando se manifestou politicamente problematizando as desigualdades raciais e a ausência de oportunidades para a população negra, bem como as incessantes mortes de jovens negros na sociedade brasileira.
Sendo assim, constatou-se uma divergência política que foi tratada no plano da hierarquia racial, culminando em comportamentos que se apresentaram em decorrência do legado do período que desumanizou pessoas negras, colocando-se a cor da pele como sinônimo de escravidão, na qual africanos e africanas foram animalizados.
Produzir ruídos de um macaco para um homem negro é desumanizá-lo, valendo dizer que ele não é detentor de racionalidade, de que suas palavras não fazem sentido, rejeitando-se suas reflexões, colocando-o em um lugar que não o legitima a dizer sobre nada que possa afetar as vidas humanas brancas ou contrariar seus interesses.
A escritora Grada Kilomba menciona que, no âmbito do racismo, a boca é um órgão de opressão por excelência e precisa ser controlado pelas pessoas brancas, porque sempre foi delas o direito de dizer, falar, sentir e expressar o que é certo ou errado, afirmando-se sobre as pessoas escravizadas.
Portanto, quando uma pessoa negra deixa de cumprir um projeto determinado pela branquitude a ela, pessoas brancas se sentem autorizadas ao silenciamento pela desumanização. A expressão artística do cantor serviu enquanto não se contrapôs à branquitude e até o momento que produzia o deleite das pessoas brancas que lá estavam.
O Brasil é marcado pela desigualdade entre grupos raciais com reflexos nas condições de vida da população que perpassam o âmbito laboral, passando pelo acesso a direitos básicos e alcançando os índices de encarceramento e de suscetibilidade à violência.
Segundo dados do IBGE, o Rio Grande do Sul possui uma população estimada em 11.508.820 milhões de pessoas, das quais 79% são brancas, 14,3% são pardas e apenas 6,2% são pretas, resultando numa população de 18,5% de pessoas negras. Em um Estado no qual a população preta possui uma taxa de homicídio de 33,1%, quase o dobro do parâmetro nacional para essa parcela, é possível dizer que existe o racismo tanto estruturalmente como no plano intersubjetivo, o que o torna um dos maiores problemas do Brasil.
Existem hierarquias raciais evidentemente marcadas que permitem a naturalização de mortes e constituem o modo normal de funcionamento das estruturas públicas e privadas. Nas palavras de Silvio Almeida, é possível dizer que o racismo é a regra, e não a exceção. Mais do que isso, existem hierarquias nas quais pessoas brancas sentem-se autorizadas a praticar atos racistas e discriminatórios.
Nossa sociedade está organizada de modo a estratificar as pessoas a partir de sua raça, em uma estrutura construída, que coloca corpos negros em condições de subalternidade, de subordinação e de sujeitos de direitos de segunda classe ou categoria, os quais, portanto, necessitariam menos atenção e distinção das políticas de Estado.
Arranjos sociais que nivelam os sujeitos são os mesmos que os discriminam, conferindo-lhes tratamentos diferenciados a partir da cor da sua pele, o que ocorre em todos os espaços.
Esses sujeitos, além de tudo, devem calar!
Se houve provocação do artista durante o entretenimento, isso é apenas um detalhe para o que realmente está por trás das manifestações que se seguiram.
Nenhuma manifestação de cunho político autoriza atitudes racistas ou discriminatórias e não pode ser tratada no plano da hierarquia racial.
Por conta disso, mesmo vivendo em uma sociedade democrática de direito, lamentavelmente pessoas negras acabam não tendo direito de efetuar/participar de qualquer tipo de manifestação sem que sejam “autorizadas” pela branquitude.
Até quando iremos viver o mito da democracia racial? Quanto tempo ainda teremos que esperar para que de fato possamos viver em uma sociedade justa e plural?
Espero estar viva para ver essas dúvidas sanadas!
Karen Luise Vilanova Batista de Souza
Juíza-auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e diretora do Núcleo de Direitos Humanos da AJURIS
*Artigo publicado no Caderno Doc do jornal Zero Hora na ediçao de 22 e 23 de outubro.