02 jun “Quem cala não apenas consente, como também colabora com a perpetuação de práticas racistas”, diz juíza
Voz ativa no Judiciário contra o racismo, Karen Pinheiro é um dos 11, entre 800 juízes estaduais do RS, autodeclarados negros
Karen Pinheiro faz parte de uma minoria que não chega a 2% de uma categoria inteira no Estado: apenas 11 dos 800 juízes estaduais do Rio Grande do Sul são autodeclarados negros. Karen é uma voz ativa no Judiciário contra o racismo.
Como a senhora vê os episódios atuais de insurgência contra o racismo nos Estados Unidos?
A população americana clama por justiça. Assim como aqui, não há justiça racial. Negros e brancos não são tratados igualmente perante a lei e, especificamente no que diz respeito às polícias, há um evidente perfilamento racial — ato de suspeitar ou visar pessoa de uma determinada raça, por suas características ou comportamentos. Isso faz com que pessoas negras sejam potencialmente vistas como perigosas e criminosas e vivem em situação de vulnerabilidades perante o Estado, que insiste em elegê-las como alvo principal de suas condutas. Os Estados Unidos estão em chamas porque o povo negro clama por justiça. É um basta ao racismo e à desigualdade. São atos de violência? Sim. Mas são uma resposta à violência racial que atravessa por séculos e expressa-se no cotidiano de cada vida negra que tem as portas da vida digna em sociedade fechadas para ela.
Que lições a morte do George Floyd deixa pra nós brasileiros?
A morte de George Floyd não é em nada diferente a inúmeras mortes que ocorrem em nosso país diariamente. Isso faz refletir especialmente sobre tanto lá como aqui, são produzidas injustiças raciais diariamente. Necessitamos recusar o mito da democracia racial e reconhecer que o Brasil é um país racista, no qual são encarcerados e mortos mais homens e mulheres negros.
Relevante destacar que, embora no Brasil situações similares ocorram com muita frequência, existe uma ausência de sensibilidade a esses injustos, tornando evidente um dos elementos centrais do racismo, que é a naturalização. Olhares acostumados com práticas racistas não são tocados por violações de direitos de seres humanos que são vistos como inferiores.
A maior lição que esses episódios nos deixa é de que necessitamos urgentemente enfrentar o racismo, em todos os espaços, para que não precisemos ver a violência do opressor transformar-se na violência do oprimido. E a educação é o início de tudo.
Quem cala consente?
Quem cala não apenas consente como também colabora com a perpetuação de práticas racistas em todos os espaços, sustentando um sistema que está fundado na escravidão e na exploração de corpos negros desumanizados. Pessoas brancas precisam compreender que é de responsabilidade sua abrir mão dos privilégios que a cor da sua pele lhes concede e protagonizar a luta contra o racismo neste país. O antirracismo é o caminho para a igualdade.
Por que o racismo ainda é tão presente?
O racismo é presente no Brasil e no mundo porque os sistemas econômicos foram construídos com base na exploração de pessoas negras. A questão do racismo é fundacional da nossa nação. O fim da escravização foi declarado em 13 de maio de 1888, mas esse dia nunca terminou. O Brasil nunca resolveu a situação povo negro liberto, na medida em que não lhes deu condições de sobrevivência neste país de homens e mulheres livres, que permaneceram marginalizados e ainda indesejados em uma nação que pretendeu embranquecer-se ao longo dos anos.
A sua vara, o Júri, julga, na maioria, réus negros. Ter uma juíza negra traz um olhar diferente sobre o contexto dos casos?
Ingressei na Vara do Júri em Porto Alegre faz dois anos. Meu olhar para essa jurisdição é sim um olhar com perspectiva de raça. Nesses dois anos foram poucas as vezes que tive na bancada da defesa um advogado negro. Nunca estive acompanhada de um promotor de justiça negro. A minha presença tão somente em plenário já movimenta a estrutura. A sociedade percebe que é possível negros exercerem tal função. No que diz respeito ao andamento dos processos, o que vejo como fundamental é fazer daquele indivíduo negro que está sob julgamento ou vem a depor um sujeito que se possa escutar. Homens e mulheres negros veem o mundo e compreendem o mundo a partir do racismo. E essa compreensão todos devem ter: advogado, promotor, julgador. Portanto, o exercício da escuta é fundamental. Além disso, questionar, perceber quando o perfilamento racial está presente e buscar todas as possibilidades de solução de um processo, considerando que a cor da pele do indivíduo pode ser o único motivo pelo qual ele chegou até ali.
Por fim, estamos sempre buscando com os colegas ter um corpo de jurados com paridade de gênero e raça.
* Karen Luise Vilanova Batista de Souza, juíza de Direito do TJRS, é membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Entrevista concedida ao jornalista Daniel Scola e publicada no dia 02 de junho no site GaúchaZH.