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Pontos e Contrapontos, por José Nedel

Pontos e Contrapontos, por José Nedel

 Artigo de autoria do juíz de Direito e professor aposentado, escritor, bacharel em Letras Clássicas, Direito e Filosofia e Mestre e Doutor em Filosofia,  José Nedel. 

 

1 – Projeto de Lei 5.069/13

Esse projeto de lei, de iniciativa do deputado Eduardo Cunha, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, mereceu comentários de dois jornalistas no mesmo dia em Zero Hora de 31-10-15: de  Cláudia Laitano (p. 4) e de David Coimbra (p. 39). O projeto visa a dificultar o chamado “aborto legal”, ou seja, pretende limitar as possibilidades de sua prática. Sobre o assunto também se manifestaram Contardo Calligaris e Maria Rita Kehl na Folha de S. Paulo de 5/11/15 (p. C10).

Tendo em mãos esses tópicos, julguei-os suficientes para uma reflexão limitada, sem entrar no mérito do projeto de lei em si, nem retomar o interminável debate sobre o aborto. Pretendo aqui tão só destacar algumas afirmações dos mencionados autores, acertadas ou questionáveis, e fazer observações pontuais, à margem do mérito da questão central. Espero que essa contribuição seja positiva para o debate.

2 – Afirmações

2.1 – A jornalista Cláudia Laitano afirma, em síntese, que o Projeto de Lei 5.069/13 representa um retrocesso em nossa legislação, já atrasada em comparação à de outros países; que é uma perversidade intolerável, uma monstruosidade empacotada em discurso moralista que não se sustenta nem como farsa, levado a efeito por políticos corruptos; que esses políticos tentam impor uma visão de mundo de viés religioso a um Estado laico; que o projeto ultraja homens e mulheres igualmente; enfim, que “estamos debatendo moral com quem nem sequer entende o sentido da palavra”.

2.2 – De acordo com David Coimbra, esse projeto de lei atinge diretamente as mulheres da faixa de renda mais baixa do país; o aborto, em caso de violência sexual, é problema de saúde pública, não de ideologia; como outras questões importantes, não deve ser debatido com emoção, mas com inteligência e bom senso.

2.3 – O psicanalista Contardo Calligaris, após afirmar que, com esse projeto de lei, a vida das mulheres é ameaçada, cede seu espaço à colega

Maria Rita Kehl, que divulga texto assim finalizado: “Escrevo na esperança de que alguns deputados, mesmo afinados com a pauta conservadora que ameaça as conquistas de direitos civis em nosso país, não se alinhem automaticamente ao projeto pessoal de poder do presidente da Câmara”.

3 – Observações pontuais

3.1 – Aborto legal. O aborto, no Brasil, é crime, inclusive o assim chamado “aborto legal” (Código Penal, art. 128, inc. II), embora este não seja punido, por questões de política criminal. “Não punir” não significa “autorizar”, como entendem muitas pessoas de bem, inclusive juristas festejados. A razão é óbvia: o legislador não tem poder para prescrever ou autorizar qualquer injustiça, como é “matar um ser humano inocente”. Pode, contudo, não punir todas as iniquidades perpetradas na sociedade, por não as ter como inclusas na relação das mais graves contra o bem comum. É o caso do aborto estranhamente conhecido como “legal”.

De fato, um crime “autorizado” seria um contrassenso sob o ponto de vista ético. Também é tal dizer que limitar a prática desse aborto (crime não punível entre nós) põe em risco a vida das mulheres. O mesmo vale para a afirmação de que possa existir um “direito” ao aborto. É que o mal moral, como é a prática de qualquer aborto direto, inclusive o chamado “aborto legal”, não pode ser conteúdo de um direito. Instituir direito ao aborto direto, ou autorizá-lo, equivaleria a uma tentativa de transmutar um injusto intrínseco em justo, façanha que nenhum legislador nem magistrado é capaz de operar.

Afirmar que impor condições ou limites à prática do chamado “aborto legal” é uma perversidade, uma monstruosidade, um ultraje a homens e mulheres representa verdadeira inversão de valores tradicionais autênticos. Em realidade, monstruoso e perverso é eliminar, por quaisquer motivos, econômicos, psicológicos, eugênicos, de forma intencional e direta, um inocente indefeso, portador do direito natural à vida, assegurado na Constituição (art. 5º, § 2º) e nas leis pátrias (Código Civil, art. 2º).

Segundo ínclitos juristas (Ives Gandra da Silva Martins, Renato José Nalini, Rejane Maria Dias de Castro Bins e outros), a norma constitucional assegurando o direito à vida sem restrições sequer recepcionou regra infraconstitucional anterior divergente, como é o caso do art. 128, inc. II, do Código Penal. Sobre esta matéria escrevi quantum satis no livro Ensaios de filosofia prática (Porto Alegre: Sapiens, 2014, p. 241-252). No caso do PL 5069/13, vislumbro a tentativa de restringir a ocorrência de um mal menor, percebido como inevitável, já que não haveria condições políticas para sua vedação tout court.

3.2 – Religião e moral. A questão do aborto na essência é de natureza moral e jurídica, não religiosa, embora as religiões que se prezam a incorporem na moralidade que adotam, abrangida que é pelo vasto âmbito da virtude da justiça. Não há religião sem moral, mas pode haver moral sem religião, a moralidade natural à luz da reta razão. Mesmo quem não admite nem pratica religião alguma não está isento da moral, cuja incidência é universal, abrangendo inclusive os agentes do estado laico. Ela nunca dá férias a ninguém, tendo ou não tendo concepções filosóficas, estéticas, políticas, religiosas. Afirmar que o fundamento da rejeição do aborto num estado laico é de viés religioso, é lavrar em lamentável e rudimentar confusão. Por isso, tem natureza de bumerangue imputar ao adversário ignorância do que seja moral, quando o próprio autor da imputação não a distingue da religião. O projétil lançado, no retorno, fere ou pode ferir o próprio arremessador.

3.3 – Pensamento e ação. De mais a mais, não é certo que ignore o que seja moral quem procede imoralmente, incidindo em corrupção ou outros delitos. É próprio do ser humano, dotado de livre-arbítrio, eventual ou sistematicamente, não fazer o bem que sabe ser oportuno ou devido. É um drama que atinge as pessoas em geral, o “homem médio” na linguagem do jurista, para quem por via de regra as leis são instituídas. Autores clássicos já enunciaram isso de forma irretocável. Ovídio, por exemplo, escreveu: “Vejo o que é melhor e o aprovo, mas sigo o pior” (Metamorfoses, VII, 20). Percebe-se o eco desses versos notáveis do poeta romano numa carta de São Paulo, que exclama: “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero” (Rm 7, 15). Soa, pois, como inadequado afirmar que legisladores corruptos, segundo afirmação antes mencionada, não sabem o que é moral. A verdade é que não seguem eventual ou esporadicamente as normas morais, embora as conheçam muito bem. É a inesgotável capacidade do ser humano de ser inconsequente. Aliás, quem pode dizer, sem faltar à verdade, que nunca age contrariamente ao que lhe dita a consciência, tem nicho perpétuo assegurado, quer no altar por ser santo, quer no panteão dos heróis.

3.4 – Problema de saúde pública. Com certeza, o aborto dito “legal” é um problema de saúde pública, pelas razões que os abortistas sempre alegaram: faz mal às mulheres que o realizam em condições precárias na clandestinidade. Nunca se acentua o outro lado: que é um problema de saúde pública maior ainda, porque elimina intencional e diretamente um sem-número de conceptos humanos inocentes e indefesos, que não só perdem a saúde como seu direito fundamental à vida. Para o problema de saúde da mulher, com certeza, há outras alternativas, que podem ser apontadas por profissionais de confiança. Não fosse assim, teríamos que admitir sempre estado de necessidade e, em conseqüência, inexigibilidade de outra conduta, que não é o caso. O problema mais relevante que o aborto direto, mesmo o dito “legal”, envolve é de ordem moral e jurídica. Sob esse ponto de vista, não encontra justificativa racional.

3.5 – Fazer e agir. A lei humana insere-se na ordem da razão prática, vertente do fazer (poiesis), na qual predomina o resultado sobre a intenção ou a qualidade do agente. Uma lei será boa se, corretamente interpretada e aplicada, servir como instrumento de justiça. Para a qualidade dela, é irrelevante o legislador ter sido corrupto, ter visado à conquista do poder, ou tido intenções inconfessáveis. Importa que, com sua aplicação, possa ser atribuído ou partilhado o suum cuique, isto é, o seu direito a cada um, a equitativa partilha dos bens da vida. É que o produto do fazer humano se liberta do autor e ganha vida própria, valendo por suas qualidades intrínsecas.

A propósito, diz-se de Nero que pretendeu ser um extraordinário poeta, razão por que chamou Petrônio para lhe escutar os versos. Do conselheiro ouviu este juízo crítico implacável: “Vossa deidade quis fazer maus versos, e os fez”. Foi o suficiente para a desgraça de Petrônio, que teve que abrir suas veias… A intenção do agente não supre nem altera o resultado produzido.

De modo diverso ocorre na ordem do agir (práxis), no âmbito da moral, onde prevalece a intenção sobre o resultado. Se este não for atingido, como acontece quando alguém tenta salvar uma vida sem o conseguir, costumamos dizer: “Valeu a intenção”. Isso é correto, a intenção é uma das fontes da moralidade de atos em si indiferentes.

Alegar que a lei não presta ou que não pode prestar, porque o legislador é corrupto, sem moral, movido por intenções inconfessáveis, é desconhecer ou não levar em conta a diferença entre fazer e agir. A sentença de Pilatos, na Paixão de Cristo, quod scripsi, scripsi – o que escrevi escrevi (Jo 19, 22), em certo sentido, tem aplicação na ordem do fazer: o que cada qual realiza, faz, produz, vale por aquilo que é, por suas qualidades intrínsecas, independente de sua intenção. Isso vale na técnica, na arte, na legislação. “O que escrevi, está escrito”.

3.6 – Debate racional. Sem dúvida, o debate acerca do aborto, como o de outras questões graves e polêmicas, não deve ser emocional, mas racional. A gênese da moral é a partir da intuição intelectual dos primeiros princípios sinderéticos (princípios do agir) evidentes em si: “O bem deve ser feito; o mal deve ser evitado”. Por conclusões próximas chega-se ao “não matarás o inocente” e ao “dar a cada um o seu”, ambos preceitos constantes do Decálogo universalmente reconhecido. Por conclusões remotas desses preceitos e determinações do que estiver implícito na lei natural, chega-se aos demais preceitos da moral, como está explanado no meu livro Ética, direito e justiça, 2. ed. (Porto Alegre: Edipucrs, 1990, p. 93-96).

Essa construção a partir de intuição intelectual, mediante conclusões racionais e determinações do implícito na lei natural, resulta num conjunto harmônico, equilibrado, objetivo, de princípios e regras impermeável à deformação emocional. Quem o defende não pode ser averbado de proceder por viés religioso ou por ideologia, sistema de idéias dogmático, sem fundamento ou falso. É que tal conjunto resulta de procedimento estritamente racional.

4 – Conclusão

É certo que o debate sobre o aborto e outras questões relevantes polêmicas não deve ser emocional, mas guiado pela racionalidade, que é ou deveria ser a característica precípua do ser humano, classicamente definido como “animal racional”. O debate com emoção costuma afastar-se da objetividade e derivar para a desqualificação do interlocutor, quando não a ofensas pessoais, em prejuízo da argumentação lógica e serena. Na moral e no discurso sobre ela (ética) procede-se com racionalidade, bom senso, respeito ao outro e a seus direitos fundamentais, sob o precípuo império da justiça. Não é gratuito o título da bela obra do renomado filósofo brasileiro Olinto Pegoraro, Ética é justiça (Petrópolis, RJ: Vozes, 1995). Vale a pena conferir.

Novembro, 2015.

 

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