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Vale a pena relembrar o que estamos fazendo com o direito ao esquecimento, por Ingo Wolfgang Sarlet

Vale a pena relembrar o que estamos fazendo com o direito ao esquecimento, por Ingo Wolfgang Sarlet

Artigo do juiz e diretor da Revista da AJURIS, Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no site Consultor Jurídico no dia 26 de janeiro de 2018. 

Embora já tenhamos, em coluna anterior, tecido algumas considerações sobre o assim chamado direito ao esquecimento, termo que passamos a adotar (a despeito de não nos soar tecnicamente muito preciso) pelo fato de ter sido essa a terminologia que se incorporou de modo praticamente onipresente no cenário jurídico e, em geral, na esfera pública internacional. Cuida-se de tema de relativa complexidade e múltiplas facetas, ademais de ensejar uma série de desafios e interrogações. Por tal razão, é sempre oportuno revisitar o tópico para enfrentar algum aspecto pendente ao menos de nossa leitura.

Assim, aproveitando o espaço privilegiado que nos é disponibilizado pela ConJur, voltamos hoje o nosso olhar para algumas questões que dizem respeito ao uso e/ou uso equivocado da teoria geral e dogmática constitucional no trato da matéria pelo nosso Superior Tribunal de justiça quando se trata do reconhecimento (ou não) de um direito ao esquecimento, em especial no que concerne à determinação de seu objeto e dos seus limites e dos critérios utilizados para tal efeito.

Uma primeira constatação – aqui não limitada às decisões do STJ – é a de que, em geral, tem passado desapercebida a circunstância de que se ao direito ao esquecimento é atribuído (como tem sido o caso), a condição de um direito fundamental, a ele se aplicam necessariamente os predicados inerentes a tal condição, designadamente, a plenitude do regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais, com destaque aqui para a titularidade, destinatários, dupla dimensão subjetiva e objetiva e a sua proteção em face de intervenções restritivas em geral e na esfera das colisões com outros direitos fundamentais e bens de estatura constitucional em particular.

Com isso não se está a afirmar, convém sublinhar, que tais questões ainda não tenham sido levadas em conta na sua totalidade, mesmo sem direta referência a elas nas decisões e mesmo na esfera da já relativamente significativa (em especial em termos quantitativos) literatura já produzida no exterior e entre nós. Note-se que apenas no Brasil já são muitas as dissertações de mestrado disponibilizadas, vários livros e muitos artigos em periódicos, capítulos de livros, comentários curtos etc. Vários de tais trabalhos já têm agregado efetivo valor ao debate e prestado contribuições significativas, mas — sem esmaecer a sua qualidade — em geral ainda não deram o merecido e necessário espaço a aspectos centrais de uma dogmática constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais, seja em termos gerais, seja quanto aos direitos em espécie que gravitam em torno do direito ao esquecimento.

Da mesma forma — e a honestidade intelectual impõe que isso se reconheça — é claro que não é aqui (e na coluna anterior) que se poderá desenvolver de modo adequado o tema, assim como é normal que o avanço e refinamento da análise sobre institutos que apenas há pouco tempo têm sido tematizados e inseridos no dia a dia jurídico, social, político e mesmo cultural, não se dê da noite para o dia. Cuida-se sempre de um processo dinâmico, dialético e cumulativo. Além disso, se o Direito em regra reage aos fatos e não os antecipa (o que não exclui medidas preventivas e indutoras), tanto mais isso se torna complexo e difícil quando a evolução da realidade e, portanto, do seu impacto na esfera jurídica (aqui com destaque para os direitos fundamentais) se desenrola em ritmo cada vez mais veloz e mesmo imprevisível a curto prazo. Que esse é exatamente o caso da Internet e do mundo digital e virtual, da robótica e da inteligência artificial e das tecnologias de informação em geral não encontra mais oposição.

Nesse mesmo contexto, também resulta cristalino que até mesmo os fundamentos do Direito como vinha sendo conhecido e compreendido e as categorias convencionais têm sido postas à prova e carecem de uma renovação e mesmo reconstrução, sem que isso necessariamente resulte (e mesmo não deva resultar) o seu total obsoletismo. Isso já se pode ilustrar com o caso do direito ao esquecimento, porquanto mesmo impactantes os problemas postos pela tecnologia e a dificuldade de efetivar o programa constitucional, seja do ponto de vista técnico, seja em virtude de uma cada vez maior concentração de poder entre os que dominam tais tecnologias, as questões de fundo a serem equacionadas seguem dizendo respeito a já clássicos domínios do Direito. No caso do direito ao esquecimento, basta referir os problemas atinentes à definição de seu âmbito de proteção, dos direitos e deveres correlatos, da eficácia jurídica e social e de sua proteção.

Nessa perspectiva, retomando aqui o foco inicial, causa espécie que as decisões do STJ (seja as relativas ao mundo analógico — casos Ainda Curi e Chacina da Candelária — seja as concernentes ao ambiente digital (com destaque aqui para os julgamentos envolvendo o Google) não se preocuparam em desvendar, como pressuposto da análise, em que medida o direito ao esquecimento é um direito autônomo e qual o seu âmbito de proteção. Tal aproximação se revela imperiosa pois implica importantes consequências – e mesmo um tratamento eventualmente em parte diferenciado — no trato do objeto das posições subjetivas correlatas e dos respectivos deveres de proteção estatais, assim como no caso do controle judicial da legitimidade constitucional das restrições.

Por exemplo, no caso da Internet, é perceptível que o direito ao esquecimento não guarda coincidência total com a proteção de dados e tampouco com o direito à livre autodeterminação informativa, muito embora uma substancial superposição. Da mesma forma — e aqui se trata de um dado em geral já sedimentado pela doutrina (mas que tem encontrado resistência no STJ ao menos nos casos que envolvem os provedores de busca) — o direito ao esquecimento não se reduz ao direito de requerer o cancelamento de informações previsto no artigo 7º da Lei do Marco Civil da Internet (e nem ao direito ao cancelamento consagrado no artigo 17 do novo Regulamento Europeu de Proteção de Dados), mas abarca (ou deveria, no nosso entender, da literatura brasileira majoritária e da posição prevalente no mundo europeu ocidental) um direito à desindexação em face dos provedores de pesquisa.

Mais preocupante soa a afirmação — encontrada no Resp. 1.593.973-SP, julgado em novembro de 2016 — de que os provedores de pesquisa não podem ser responsabilizados de modo a lhes ser imposta a desindexação de determinadas URLs que permitem acessar determinados conteúdos postados na rede pelo simples fato de inexistir previsão legal específica nesse sentido. O que aqui se pontua não é o argumento em si, pois a inexistência de expressa previsão legal não se traduz numa razão imprópria e pode sim ser um fundamento correto e eficaz. O que se questiona é o fato de não ter havido qualquer consideração mais robusta no sentido de justificar tal entendimento, não se levando em conta o princípio da unidade da Constituição, da interpretação sistemática e mesmo o alcance da regra da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, ainda mais em se estando em face da dimensão negativa e não positiva (que também existe, no âmbito dos deveres de proteção) do direito ao esquecimento. Da mesma forma não se ingressou na absolutamente relevante esfera da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, em especial quando se trata de relações altamente verticalizadas e instrumentalizadas por contratos de adesão e – o que é mais grave – se traduzem em boa parte dos casos numa obrigação de contratar, a mais impactante restrição da autonomia privada no âmbito das relações contratuais.

Trata-se, aliás, de problemas que também se verificam em muitas outras decisões, inclusive das instâncias ordinárias, mas que assumem maior relevância quando se trata de tribunais superiores que geram precedentes vinculativos e balizam a jurisprudência nacional.

Outro aspecto merecedor de maior atenção é o fato de que em uma série de decisões (por exemplo, no Resp. 1.316.921, julgado em 26 de junho de 2012 (o paradigmático caso Xuxa vs. Google), embora se tenha tratado do conflito entre proteção da personalidade e a liberdade de expressão e informação, a argumentação se limitou a sumária afirmação da prevalência da última sem investimento mínimo que o seja na justificação de tal prevalência na perspectiva da CF e do caso concreto.

O mesmo se pode dizer quando se trata de embasar juridicamente de modo consistente a proporcionalidade da intervenção restritiva em cada caso, diferenciando as medidas disponíveis quanto ao seu grau de impacto. Um exemplo positivo (embora com isso não se esteja a concordar com todos os argumentos) se pode extrair do caso Chacina da Candelária, onde se fez menção ao fato de que a não identificação da pessoa afetada pelo programa televisivo nos seus direitos de personalidade teria o condão de ao mesmo tempo assegurar a liberdade de informação e por outro lado preservar significativamente o personagem retratado.

De qualquer sorte, o que se quis aqui demonstrar, em caráter sumário e ilustrativo, é o quanto ainda temos de avançar no sentido de desenvolver uma teoria e prática constitucionalmente adequada e também eficaz de resolver os problemas ligados ao direito ao esquecimento.

 

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