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‘Utopia numa hora dessas?’, por Cláudio Martinewski e Jayme Weingartner Neto

‘Utopia numa hora dessas?’, por Cláudio Martinewski e Jayme Weingartner Neto

No meio do caminho, havia uma pandemia (e pode se tornar intermitente). Sim, nossas vidas se alteraram profundamente, em todas as dimensões (local, global, pessoal, familiar, profissional). Se estamos no mesmo mar revolto, as naus são muito diversas, de transatlântico a canoa furada. E la nave va! Será que mudamos mesmo? Por quanto tempo? Para melhor ou pior?

No presente que nos toca, significar as dores, enfrentar as questões urgentes, formular novas perguntas, pensar alternativas, comprometer-se com os valores que queremos ver triunfar: eis os desafios. Atitudes e ações assumidas hoje impactarão o futuro. Por isso, é a hora de conversar sobre o que nos acontece, em qual direção podemos navegar. Para onde vai o mundo? E nosso cotidiano, e as cidades?

O horizonte convoca ao debate, para identificar tendências, reavivar projetos, imaginar novas práticas, lapidar consensos. O minimalismo do vírus forçou um freio de sobrevivência (distanciamento), mas acelerou urgentes medidas sanitárias e vacinas em tempo inédito. A economia soluçou, vidas e mais vidas se perderam, as linhas abissais da desigualdade e da discriminação pioraram (trabalhadores precários expostos, feminicídios, clivagens raciais). O vírus, num átimo, explicitou o que a mudança climática, na longa duração, deveria nos ensinar, que a natureza é vital para sobrevivermos (e não mero recurso a negociar). Se o negacionismo vende ilusão medicamentosa, a própria ciência precisa legitimar-se. E a democracia.

Nessa transição e com olhos no pós-pandemia, a magistratura lança seu XIV Congresso Estadual, previsto para os dias 11 a 13 de agosto. Se o contexto está mudando, o Poder Judiciário há de buscar novas inspirações sob pena de perder sua função historicamente conquistada, de pacificação social com justiça.

Primeiro, ouvir. Boaventura de Sousa Santos, o cosmopolita contra-hegemônico, nos trará sua reflexão seminal. Também os caminhos das Cortes internacionais (Europa e América) serão explorados, além de um painel sobre convivências que vai da geopolítica ao cotidiano das cidades, passando pela Agenda 2030. Ilustres juristas, jornalista, empresário urbanista, vozes plurais, escritores, artistas.

Sim, é hora de utopia. Sim, o futuro começa agora. Vejamos, em breves linhas, o cenário delineado por Boaventura. Como metáfora, o vírus é inimigo, mensageiro, pedagogo. Se a modernidade padece por uma histórica combinação de capitalismo, colonialismo e patriarcado, as linhas abissais agudizam, sejam econômicas (informais, desempregados), sexistas (feminicídios, LGBTQIA+), racistas ou outras. Os Estados, na emergência, respondem no arco que vai da democracia às exceções autoritárias.

Há três possibilidades. Na pior, o capitalismo predatório e o Estado de exceção securitário se consolidam; no meio, um novo neokeynesianismo, que resgata o serviço público como investimento e, sensibilizado socialmente, aposta em renda mínima e redistribuição; mas deixa intocados outros fatores de dominação, e apenas alternativas mais profundas propiciariam avanço civilizatório. Na transição para esse terceiro cenário, Boaventura formula uma declaração insurgente de direitos e deveres (uma reconhecida lacuna de 1948), um horizonte utópico cujos princípios a partilhar esboça, por exemplo na via negativa: desmercantilizar, descolonizar, despatriarcalizar e democratizar, em positividade futura: muito além do político, o econômico, o social, o cultural, o convivencial e o internacional. Ainda, oferta direitos-deveres para iniciar a roda de conversa da humanidade (só dois, para ilustrar: fica proibida a obsolescência programada dos produtos industriais; o direito à urbanidade é tão válido quanto o direito à ruralidade).

Boaventura adverte que declarações não mudam o mundo. Mas podem inspirar lutas sociais, pois têm vocação pedagógica “ao ousarem dar nome às aspirações de justiça e de equidade das populações empobrecidas e discriminadas do mundo” – matriz para utopias realistas, que operem por consensos, não unanimidades. Há 20 anos Porto Alegre sediou o primeiro Fórum Social Mundial. Há energias, aqui, para uma segunda vida? Nosso Congresso, com alguma pretensão, quer rodar essa conversa com todos e todas que ainda nos indignamos com a injustiça.

Cláudio Martinewski
Desembargador, vice-presidente Administrativo da AJURIS e coordenador-geral do Congresso

Jayme Weingartner Neto
Desembargador, diretor da Escola da AJURIS e coordenador-científico do Congresso

 

XIV Congresso Estadual da Magistratura

De 11 a 13 de agosto, com o tema A Utopia Agora: Futuros Possíveis. A programação, aberta ao público em geral, inclui uma conferência do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (na foto), painéis com o professor da PUCRS César Landa, a jurista alemã Angellka Nussberger, o empresário Philip Yang e a jornalista Flávia Oliveira, uma mesa com os escritores Patrícia Mello, Paulo Scott e Jefferson Tenório e o encerramento com o músico Nei Lisboa.

Inscrições em bit.ly/CongressoMagistratura.

* Artigo publicado no portal GZH na quinta-feira (29/7) e na edição impressa do jornal Zero Hora.