13 ago “Presídios superlotados, coronavírus e semiaberto ineficiente: o que pensa a nova juíza da VEC da Serra”, com Joseline Mirele Pinson de Vargas
Prestes a completar 10 anos de magistratura, a juíza Joseline Mirele Pinson de Vargas, 36 anos, retorna para Caxias do Sul. Ela assumiu a Vara de Execuções Criminais (VEC) Regional no final de junho, e já tem que enfrentar o primeiro surto de coronavírus em uma casa prisional da Serra. Na semana passada, 61 presos testaram positivo na Galeria A do Presídio Estadual, no Apanhador. A magistrada determinou medidas de restrições nas movimentações da maior cadeia da região, que abriga 1,1 mil apenados, e ressalta que a penitenciária possui uma Unidade Básica de Saúde (UBS) para prestar todo o atendimento necessário.
No total, a VEC da Serra é responsável pelo cumprimento da pena de mais de 5,5 mil apenados e as condições de 11 casas prisionais. Em uma entrevista por e-mail em razão do distanciamento social, a juíza Joseline citou os desafios da execução criminal neste momento de pandemia, a superlotação das casas prisionais da região e algumas mudanças que são necessárias para retomar a função do sistema penitenciária brasileiro.
Pioneiro: Como é o desafio de ser a juíza da Execução Criminal nesta crise do coronavírus?
Joseline Mirele Pinson de Vargas: Na realidade, ser juíza de uma VEC Regional sempre é um desafio. A VEC da Serra é a segunda maior do interior, só ficando atrás da Regional de Novo Hamburgo. Possuímos 11 casas prisionais para fiscalização e cerca de 5,5 mil processos em andamento, o que representa um volume significativo em uma Vara que grande parte dos pedidos são urgentes. Em relação ao coronavírus, entendo que até o presente momento as medidas preventivas adotadas pela Susepe tiveram resultados satisfatórios, considerando que o nosso Estado vem apresentando casos da doença desde março e somente agora, quatro meses depois, tivemos o primeiro caso de testagem positiva no interior de uma casa prisional da Serra, no caso a Penitenciária Estadual de Caxias do Sul (Apanhador). Além disso, estão sendo adotadas medidas para a contenção dos casos, dentre elas o isolamento daqueles apenados que testaram positivo para a covid-19, a suspensão da movimentação de apenados e de realização de audiências virtuais, assim como de visitas. De destacar que, na referida casa prisional, há uma UBS em pleno funcionamento, de forma que os presos que vierem a ser acometidos pela doença receberão o acompanhamento e tratamento necessários.
O risco de contágio têm ocasionado pedidos de soltura. É justificável enviar um preso ir para casa em razão da pandemia?
Os pedidos de prisão domiciliar em virtude do risco de contágio pela covid-19 têm sido constantes desde o início da pandemia. Esses pedidos não são analisados de forma genérica, coletiva, sendo sempre necessária a análise do caso concreto, da situação específica de cada apenado. Na sexta-feira passada, em virtude da notícia dos primeiros casos de testagem positiva no Apanhador, a Defensoria Pública apresentou pedido de concessão de prisão domiciliar especial, em favor dos apenados enquadrados em grupo de risco, pedido que foi indeferido em razão da necessidade da análise da situação individual de cada apenado. De qualquer forma, mesmo na análise individual, adotamos os parâmetros que têm sido utilizados pelo STJ, sendo necessário para a concessão da domiciliar que o apenado esteja inequivocamente enquadrado no grupo de vulneráveis do covid-19, comprove a impossibilidade de receber tratamento no estabelecimento prisional em que se encontra e demonstre risco real de que a permanência na casa prisional oferece um risco maior do que o ambiente em que a sociedade está inserida.
Como é enfrentada as superlotações nos presídios da Serra?
Na maior parte das nossas casas prisionais a taxa de ocupação é de três presos por vaga. Ou seja, trabalhamos com 300% da capacidade. A exceção é a penitenciária de Bento Gonçalves, inaugurada em outubro do ano passado, que está com 100% de sua capacidade. Atualmente, temos interdição no Presídio Regional de Caxias do Sul, no Instituto Penal de Caxias do Sul, que encontra-se desativado, interdição parcial no presídio de Vacaria e no presídio de Guaporé, bem como interdição na ala feminina do presídio de Canela. Quanto ao risco de ter presos em delegacias, é evidente que diante da falta de vagas no sistema podemos chegar a essa situação. Contudo, temos conseguido evitar que se chegue a esse ponto, permitindo que o preso ingresse no sistema e, a partir de seu ingresso, realizando as transferências possíveis, para administrar a ocupação nesse cenário de superlotação.
Como enfrentar o controle de facções dentro de cadeias?
A situação do domínio das facções decorre da falta de condições básicas e de violação de direitos dentro dos presídios. Se o Estado não consegue proteger o apenado e dar condições mínimas para o cumprimento da pena, o preso vai buscar auxílio, proteção nas facções, que muitas vezes fornecem, além de ajuda para subsistir dentro da casa prisional, cestas básicas para as famílias, orientação jurídica, pagamento de passagens para aqueles familiares que precisam se deslocar para visitar o apenado. Assim, começa uma dívida do apenado com a facção. Para as facções, quanto mais prendermos melhor, mais ela cresce, porque o Estado não consegue oferecer condições mínimas dentro dos presídios. Para reverter esse cenário, só modificando esse quadro de falência estatal dentro das casas prisionais. Temos que garantir saúde, trabalho, educação e assistência jurídica para os apenados.
Como está a ressocialização dos detentos nos presídios da Serra?
A pena teria, em regra, três funções: a função preventiva, a repressiva e a de ressocialização. No Brasil, prendemos muito e se evidencia que o cumprimento da pena não tem sido eficiente para reprimir a criminalidade. Não nos sentimos mais seguros, mesmo com o número crescente de prisões. Nossa taxa de retorno ao sistema prisional é de cerca de 80% dos apenados. Então, precisamos investir na ressocialização. Só que esse não é um trabalho só do Estado, também tem que envolver a comunidade em que o apenado está inserido. Precisamos fornecer estudo, trabalho para os presos, permitir que eles saiam do presídio com uma possibilidade real de encontrar seu sustento fora do crime. No Brasil, a maior parte da população carcerária é negra, pobre e jovem, são homens de até 30 anos e boa parte não tem pai registrado. Mais de 60% possui Ensino Fundamental incompleto. Muitos possuem problemas com drogadição. Há delitos menos graves, em que poderíamos evitar a prisão, encaminhar a pessoa para tratamento da dependência química, utilizar a justiça restaurativa, as penas restritivas de direitos. Enfim, precisamos discutir outras alternativas penais. Isso porque, gostem as pessoas ou não, não possuímos penas perpétuas no Brasil. A nossa realidade é que mais cedo ou mais tarde devolveremos os presos à sociedade e precisamos refletir sobre qual é o indivíduo que queremos receber de volta às ruas. Nessa linha, estamos trabalhando na VEC Regional, conjuntamente com o Ministério Público, dentre outras iniciativas, a possibilidade da instalação de um projeto do CNJ, chamado Escritório Social, que tem por finalidade realizar o acolhimento e encaminhamento das pessoas egressas do sistema prisional e seus familiares para as políticas públicas existentes como, por exemplo, encaminhamento para vagas de emprego, em escolas e assistência social.
Como está a situação do monitoramento eletrônico na Serra?
O monitoramento eletrônico na Serra vem funcionando de forma adequada. Atualmente, estamos conseguindo atender a demanda existente. Há um passivo de apenados aguardando a colocação do dispositivo, em razão deste período de pandemia, em que ficaram suspensas as instalações, que varia em cada Comarca. A tornozeleira eletrônica é eficiente para fiscalização da pena, uma vez que o monitoramento do apenado é constante, 24 horas por dia. Qualquer violação da rota ou da área em que o apenado está autorizado a circular, assim como interrupção de sinal, é comunicada e é apurada. Se o apenado não regulariza sua situação é considerado foragido, o que permite a expedição de mandado de prisão e retorno ao regime fechado. Assim, o controle do cumprimento da pena se torna muito mais eficaz, pois embora o apenado não esteja recluso, está em permanente controle. De destacar, ainda, que o monitoramento eletrônico é um sistema muito mais barato para o Estado do que investir na construção de estabelecimentos para cumprimento do regime semiaberto e aberto, os quais, nas comarcas em que ainda existem, tem uma estrutura precária com pouca ou nenhuma fiscalização.
No Brasil, muito se debate a impunidade e muitos reclamam que as penas não são cumpridas na sua totalidade. É preciso mudar o sistema de progressão de regimes?
Essa argumento não está correto. Primeiro, porque a pena não necessariamente precisa ser longa, ela precisa ser efetiva. Segundo, porque as penas são cumpridas na sua totalidade. Só há extinção da pena ao fim do prazo da condenação. Ocorre que a progressão de regime é a forma estabelecida pela legislação vigente, para que o apenado gradativamente se reintegre à sociedade. Sendo uma previsão legal, uma vez implementados os requisitos objetivos (relacionado ao tempo de cumprimento da pena) e subjetivo (referente ao comportamento do apenado) ela deve ser concedida pelo Judiciário. É evidente que, na prática, por falta de condições estruturais, os regimes semiaberto e aberto, não atendem aquilo que está previsto na Lei de Execução Penal. Na prática, eles não funcionam. Então, uma opção, diante do fato que já sabemos que estes regimes não dão certo, seria extinguir o regime semiaberto e aberto e investirmos em melhorias e maior número de vagas no regime fechado. A partir daí haveria progressão, mas para o livramento condicional, inicialmente com monitoramento eletrônico e, após, sem o monitoramento, pois como já dito o monitoramento eletrônico tem um custo muito menor para o Estado do que a criação de estabelecimentos para cumprimento de pena no semiaberto e aberto e tem uma fiscalização muito mais eficiente, 24 horas por dia. Entretanto, essa alteração somente poderia ser realizada por lei federal.
Há tempos se fala na falência do sistema penitenciário brasileiro. Existe solução?
Nós temos um problema extremamente complexo. Nossa população carcerária no Rio Grande do Sul aumenta em média 8% ao ano. Para atender esse número, precisaríamos de 2,5 mil vagas novas por ano, o que é inviável. Então, entendo que o caminho é a humanização no cumprimento da pena. Só que este não é um caminho fácil. São necessários investimentos relevantes por parte dos governos, em alternativas penais, para evitar a superlotação das casas prisionais, com a implementação de Centrais de Penas Alternativas (CIAP’s), política para egressos (através dos Escritórios Sociais), instalação de APAC’s (Associação de Assistência aos Condenados). É necessário que o Estado ocupe seu papel dentro dos estabelecimentos prisionais e forneça condições mínimas para o cumprimento da pena. Não se pode deixar espaço para as facções. Mas também não é suficiente apenas vontade política. É necessária uma conscientização da comunidade, que tem que olhar para os seus presos e refletir sobre qual é o indivíduo que quer receber de volta em sociedade. A comunidade tem que entender a importância de construir novos presídios, de fornecer os meios para o cumprimento da pena, de investir na recuperação do apenado, dar suporte aos egressos. Tudo passa pela implementação de políticas públicas, educação, saúde, trabalho, iniciativas que visem a ressocialização. Ressalto que na Pecan 1 (penitenciária de Canoas), onde foi implementado esse sistema de humanização da pena e de presença total do Estado dentro da Casa Prisional, o índice de reincidência é de apenas 20% (contra os 80% que é a média do nosso sistema prisional). Então, o caminho existe, mas é necessário investimento e participação de todas as instituições, inclusive da comunidade. É importante destacar, que o artigo 144 da Constituição Federal prevê que a segurança pública é um dever do Estado, mas um direito e responsabilidade de todos, então, algo que precisamos construir juntos.
Joseline Mirele Pinson de Vargas é juíza de direito e coordenadora do Departamento de Comunicação Social da AJURIS. Entrevista publicada no dia 12 de agosto de 2020 no site do jornal Pioneiro.