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ECA 30 anos: Desafios para garantir a proteção de crianças e adolescentes

ECA 30 anos: Desafios para garantir a proteção de crianças e adolescentes

Chegamos hoje ao terceiro e último capítulo da série de reportagens sobre os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Os conteúdos integram as celebrações dos 76 anos de existência da AJURIS, comemorados em 11 de agosto. 

Ao longo da semana, falamos sobre as diretrizes do ECA, resgatamos a história da consolidação da legislação no estado e as ações inovadoras do judiciário gaúcho. Hoje, propomos um olhar sobre os desafios para a garantia dos direitos da infância e juventude.

Durante as entrevistas para a série de reportagens, perguntamos aos entrevistados sobre os desafios para o próximo período. No texto, temos a visão da representante da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil, Marlova Noleto; do juiz de Infância e Juventude, Charles Maciel Bitencourt; e dos desembargadores José Antônio Daltoé Cezar, Leoberto Narciso Brancher e Vera Lúcia Deboni, que são referência na área. 

Pandemia

Devido à pandemia de coronavírus e às medidas de isolamento social, os riscos de violência contra crianças e adolescentes foram agravados. Com as escolas fechadas, onde grande parte das vítimas manifesta direta ou indiretamente os sinais da violência, os cuidados precisam ser redobrados por todos aqueles que mantêm contato com alguma criança. Vizinhos e parentes precisam ficar em alerta e denunciar os casos para a rede de proteção. 

Nesse cenário de distanciamento social, a jurisdição da infância e juventude também foi diretamente impactada, determinando a suspensão de prazos dos processos físicos. Segundo o desembargador José Antônio Daltoé Cezar, o Rio Grande do Sul é um dos poucos estados onde todos os processos da Infância e da Juventude ainda não são eletrônicos, impossibilitando o seu acesso em virtude do fechamento dos Foros.

“Então, por exemplo, crianças que já poderiam ser encaminhadas para adoção ou para o retorno da sua família estão tendo esse período estendido numa instituição que não é a melhor solução para elas”, destacou o magistrado

Daltoé lembra que a atual administração do TJRS está mobilizada para solucionar o problema com a digitalização desses processos, “tentando sanar um equívoco que foi deixado de lado durante vários anos”. O início da virtualização deve ocorrer em agosto e inclui mais de 2 milhões de ações do Judiciário gaúcho. “Nosso compromisso é exigir que os processos da Infância e da Juventude tenham prioridade nessa virtualização”, ressaltou o magistrado, que também é presidente da Associação Brasileira dos Magistrados da Infância e da Juventude (Abraminj). 


Politização dos Conselhos Tutelares

Para o desembargador Leoberto Brancher, pioneiro na aplicação da Justiça Restaurativa no país, um dos principais e mais antigos desafios é superar a politização criada em torno dos conselhos tutelares. “Os 

conselhos foram praticamente dominados por pretensões de bandeiras partidárias, de cabos eleitorais ou por agremiações religiosas, e hoje isto é um problema muito sério que nós temos: a desconexão com o propósito de cuidar da criança, colocando em primeiro plano perspectivas mais utilitárias da ocupação desses cargos”, criticou. 

Segundo o magistrado, a estrutura dos conselhos tutelares é rodeada de muitas dúvidas, relacionadas à sua natureza jurídica, à forma como está inserido dentro da estrutura jurídico-administrativa dos municípios, além da dimensão política de partilha de responsabilidades e poderes no âmbito dos conselhos de direitos. “Essas questões vieram num processo de acomodação que hoje nós poderíamos dizer: tiraram muito da potência sonhada para esta estrutura”, disse. 


Igualdade

Na visão da representante da Unesco no Brasil, Marlova Noleto, a existência de uma legislação como o ECA é motivo de celebração. No entanto, pondera que ainda é preciso avançar na garantia da igualdade. 

“Na ONU nós trabalhamos com a Agenda 2030, que é uma agenda que os países se comprometeram a implantar até o ano de 2030, e o nosso mote é dizer: “que ninguém fique para trás, que ninguém seja deixado para trás”, afirma. 

Ela ressalta  que é necessário assegurar a todas crianças e adolescentes o direito a uma educação equitativa, inclusiva e de qualidade, permitindo que todos não apenas ingressem na escola, como também tenham condições de permanecer estudando até o ensino médio.


Participação da sociedade 

“É preciso uma aldeia para criar uma criança”, o famoso provérbio africano, que fala sobre a responsabilização coletiva pelo desenvolvimento de uma criança, também está em sintonia com o que prega o ECA, conforme lembra desembargadora do TJRS Vera Lúcia Deboni: “O Estatuto estabelece que é dever do Estado, da sociedade e também da família garantir o pleno desenvolvimento da infância e da juventude”

No entanto, para garantir o que preconiza o ECA, ainda é necessário desmistificar a ideia que crianças e adolescentes são um problema, e ampliar a participação da sociedade. Na avaliação de Charles Bittencourt, nas comunidades onde a sociedade se envolve e participa, as crianças e jovens estão mais desenvolvidas e bem amparadas: “Quando fica delegado tão somente ao estado, as dificuldades são maiores”, lamenta, ao citar o acompanhamento dos conselhos e orçamentos como uma das formas de participar ativamente do processo.


Políticas Públicas

Para caminhar em direção a tão sonhada igualdade, um dos pilares é a realização de políticas públicas efetivas. No entanto, o Brasil assiste, nos últimos anos, a uma grave redução de investimentos, especialmente na área de educação. 

Como destaca o juiz de Direito Charles Maciel Bittencourt, coordenador do projeto Justiça Instantânea (JIN), “o Estado não pode se omitir, ele precisa estar presente e essa presença tem que ser em todos os setores, não apenas com a figura do policial militar”.

Charles Bittencourt reforça as determinações do ECA, ao afirmar a importância do acesso à educação e saúde, mas como também o direito ao lazer: “É preciso investir cada vez mais, pensar, criar e reforçar políticas públicas para que os nossos jovens possam ser provocados positivamente a um crescimento saudável, longe de grupos que estejam praticando atos equivocados, longe de facções”.

Para o titular do JIN, esse estímulo ao desenvolvimento saudável inclui também o investimento em arte e cultura, especialmente estimulando aqueles projetos já realizados nas comunidades.

Para a desembargadora do TJRS Vera Lúcia Deboni, os avanços na proteção à infância e juventude também passam pela qualificação das políticas públicas. “Quando comemoramos os 25 anos falamos que a legislação tinha muito o que avançar e isso continua existindo. Nós ainda temos muito o que avançar em especial na estruturação de políticas públicas que tenham maior abrangência”, afirma, destacando que as ações devem ser de acesso universal. 


Impedir retrocessos

A garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, assim com nas demais áreas, também sofre a influência da conjuntura social do país e das decisões políticas. 

Por isso, ao falar em evitar retrocessos na proteção à infância e juventude, também é preciso avaliar questões como a destacada por Charles Bittencourt: “Nós temos percebidos a redução de orçamentos públicos, e isso é lamentável. Quando um programa de desenvolvimento da educação exclui atividades de lazer e de cultura do currículo, isso preocupa muito. Com o devido respeito, é um retrocesso”.

Para Vera Deboni, é preciso atenção para que não a pressão de alguns segmentos não resulte em retrocessos na cidadania que foi garantida à crianças e adolescentes.


Reportagem: Joice Proença e Vinicios Sparremberger