13 maio O direito ao mínimo existencial não é uma mera garantia de sobrevivência, por Ingo Sarlet
Artigo de autoria do juiz de Direito, Ingo Sarlet, publicado no dia 8 de maio na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.
No âmbito da abertura material do catálogo de direitos fundamentais, tal como consagrada pela norma contida no artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal, o reconhecimento de direitos implicitamente positivados, porquanto não encontram uma direta previsão no texto constitucional, é amplamente aceito, discutindo-se, todavia, sobre os limites de tal reconhecimento, bem como sobre aspectos ligados a cada situação em particular. Aliás, a controvérsia sobre a “criação jurisprudencial” de direitos não expressamente positivados pelo constituinte originário é antiga e tem sido particularmente no conhecido embate entre originalistas e interpretativistas que tanto marcou o direito constitucional norte-americano, não sendo, todavia, o caso de aqui e agora enveredarmos por tal senda, vinculada, de outra parte, ao debate em torno do assim chamado ativismos judicial.
No caso brasileiro, os direitos fundamentais implícitos, em termos gerais e ressalvadas variações sobre o tema, tem sido conceituados como posições subjetivas fundamentais subentendidas nas normas definidoras de direitos e garantias e fundamentais, ademais de poderem ser deduzidas do regime e dos princípios da CF. Tal compreensão é antiga e remonta a autores de nomeada como Ruy Barbosa, Pontes de Miranda, Carlos Maximiliano, Alcino Pinto Falcão, Paulino Jacques, apenas para referir alguns dos mais ilustres comentaristas das constituições anteriores, todos advogando que a abertura material diz respeito também ao papel da jurisprudência como fonte reveladora de direitos não expressamente contemplados (enumerados). Mais recentemente, calha invocar as palavras de José de Melo Alexandrino, alertando que a cláusula constitucional de abertura (no caso, da Constituição Portuguesa de 1976), abrange tanto a previsão expressa de uma abertura a direitos não enumerados, quanto a dedução de posições jusfundamentais por meio da delimitação do âmbito de proteção dos direitos fundamentais, a inclusão dos direitos de matriz internacional, bem como a dedução de normas de direitos fundamentais de outras normas constitucionais,[1] hipótese que, ressalvadas algumas peculiaridades do sistema brasileiro, harmoniza substancialmente com a opção do nosso constituinte de 1988.
Tanto isso é correto — embora aqui não se vá avançar no detalhamento da noção de direitos implícitos e dos seus limites — que doutrina e jurisprudência, com destaque para a prática decisória do Supremo Tribunal Federal, já apresentam diversos casos de direitos fundamentais implícitos entre nós, como o sigilo fiscal e bancário, o direito ao nome, ao conhecimento das origens genéticas, o direito ao esquecimento, o direito do preso à ressocialização, a união entre pessoas do mesmo sexto, bem como, entre outros e no campo dos direitos sociais, o assim chamado direito a um mínimo existencial ou mínimo para uma existência digna.
Sem que se pretenda aprofundar o tópico, é possível afirmar que a atual noção de um direito fundamental ao mínimo existencial, ou seja, de um direito a um conjunto de prestações estatais que assegure a cada um (a cada pessoa) uma vida condigna, arranca da ideia de que qualquer pessoa necessitada que não tenha condições de, por si só ou com o auxílio de sua família, prover o seu sustento, tem direito ao auxílio por parte do Estado e da sociedade, o que já era sustentado na fase inaugural do constitucionalismo moderno, com destaque para a experiência francesa revolucionária, quando assumiu certa relevância a discussão em torno do reconhecimento de um direito à subsistência, debate que acabou resultando na inserção, no texto da Constituição Francesa de 1793, de um direito dos necessitados aos socorros públicos, ainda que tal previsão tenha tido um caráter eminentemente simbólico[2], direito este que também foi contemplado na Constituição Imperial brasileira de 1824.
De qualquer sorte, independentemente de como a noção de um direito à subsistência e/ou de um correspondente dever do Estado (já que nem sempre se reconheceu um direito subjetivo (exigível pela via judicial) do cidadão em face do Estado) evoluiu ao longo do tempo, tendo sido diversas as experiências em diferentes lugares, o fato é que cada vez mais se firmou o entendimento — inclusive em Estados constitucionais de forte coloração liberal — de que a pobreza e a exclusão social são assuntos de algum modo afetos ao Estado, ainda que por razões nem sempre compartilhadas por todos e em todos os lugares, visto que mesmo no plano da fundamentação filosófica, ou seja, da sua sinergia com alguma teoria de Justiça, são diversas as alternativas que se apresentam.[3]
Sem prejuízo de sua previsão (ainda que com outro rótulo) no plano do direito internacional dos direitos humanos, como é o caso do artigo XXV da Declaração da ONU, de 1948, que atribui a todas as pessoas um direito a um nível de vida suficiente para assegurar a sua saúde, o seu bem-estar e o de sua família, a associação direta e explícita do assim chamado mínimo existencial com a dignidade da pessoa humana encontrou sua primeira afirmação textual, no plano, constitucional, na Constituição da República de Weimar, Alemanha, em 1919, cujo artigo 151 dispunha que a vida econômica deve corresponder aos ditames da Justiça e tem como objetivo assegurar a todos uma existência com dignidade, noção que foi incorporada à tradição constitucional brasileira desde 1934, igualmente no âmbito da ordem econômica e/ou social, de tal sorte que o artigo 170 da CF dispõe que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social…”.
Mas como tais disposições normativas assumem a condição de princípios objetivos, a demandar legislação infraconstitucional de modo a ensejar uma posição subjetiva e exigível pelo indivíduo, a evolução para um direito fundamental acabou levando um considerável tempo, o que se deu apenas ao longo da segunda metade do Século XX, com destaque para a experiência alemã, onde, apesar de não constarem direitos fundamentais típicos no texto da Lei Fundamental de 1949, doutrina (especialmente a contribuição inicial de Otto Bachof) e jurisprudência administrativa e constitucional reconheceram, a partir dos princípios do Estado Social, da Dignidade da Pessoa Humana, do Direito à Vida e do Direito Geral de Liberdade, um direito fundamental a prestações materiais destinadas a assegurar a cada um uma existência com dignidade.
Especialmente a decisão paradigmática do Tribunal Constitucional Federal, pelo caráter vinculativo, merece aqui referência. Da argumentação desenvolvida nessa decisão, extrai-se o seguinte trecho: “certamente a assistência aos necessitados integra as obrigações essenciais de um Estado Social. […] Isto inclui, necessariamente, a assistência social aos concidadãos, que, em virtude de sua precária condição física e mental, encontram-se limitados na sua vida social, não apresentando condições de prover a sua própria subsistência. A comunidade estatal deve assegurar-lhes pelo menos as condições mínimas para uma existência digna e envidar os esforços necessários para integrar estas pessoas na comunidade, fomentando seu acompanhamento e apoio na família ou por terceiros, bem como criando as indispensáveis instituições assistenciais”.[4]
Tal linha de orientação acabou sendo mantida e mesmo fortalecida em decisões posteriores, proferidas sobre tópicos diversos, mas tendo em comum o reconhecimento de um direito fundamental ao mínimo existencial.[5] A concepção subjacente ao mínimo existencial, todavia, não tem cunho eminentemente assistencialista, mas sim, articula-se com a noção de uma ajuda para a autoajuda (Hilfe zur Selbsthilfe), não tendo por objeto o estabelecimento da dignidade em si mesma, mas a sua proteção e promoção.[6]
Quanto ao conteúdo do direito propriamente dito, a compreensão desenvolvida na Alemanha e que também guarda harmonia com o marco jurídico-constitucional (a despeito da dissintonia de tal noção com a realidade fática em grande parte dos casos e mesmo com a legalidade estrita, quando em causa o valor do salário mínimo) parte da premissa de que o mínimo existencial não se reduz a uma mera garantia de sobrevivência física, ou seja, o que se costuma chamar de mínimo vital, mas abarca a garantia mínima de acesso a bens culturais, a inserção na vida social e a participação política, ou seja, aquilo que se tem denominado de um mínimo sociocultural.
Mas a mensuração concreta das prestações vinculadas ao mínimo existencial encontra-se submetida a condicionantes espaciais e temporais, mas especialmente depende do padrão socioeconômico vigente, estando sujeito a câmbios ao longo do tempo, o que também remete ao problema de sua constante atualização e de qual a instância com competência para tal avaliação e decisão.
Por outro lado, na condição de direito fundamental (implicitamente positivado), também o mínimo existencial apresenta uma face negativa, operando como direito de defesa, como algo que não se pode subtrair do indivíduo, mas também como direito positivo, ou seja, de um direito a prestações a ser assegurado pelo Estado[7].
Especialmente quando em causa o seu cunho positivo, direito a prestações, verifica-se que a doutrina e a jurisprudência alemã partem — de um modo mais cauteloso — da premissa de que existem diversas maneiras de realização das obrigações ligadas ao mínimo existencial, incumbindo ao legislador a função de dispor sobre a forma da prestação, seu montante, as condições para sua fruição, entre outros aspectos, podendo os tribunais decidir nos casos de omissão ou de evidente desvio de finalidade por parte dos órgãos legislativos,[8] mas sempre mediante a ressalva de que a liberdade de conformação do legislador encontra seu limite no momento em que o padrão mínimo para assegurar as condições materiais indispensáveis a uma existência digna não for respeitado, isto é, quando o legislador se mantiver aquém desta fronteira.[9] Para o caso brasileiro, basta, por ora, lembrar o crescente número de publicações e de decisões jurisdicionais sobre o tema, destacando-se aqui o STF, que tem produzido muitas decisões aplicando a noção de um mínimo existencial a vários tipos de situações envolvendo diversos direitos fundamentais[10].
Dito isso, o que importa, nesta quadra, é a percepção de que o direito a um mínimo existencial independe de expressa previsão no texto constitucional para poder ser reconhecido, visto que decorrente já da proteção da vida e da dignidade da pessoa humana. No caso do Brasil, onde também não houve uma previsão constitucional expressa consagrando um direito geral à garantia do mínimo existencial, os próprios direitos sociais específicos (como a assistência social, a saúde, a moradia, a previdência social, o salário mínimo dos trabalhadores, entre outros) acabaram por abarcar algumas das dimensões do mínimo existencial, muito embora não possam e não devam ser com ele confundidas.
Outrossim, a relação entre o mínimo existencial e os diversos direitos fundamentais sociais tem sido marcada por uma doutrina e jurisprudência que em boa medida ampara a tese de que o mínimo existencial representa o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, núcleo este blindado contra toda e qualquer intervenção por parte do Estado e da sociedade. Tal entendimento, conquanto possa ter a (aparente) virtude de auxiliar na definição do conteúdo essencial dos direitos sociais, notadamente quanto ao recorte dos aspectos subtraídos a intervenções restritivas dos órgãos estatais e mesmo vinculativas dos particulares, não evita a perda de autonomia dos direitos fundamentais sociais, pois se o núcleo essencial dos direitos e o mínimo existencial se confundem em toda a sua extensão, então a própria fundamentalidade dos direitos sociais estaria reduzida ao seu conteúdo em mínimo existencial, posição esta que seguimos refutando, sem que, contudo, aqui se possa avançar na questão.
É nessa perspectiva que — para espancar qualquer dúvida a respeito — comungamos do entendimento de que todos os direitos fundamentais possuem um núcleo essencial, núcleo este que, por outro lado, não se confunde com seu conteúdo em dignidade da pessoa humana (ou, no caso dos direitos sociais, com o mínimo existencial), embora em maior ou menor medida, como regra, um conteúdo em dignidade humana e/ou uma conexão com o mínimo existencial se faça presente, do que devem ser extraídas consequências para a proteção e promoção dos direitos fundamentais.
No caso da CF, que consagrou os direitos sociais como direitos fundamentais e, de resto, contempla um leque amplo de direitos sociais especificamente positivados, o caráter subsidiário da garantia do mínimo existencial é de ser sublinhado. Por outro lado, a noção de um mínimo existencial opera como relevante critério material (embora não exclusivo) para a interpretação do conteúdo dos direitos sociais, bem como para a decisão a respeito do quanto em prestações sociais deve ser assegurado mesmo contra as opções do legislador e do administrador, mas também no âmbito da revisão de decisões judiciais nessa seara.
Por outro lado, precisamente no âmbito de tal processo decisório — que envolve o controle das opções legislativas e administrativas! — não se deve perder de vista a circunstância de que o “conteúdo existencial” não é o mesmo em cada direito social, o que carece de equacionamento caso a caso. Aliás, é nesse sentido que se tem posicionado uma série de julgados do STF, muito embora nem sempre com a necessária clareza quanto à relação do núcleo essencial dos direitos sociais com o mínimo existencial, especialmente quanto ao fato de se tratar, ou não, de categorias fungíveis. De qualquer modo, impende sublinhar que no que diz com a orientação adotada pelo STF, os direitos sociais e o mínimo existencial exigem sejam consideradas as peculiaridades do caso de cada pessoa, visto que se cuida de direitos que assumem uma dimensão individual e coletiva, que não se exclui reciprocamente, cabendo ao poder público assegurar, pena de violação da proibição de proteção insuficiente, pelo menos as prestações sociais que dizem respeito ao mínimo existencial[11].
Que com essas breves notas apenas logramos esboçar os contornos do direito ao mínimo existencial como direito fundamental social implícito resulta evidente, de tal sorte que em outras oportunidades deveremos retomar o ponto, especialmente se levarmos em conta que assim como ocorre com a dignidade humana, também o mínimo existencial tem sido não raras vezes transformado em uma espécie de “coringa argumentativo” ou, ainda que de modo distinto da proporcionalidade, numa modalidade de “katchanga real”, como há tanto tempo tem alertado autores da nomeada de um Lenio Streck.
[1] Cf. J. M. Alexandrino, A Estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição Portuguesa, vol. II, Coimbra: Almedina, p. 374-75.
[2] Sobre este debate, v., por todos, HERRERA, Carlos Miguel. Les Droits Sociaux, Paris: PUF, 2009, p. 39 e ss.
[3] Cf., por exemplo, as teorizações de John Rawls e Michael Walzer colacionadas e comentadas por BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 123 e ss. A respeito das diversas fundamentações de um direito ao mínimo existencial, v., por último, na doutrina brasileira, TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao Mínimo Existencial, op. cit., p. 13-34 e 54-81. Por último, explorando o tema nessa perspectiva, v. WEBER, Thadeu. Ética e Filosofia do Direito. Autonomia e Dignidade da Pessoa Humana, Petrópolis: Vozes, 2013, especialmente p. 205, a partir do pensamento de John Rawls.
[4] Cf. tradução livre de trecho extraído da decisão publicada em BVerfGE(Coletânea oficial das decisões do Tribunal Constitucional Federal) nº 40, p. 121 (133).
[5] Para tanto, v, entre outras, BVerfGE nº 78, p. 104, reiterada em BVerfGE nº 82, p. 60 e nº 87, 1p. 53. No âmbito da jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional da Alemanha destaca-se especialmente a decisão proferida em 09.02.2010, que teve por objeto o exame da constitucionalidade de alentada reforma da legislação social, igualmente afirmando o dever do Estado com a garantia do mínimo existencial e reconhecendo um direito subjetivo individual e indisponível correspondente.
[6] Esta a oportuna formulação de NEUMANN, Volker, “Menschenwürde und Existenzminimum”, in: Neue Zeitschrift für Verwaltungsrecht, 1995, p. 425.
[7] Cf., por todos, VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2004, p. 403 e ss.
[8] Esta a posição de BREUER, Rüdiger. Op. Cit., p. 97, assim como, mais recentemente, MOREIRA, Isabel. A solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Coimbra: Almedina, 2007, p. 143 e ss. Também o Tribunal Federal Constitucional atribui ao legislador a competência precípua de dispor sobre o conteúdo da prestação. Neste sentido, v. BVerfGE 40, 121 (133) e 87, 153 (170-1). Por último, v., no mesmo sentido, a decisão de 09.02.2010.
[9] Cf. o já referido leading case do Tribunal Constitucional Federal (BVerfGE 40, 121 [133]).
[10] V. aqui, entre outras (portanto, em caráter meramente ilustrativo) a decisão relatada pelo Ministro Celso de Mello (Agravo Regimental no RE nº 271.286-8/RS, publicada no DJU em 24.11.2000), onde restou consignado – igualmente em hipótese que versava sobre o fornecimento de medicamentos pelo estado (no caso, paciente portador de HIV) que a saúde é direito público subjetivo não podendo ser reduzido à “promessa constitucional inconseqüente”. Entre muitos outros julgados que poderiam ser colacionados, v. a paradigmática decisão monocrática do STF proferida na ADPF n° 45, igualmente da lavra do Ministro Celso de Mello, afirmando – embora não tenha havido julgamento do mérito – a dimensão política da jurisdição constitucional e a possibilidade de controle judicial de políticas públicas quando se cuidar especialmente da realização da garantia do mínimo existencial. Mais recentemente, v. a STA 241/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgada em 10.10.08 (direito à educação, sufragada por decisões posteriores) e STA 175/CE, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgada em 17.03.10 (direito à saúde), bem como, pela sua relevância, as mais recentes decisões sobre o benefício de assistência social (LOAS), julgadas em 18.04.2013 (RE 567.985 – Mato Grosso, Relator Min. Marco Aurélio, Relator do Acórdão, Ministro Gilmar Mendes) e em 18.04.2013 (Reclamação 4.374 – Pernambuco, Relator Ministro Gilmar Mendes).
[11] Cf., paradigmaticamente, na decisão proferida na STA 175, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgada em 17.03.2010.
Ingo Sarlet
Juiz de Direito e professor Universitário