29 jun A proteção dos animais e o papel da jurisprudência constitucional, por Ingo Wolfgang Sarlet
Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 24 de junho
na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.
Em coluna anterior apresentando e comentamos decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha a respeito de questão envolvendo o conflito entre a proteção dos animais e o direito fundamental à livre determinação sexual, texto que ensejou algumas críticas no sentido de que não se trataria de matéria relevante dado o contexto vivenciado pelo país. Todavia, sem prejuízo de se reconhecer que evidentemente há muitas outras matérias de alta relevância e impacto (diversas já tematizadas em colunas anteriores, como é o caso das últimas sobre limites da reforma constitucional e direitos sociais, tema atualíssimo entre nós) isso de modo algum significa que escrever a respeito da proteção jurídico-constitucional dos animais, ainda mais quando tal proteção conflita com outros princípios e mesmo direitos fundamentais, não tenha relevância e atualidade. Muito pelo contrário, em todo mundo se debate intensamente, inclusive no Direito e na Filosofia (Ética), não apenas a respeito da possibilidade de se atribuir a animais não humanos ou mesmo a natureza em geral, uma dignidade e/ou mesmo a titularidade de direitos fundamentais próprios, mas também dos níveis de proteção a serem atribuídos aos animais, com ou sem o reconhecimento da sua condição de sujeitos de direitos. Além disso, altamente controverso o problema de quais as consequências jurídicas de tal reconhecimento (em sendo o caso), em especial, qual a solução constitucionalmente adequada para a solução de eventuais conflitos entre a proteção dos animais e outros bens e direitos constitucionais.
Para ilustrar a atualidade e relevância concreta de tal celeuma, bastaria aqui recordar as decisões do STF sobre a rinha de galo, a assim chamada “farra do boi”, bem como, por último, o julgamento sobre o caso da “vaquejada”, pendente ainda de julgamento – há anos – o reconhecimento da legitimidade constitucional por parte do TJRS do sacrifício de animais para a prática de rituais religiosos de origem afro-descente. Em outros países, decisões semelhantes vem sendo proferidas e desafiam uma reflexão crítica, como se dá no caso referido do Tribunal Constitucional alemão, que, aliás, já havia enfrentado um caso de conflito entre liberdade religiosa e proteção dos animais, envolvendo o abate (no estabelecimento de um açougueiro turco) de animais com a finalidade de consumo, sem a sedação prévia exigida em lei para a generalidade dos casos.
Os casos julgados pela Corte Constitucional alemã, a partir do marco normativo estabelecido pela respectiva Lei Fundamental, demonstram que a importação de argumentos e diretrizes do direito estrangeiro, ainda que muitas vezes justificada, correta e mesmo iluminadora, nem sempre se revela apta a ser recepcionada (ao menos em parte), seja em face das peculiaridades de cada ordem jurídica, seja mesmo também em virtude de diferenças culturais significativas.
Como ponto de partida desta breve coluna, calha partir já da diferença de que enquanto a proteção dos animais foi incluída na Lei Fundamental da Alemanha como uma norma definidora de um fim/tarefa estatal, formulado de modo genérico e desacompanhado de qualquer concretização no plano constitucional, a nossa Constituição Federal de 1988 (CF), no seu artigo 225, enuncia uma vedação categórica de crueldade com os animais. Que as consequências a serem extraídas num e noutro caso, a despeito de elementos em comum, não poderão ser exatamente mesmas, já é algo a ser sempre considerado.
Ademais disso, assume-se como premissa (que á evidência não é inquestionável nem inquestionada) que mesmo se evitando a celeuma em torno da circunstância de que animais não humanos (pelo menos os sensitivos) são titulares de direitos fundamentais na condição de direitos subjetivos, é sem dúvida possível e mesmo desejável reconhecer a possibilidade de atribuição de uma peculiar dignidade aos animais e mesmo à natureza em geral, no sentido de uma dignidade da vida humana.
No caso dos animais tal dignidade implica o reconhecimento de um dever de respeito e consideração, assim como correspondentes deveres de proteção, de tal sorte que os animais não podem ser reduzidos à condição de mera coisa (objeto),e, portanto, não possuemtal um valor meramente instrumental.
Que tal dimensão (e tal dignidade, na condição de um valor não meramente instrumental atribuído aos animais) foi reconhecida – mesmo que de modo indireto – pelo constituinte de 1988 (mas já também e antes disso pelo legislador ordinário), é perceptível na proibição de crueldade com os animais, que, de certo modo, pode ser equipara à proibição de tortura e de tratamento desumano e degradante (artigo 5º, III, CF) em relação aos animais humanos.
Além disso, tal proibição de crueldade, além de se tratar de manifestação específica de um dever geral de proteção dos animais e mesmo da natureza não humana, exige sua concretização pelo legislador ordinário e serve de parâmetro interpretativo material necessário (cogente) para todos os atores estatais, na esfera de suas respectivas competências e atribuições, refletindo-se também na esfera das relações privadas, de modo direto e indireto.
Importa frisar, que tal proteção (e proibição jurídico-constitucional) e o reconhecimento de uma dignidade da vida não humana (ou pelo menos dos animais não humanos) independe da circunstância de se atribuir aos animais a titularidade própria, na condição de sujeitos de direitos subjetivos, de direitos fundamentais.
Dito de outro modo, a proteção jurídico-constitucional poderá ser apenas de caráter objetivo e disso não decorre necessariamente um nível mais fraco de proteção do que no caso do reconhecimento de direitos subjetivos. Aliás, o mesmo ocorre em relação à vida humana não nascida, onde até hoje se controverte sobre a titularidade de direitos subjetivos por parte do nascituro ou se aqui se cuida de um bem jurídico fundamental (vida humana) protegido do ponto de vista objetivo e dos correlatos deveres de proteção estatais.
Já por tal razão e evitando para efeitos de nossa breve análise uma digressão que desbordaria em muito dos limites da coluna, o que importa aqui destacar é que a CF admite uma exegese compatível com a atribuição de uma particular dignidade dos animais e estabelece parâmetros para uma significativa e correta proteção jurídica.
Isso significa, ainda, que a proteção dos animais e a proibição de crueldade para com os mesmos, não podem ser desconsiderados em qualquer ponderação que se venha a levar efeito quando a proteção dos animais entra em rota de colisão com outros princípios e objetivos constitucionais ou mesmo com o exercício de direitos fundamentais dos animais humanos.
Especificamente no que diz respeito às decisões do STF que declararam ilegítimas do ponto de vista constitucional as práticas da farra do boi e da rinha de galo, embora seja de se aplaudir o resultado das decisões no sentido de proibir tais práticas, percebe-se alguma inconsistência na argumentação levada a efeito pelo Tribunal, o que se agudizou no caso recente, ainda pendente de decisão, da prática da “vaquejada”, que até o momento dividiu a Corte.
A crítica central que se pretende aqui endereçar a todas as decisões (mesmo que se deva e possa aplaudir o resultado final dos julgamentos nos casos da rinha de galos e da farra do boi) é o uso nem sempre adequado da dogmática jurídico-constitucional e do manejo impreciso e mesmo equivocado de alguns princípios e da própria teoria dos direitos fundamentais.
A própria invocação, nas decisões anteriores referidas, da dignidade humana apenas é aceitável na perspectiva de uma dimensão ecológica ou ambiental dessa mesma dignidade humana, incluindo o respeito pela vida não humana nos deveres morais e jurídicos que decorrem da dignidade humana num contexto mais ampliado.
Outrossim, causa espécie o recurso ao instituto da ponderação, que transparece em vários votos em todos os casos (inclusive no da vaquejada) no sentido de sopesar a proteção dos animais e a proibição de crueldade com direitos e princípios conflitantes, como se dá no caso de práticas culturais tradicionais em determinados ambientes.
O equívoco que aqui se busca desnudar, ao menos para efeitos de reflexão mais crítica, reside no fato de que a proibição de crueldade com os animais, a exemplo da proibição da tortura e do tratamento desumano ou degradante, assume a feição quanto à sua estrutura normativa, de regra estrita, que proíbe determinados comportamentos. Tal regra já corresponde a uma “ponderação” prévia levada a efeito pelo constituinte e, por isso, não pode ser submetida a balanceamento com outros princípios e direitos. Nessa toada, qualquer manifestação cultural religiosa ou não, somente será legítima na medida em que não implique em crueldade com os animais.
Isso, contudo, não significa necessariamente que determinado ritual religioso ou manifestação cultural tenha de ser em si proibida, mas que o seu exercício apenas será legítimo se ficar ressalvada a diretriz de que não poderá implicar em sofrimento deliberado e desnecessário dos animais envolvidos.
À evidência – é necessário sublinhar tal aspecto – que mesmo a proibição de crueldade (como a da tortura) – embora veiculada por regra, consiste em conceito normativo indeterminado, pois ainda é necessário definir o que é crueldade, de modo a se poder afastar situações fáticas que nesse conceito não se incluam.
Tomando-se por referência a concepção (aqui propositadamente formulada em termos genéricos) de que consiste em crueldade toda e qualquer ação que inflige aos animais, de modo deliberado, um sofrimento relevante e desnecessário, deveria parecer elementar, já também pela circunstância já referida de que não se trata aqui propriamente de uma ponderação, que práticas como a “vaquejada”, a exemplo do que ocorreu com a rinha de galo e a farra do boi, devem ser proscritas, ensejando eventual adequação dos ritos culturais desde que respeitem a barreira sim absoluta representada pela vedação de crueldade com os animais não humanos.
Por outro lado, é evidente que a identificação de uma crueldade que deva ser proscrita e sancionada, nem sempre é fácil e muitas vezes demanda o diálogo com outros saberes, o que, todavia, há de se dar à luz de cada situação concreta.
Além disso, as considerações aqui tecidas não pretendem esgotar nem de longe o tema e carecem de maior explicitação e desenvolvimento, pois também dizem respeito a outros domínios, como o da legitimidade do abate de animais para consumo e práticas religiosas, o uso de animais para fins experimentais, que segue desafiando o direito e a ética.
De qualquer modo, por hoje o que se pretendia era trazer elementos para municiar uma discussão, esperando que pelo menos a presente coluna possa motivar mais debate, ou mesmo que com isso nos sintamos animados para retomar o tema.
*Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Juiz de Direito no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris).