12 abr Daltoé: “Nós temos obrigação de fazer cessar a violência institucional”
A Lei do Depoimento Especial (Lei 13.431/2017) entrou em vigor no último dia 5 de abril em todo o país. A partir de agora, as vítimas deixaram de prestar depoimento nos ambientes formais das salas de audiências para serem acolhidas em separado, quando o depoimento passará a ser gravado, com a participação de profissionais habilitados, evitando assim mais sofrimento para a vítima que teria de recontar o ocorrido em diversas situações para o sistema de Justiça.
O Depoimento Especial nasceu como um projeto chamado Depoimento Sem Dano, no início dos anos 2000 a partir da iniciativa do então juiz de Direito do 2° Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, José Antônio Daltoé Cezar, hoje desembargador do Tribunal de Justiça do RS. A AJURIS entrevistou o desembargador para saber como se deu o caminho para que o Depoimento Especial se transformasse em lei. Confira a entrevista:
1 – O senhor foi pioneiro na prática da hoje Lei do Depoimento Especial. Como era feito isso antes?
Daltoé: A prática antes – e ainda continua até hoje na maior parte das comarcas – é de que as crianças que são vítimas e testemunhas de violência são ouvidas pelo sistema de Justiça da mesma forma que os adultos são: numa sala, na frente do juiz, do promotor, do advogado, de servidor e, eventualmente, na frente do próprio acusado de ter praticado a violência.
Não existia diferença nenhuma e ainda estamos nos moldando a fazer essa diferença. Por isso que a lei veio para que, proibindo essa praxe, se retire a criança de dentro da sala de audiência, se capacite os profissionais, um técnico para fazer essa mediação, essa facilitação desse depoimento que tem ser prestado em juízo.
2 – E que lhe mobilizou para dar início a essa mudança?
Daltoé: Desde que assumi como juiz, em 1988, esse tipo de prática me incomodava. Cada vez que tinha de se ouvir uma criança ou um adolescente, principalmente em casos de estupro de vulnerável, era muito constrangedor, a criança não conseguia falar na frente de várias pessoas, perguntas inadequadas eram realizadas, mesmo que indeferidas pelo magistrado. Tudo isso, com o tempo foi sedimentando em mim a vontade mudar essa prática.
E naquela época, início dos anos 2000, começaram a surgir esses equipamentos de segurança em residências, com circuito interno. Daí fui atrás de informações se era possível ligarmos som e áudio a essa câmera. O promotor de Justiça naquela época era o hoje também desembargador João Barcelos de Souza Júnior, e juntos compramos os equipamentos (câmera e um vídeo-cassete). Fizemos a ligação com cabeamento num box onde eram ouvidos os adolescentes infratores. Não era um equipamento bom, mas com o tempo verificamos que, mesmo com as limitações que tínhamos, era muito melhor do que era praticado antes.
Me recordo que um pouco antes tinha um caso de uma menina vítima de violência sexual por parte de um adolescente e ela ficou completamente constrangida, muda, e não falou nada. Então a partir dali nós melhoramos e fomos buscar mais informações e já em 2004 o Tribunal de Justiça nos deu um equipamento melhor.
3 – Como a ideia de mudar esse conceito foi recebida num primeiro momento?
Daltoé: Num primeiro momento essa mudança foi bem recebida, não houve oposição. Mas depois com o tempo, principalmente depois que o TJRS estendeu para outros juizados, a prática começou a receber resistência dos Conselhos de Psicologia, do Serviço Social, da Defensoria Pública, que procuravam obstaculizar esse tipo de ação, inclusive tivemos que entrar com ações judiciais na Justiça Federal para a suspensão de resoluções. Começou a circular a ideia de que a prática não era correta, não era ética, que era uma “fábrica de condenações”, que era para promover “um espetáculo forense”, uma “dramatização” da Justiça. Algumas vezes fui chamado de “voyeur” também. Mas o trabalho foi sendo enfrentado e com o tempo foi passando essa percepção equivocada.
4 – Até ser transformado em lei, o Depoimento Especial percorreu um longo caminho, acreditamos ter sido necessário para o aperfeiçoamento da prática.
Daltoé: Primeiro que nós começamos sem informação alguma, sem qualquer outra experiência. Mas depois tivemos algumas colaborações com livros sendo publicados sobre o tema. Também fomos buscar informações em outros países como Argentina, Inglaterra, Lituânia, Espanha, Chile, Cuba e Venezuela.
Também a ONG Childhood Brasil, criada pela Rainha Silvia da Suécia, se incorporou a esse trabalho e ajudou a financiá-lo. A ONG continua trabalhando muito para capacitar essas pessoas. Então se formou um grande time para que essa prática virasse lei no Brasil.
5 – E no Congresso como foi o processo?
Daltoé: Em 2007, a deputada Maria do Rosário (PT) conseguiu aprovar na Câmara dos Deputados um projeto de lei alterando o Código de Processo Penal nesse sentido. Esse projeto foi para o Senado e lá também foi aprovado, mas como tramitava a alteração do CPP, esse projeto foi incorporado a essa alteração, que ainda não foi feita. Mais adiante, em nova conversa com a deputada e também com a ajuda de colegas, de entidades, Unicef inclusive, elaboramos um novo projeto de lei. Quando em 2015 ocorreu aquela situação no Rio de Janeiro de um delegado ouvindo uma vítima de estupro de vulnerável da pior forma possível, os deputados federais foram verificar o que tinha tramitando no Legislativo que pudesse proibir aquela prática e encontraram o projeto da deputada Maria do Rosário e a partir daí ele teve mais celeridade.
6 – Mesmo antes de ser aprovada a lei, o senhor tem levado a experiência do Depoimento Especial para fora do Estado. Como tem sido a recepção do projeto?
Daltoé: Eu praticamente já visitei todos os Estados do Brasil. E tive a oportunidade de conhecer muita gente que tem experiências muito bem aplicadas e que estão dando certo. A recepção do que estamos fazendo aqui desde o início dos anos 2000 é sempre muito positiva.
7 – A lei por si só não basta se a estrutura para a aplicabilidade não for adequada. Como o Judiciário vem se preparando para isso?
Daltoé: Lei sozinha não muda nada. Mas não só estrutura do Judiciário precisa ser adequada. Tem que haver uma mudança de cultura. As pessoas têm de saber, por exemplo, que os agentes, não só os juízes e promotores, mas os advogados, psicólogos, não aprendem isso nas faculdades, não aprendem isso nos concursos. Elas tem que mudar suas cabeças e entender que tem de estudar a respeito. Sem capacitação o trabalho não vai ser realizado.
Temos uma cultura homofóbica muito forte, a maioria das vítimas são mulheres, temos muita intolerância ainda no país. Tem partes do Brasil com meninas de 10, 12 anos tem sua vida sexual iniciada como se isso fosse bom pra ela, fosse natural. Existe todo um enfrentamento cultural de violência contra crianças e adolescentes que precisa ser enfrentado dia a dia. A lei vem ajudar a mudar isso.
7 – Quais os principais ganhos para a Justiça e para as vítimas com o Depoimento Especial?
Daltoé: O principal mote desse trabalho é proteger a vítima. Que ela, que já foi vítima de um dano primário, da violência em si, em regra praticado dentro de sua família, de seu círculo de proteção, que não venha para o sistema de Justiça sofrer mais esse prejuízo a sua saúde e sua segurança.
Que o sistema de Justiça e o sistema de proteção ajudem ela e que não venham a provocar mais dano. Que ela seja protegida. Que a violência institucional não se faça presente na vida dela. Aquela anterior a gente tenta evitar, mas a violência institucional nós temos a obrigação de fazer cessar.
8 – O Judiciário vem se incumbido também de proteger a criança e o adolescente para que não sejam vítimas de abuso.
Daltoé: Exatamente. O Judiciário tem de informar o que está ocorrendo, de que forma identificar melhor as possíveis situações de abuso e violência; quem é o responsável por aquela criança; quem é que ele procura. Essas pessoas que são procuradas recebam de forma adequada. Isso é muito importante, até que um guarda de um hospital receba de forma adequada, que a Polícia receba de forma adequada. Que não fique “remexendo” nessa criança para saber detalhes de coisas que ela tenha que contar seis, sete, oito vezes. Que o sistema de Saúde também se qualifique, o de Educação. Esse trabalho estamos realizando junto com a sociedade.
Em 2017, o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul instalou 45 salas de Depoimento Especial nas Comarcas gaúchas. Para este ano, a previsão é de mais 134 unidades. As salas, além do equipamento para a gravação dos depoimentos, traz um ambiente lúdico para as crianças e adolescentes, com brinquedos e livros.
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