24 set Tutela legal do superendividamento do consumidor: necessidade e conveniência?
Poder Judiciário inovou com a criação do projeto piloto Tratamento das Situações de Superendividamento do Consumidor oferecendo a possibilidade do devedor participar de audiências de renegociação com todos os seus credores.
Artigos como “O cartão de crédito já sobe o morro”, publicado na revista do jornal Valor Econômico, no ano de 2009, noticiando a atuação de administradora de cartão de crédito na conquista de novos clientes em locais antes “inexplorados, como as favelas de São Paulo e do Rio de janeiro”, provocam a reflexão sobre os limites e as consequências das práticas de concessão de crédito em nossa sociedade. Nesse contexto, a utilização do crédito ao consumo, como bem indispensável à sobrevivência do indivíduo, integra o próprio conceito de sociedade pós-moderna, já conceituada como sociedade do efêmero, segundo Gilles Lipovetsky. Consectário disso é o questionamento acerca dos instrumentos disponíveis para enfrentarmos o fenômeno do superendividamento como resultado do excesso de dívidas capaz de ocasionar a ruína pessoal ou do núcleo familiar e a exclusão social do consumidor.
No Rio Grande do Sul, o Poder Judiciário inovou com a criação do projeto piloto Tratamento das Situações de Superendividamento do Consumidor, no ano de 2006, oferecendo a possibilidade do devedor, pessoa física de boa-fé, participar, de forma gratuita, de audiências de renegociação com todos os seus credores a fim de permitir a reestruturação do orçamento familiar e o enfrentamento do passivo existente. Nesses casos, os acordos obtidos em audiência, por exclusiva voluntariedade das partes, via de regra, observam a elaboração de planos de pagamento parcelado e o respeito à preservação do chamado mínimo existencial (reserva de valor mensal para as despesas de sobrevivência do indivíduo). Atualmente, este serviço vem sendo oferecido no Centro Judicial de Conciliação da Capital, com atendimento inicial no Foro Central, Procon-RS e Defensoria Pública do Estado e nas Comarcas de Sapiranga, Sapucaia do Sul, Charqueadas, Santa Maria e São Leopoldo.
A execução deste procedimento, criado no Poder Judiciário do Estado, revelou que o fenômeno social do superendividamento já integrava a rotina de inúmeras famílias de todas as classes sociais, apresentando como causa preponderante os “acidentes da vida”, a exemplo do desemprego, redução de renda, doença pessoal ou familiar, separação ou divórcio. Nesse passo, convictos sobre os benefícios do aumento do poder aquisitivo da população brasileira e das conquistas de acesso das classes menos favorecidas a bens e serviços de consumo nunca antes atingidos, julgamos imperiosa a atuação dirigente do Estado, em especial do Estado legislador, para impedir que o crédito fornecido de modo irresponsável não provoque um bem-estar coletivo e ilusório.
De um modo geral, este texto inicial vem inspirado nos resultados empíricos do projeto do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul e na pesquisa doutrinária e jurisprudential realizada na Universidade Federal de nosso Estado ao longo de quatro anos, focando dois pilares de desenvolvimento sustentável da oferta de crédito no País: o reforço à concessão do crédito responsável, já encontrado na principiologia do Código de Defesa do Consumidor, e a concretização do dever de cooperação mediante a criação do procedimento para o tratamento do fenômeno, seja na fase extrajudicial como na judicial. Além disso, a distribuição dos encargos, seja na fase prévia ou pós-contratual, contempla institutos jurídicos já inseridos em ordenamentos de outros países, a exemplo do direito de retratação para as hipóteses de crédito consignado, de modo que o estudo e a proposição pretendem instaurar o debate sobre a atuação efetiva do Estado na delimitação das consequências desejáveis do superendividamento em nossa sociedade.
Káren Rick Danilevicz Bertoncello – Juíza de direito, mestre em Direito Privado e professora de Direito do Consumidor