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“Limita o combate à corrupção”, diz presidente da AJURIS sobre Lei de Abuso de Autoridade

“Limita o combate à corrupção”, diz presidente da AJURIS sobre Lei de Abuso de Autoridade

O jornal Zero Hora publica na edição deste final de semana entrevista da presidente da AJURIS, Vera Lúcia Deboni, para o jornalista Daniel Scola. O assunto é a Lei de Abuso de Autoridade. Confira abaixo:

A contrariedade da presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS) à Lei de Abuso de Autoridade começa pelo nome da norma. Vera Lúcia Deboni representa 1,5 mil juízes e desembargadores gaúchos que, segundo ela, estão inconformados com a nova lei. 

— É mais grave que mordaça. É uma lei de controle da nossa atuação. Querem atingir quem combate a corrupção. 

Aprovado pelo Congresso e sancionado com vetos pelo presidente Jair Bolsonaro, o regramento sobre a conduta de autoridades impõe uma série punições. A subjetividade da lei está no centro das preocupações de juízes. Com essas regras, o julgador ficaria acuado e com receio de tomar uma decisão sob pena de ser enquadrado na nova legislação.  

 

Como a senhora classifica a lei de abuso de autoridade?

É uma tentativa de controle e de limitação do combate à corrupção. Não podemos perder de vista, mas já existia uma lei de 1965 que pune eventuais abusos de autoridade. A partir da aprovação da legislação, passamos a ter uma série de novos dispositivos que tentam limitar a conduta da magistratura.

Como a nova legislação repercute entre os magistrados?

A magistratura do Rio Grande do Sul está muito desconfortável por todo o cenário: pela forma como a lei foi aprovada, pela derrubada dos vetos, pela falta da clareza que teremos a partir de agora, pelo atingimento de outras categorias — polícia, fiscais, MP, Tribunais de Contas. Tem todo um sistema de controle sendo atingido, e é exatamente o sistema que combate a corrupção. Acho que essa fragilização só interessa a um segmento, o que faz mau uso do dinheiro público.

A Associação dos Magistrados Brasileiros chegou a divulgar que juízes terão receio de decretar prisões. Existe esse risco?

O receio é da incomodação que isso vai dar. Na medida que temos, dentro da lei, a violação de prerrogativas de advogados, por exemplo, significa que passamos a ter um milhão de pessoas que, por sua condição de formação, porque têm registro junto à OAB, passam a ter proteção diferenciada. E é a única profissão que tem essa proteção. As prerrogativas estão elencadas no estatuto da Ordem e não na própria lei. Ou seja, criminalizaram condutas corporativas da OAB. Isso nos dará a possibilidade de um milhão de incômodos e várias situações que podem trazer isso. Não necessariamente na esfera penal.

Como se daria na prática?

Hoje, fazemos penhoras online a partir do Bacenjud, que é um sistema (do Banco Central) em que alimentamos com informações dizendo que precisamos penhorar bens porque temos dívida. O próprio sistema busca as contas bancárias da pessoa. E não necessariamente no valor que estou determinando a penhora. Eventualmente, passa do valor. Quando são pequenos, de devedores individuais, é fácil de identificar. Mas quando temos devedores de grande volume, é mais difícil, porque são muitas contas. Então, há essa criminalização de penhora de valores exacerbados. Vamos para o mundo real: quando foram bloqueados os bens do Eike Batista. A dívida dele de quanto é? Ela está em apuração. A partir do vigor dessa lei, que será em janeiro do ano que vem, esse juiz que determinar esse tipo de bloqueio pode ser penalizado porque ele teria considerado um valor que é exacerbado.

O relator da lei, Ricardo Barros (PP-PR), afirmou à Rádio Gaúcha que a legislação efetiva os direitos do cidadão comum.

Nós já tínhamos o controle da própria lei de abuso, com controles disciplinares que vêm se aperfeiçoando. Até a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ficávamos restritos aos controles das corregedorias. Hoje, temos um órgão acima das corregedorias, que é o próprio CNJ. Não sei os números atuais, mas não são poucos os magistrados que respondem disciplinarmente. Então, já tínhamos controle, tanto na esfera penal, com a lei de abuso, quanto na administrativa. Dizer que essa lei vai dar garantias ao cidadão… Esse que está sendo nominado é um cidadão privilegiado. Vai ser ou o cidadão advogado ou o cidadão que tiver possibilidade de questionar essas determinações. Ou seja, nós vamos acabar lidando com aqueles que fizeram a lei.

Um argumento é de que o CNJ é um órgão corporativista.

Não tem como. Porque a composição do CNJ não é corporativa. Tanto que uma das demandas que a magistratura tem, e falando a partir do associativismo, é que deveríamos ter pelo menos cadeiras paritárias no CNJ, e não temos. A composição do CNJ tem representação da OAB, do Congresso Nacional, da Justiça do Trabalho, da Justiça Federal e da Justiça Estadual.

Lava-Jato, políticos sendo presos e, agora, surge o movimento no Congresso para aprovar o abuso de autoridade. Os fatos têm relação?

Entendo que essa lei é uma lei de reação. O parlamento reagiu àquilo que o sistema de Justiça estava fazendo e que, na leitura deles, não lhes atendia. Uma boa parte dos parlamentares que aprovaram a lei ou são investigados ou processados.

O cidadão que o deputado Ricardo Barros fala não é o cidadão comum?

Não é o cidadão comum, é o político. É o potencial que pode estar em investigação ou já estar condenado em primeira instância ou em vias de ser. Minha afirmação passa pelo momento e pela forma como a lei foi aprovada. Uma lei desse potencial não poderia ter sido aprovada da forma como foi: um grande acordo no meio de uma discussão muito curta. Não houve discussão clara com a sociedade, ela nunca foi trazida de forma clara para que a população pudesse entender. Tenho certeza de se a gente for perguntar, o Presídio Central não sabe o que é lei de abuso de autoridade e eles seriam os maiores interessados, porque são os encarcerados. O preso comum, da Vara do Júri, do crime organizado comum, do tráfico, para esse cidadão que é tão cidadão quanto um parlamentar, essa nunca foi uma discussão. E a discussão não alcançou essa população que talvez tenha interesse de querer saber de que lei estamos tratando.

Hoje, se o cidadão ou o advogado sentir que há decisão que representa abuso de autoridade, quem ele deve procurar?

Pela lei, ele vai procurar o Ministério Público. Se entender que o abuso de autoridade é da polícia ou da magistratura. Agora, se entender que o abuso é do próprio MP, poderá entrar com ação condicionada, desde que outro Ministério Público não tenha oferecido, que ele entenda que deva ser a acusação correta.

Um dos artigos da lei prevê punição para autoridade que decretar prisão sem base legal. A crítica é que o texto é subjetivo, possibilitando a dúvida do magistrado na hora de julgar.

Deixa te dar um exemplo: o crime de morte em acidente de trânsito. Sabemos que, em tese, não cabe a prisão. Mas sabemos que existem circunstâncias que vão estar na esfera de subjetividade do juiz em que ele decreta a manutenção da prisão em flagrante ou a prisão preventiva. O juiz não vai mais fazer isso. Nos espaços em que a subjetividade da necessidade do decreto da prisão está sob a ótica do juízo, teremos algumas situações em que há o risco de os juízes terem outra forma de ler. Não com medo de uma condenação.

A lei de abuso foi judicializada no STF. A senhora acredita que poderá haver alguma reversão?

Temos expectativa da inconstitucionalidade da lei, que, se não todos os artigos, ao menos os artigos questionados pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) sejam considerados inconstitucionais. Nossa expectativa é muito forte nesse sentido, mas vale aquela expressão: cabeça de juiz, a gente tem que esperar o que vem.

Um dos trechos mais polêmicos da lei prevê punição à autoridade que conduzir o réu a produzir provas contra si.

Trabalhei durante 20 anos com infância e juventude e nos últimos 15 anos com ato infracional. No ato infracional, é comum o adolescente sentar e confessar. Ou seja: em vigor essa lei, teria o risco, nos últimos 15 anos, ter cometido 15 anos de abuso de autoridade porque ouvi esses depoimentos. E é absolutamente comum. Eles estão assistidos por defensor. É um processo psíquico próprio da adolescência do fazer e contar porque faz parte do empoderamento, é parte daquele tempo da vida: “Falei na cara da juíza, contei para todo mundo. não escondo nada, eu sou o cara”. Poderei ser acusada de ajudar a produzir provas contra o réu e isso é um absurdo.