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Saudades da Bic

Saudades da Bic

Julgar um semelhante, dizer o direito sobre sua vida, atrimónio, liberdade é um dos atos mais difíceis e não há nada mais frustrante para aquele a quem o Estado outorgou esta importante missão do que não ter tempo razoável para examinar e amadurecer a melhor decisão.
Recentemente, em programa de rádio, um dos mais ilustres advogados gaúchos afirmou ter saudade do tempo em que os juízes assinavam suas decisões com a caneta Bic, bem como da época em que sentenças não eram feitas por estagiários e sessões de julgamento não examinavam 1200 processos por sessão. Digo eu, e tenho certeza que falo pela quase totalidade da magistratura, também nós, magistrados, temos muita saudade daquele tempo.
Julgar um semelhante, dizer o direito sobre sua vida, patrimônio, liberdade é um dos atos mais difíceis e não há nada mais frustrante para aquele a quem o Estado outorgou esta importante missão do que não ter tempo razoável para examinar e amadurecer a melhor decisão, abrindo mão da qualidade pela quantidade, vivendo permanentemente a angustia de, na necessidade de dar conta de uma carga de trabalho sobre-humana, cometer o injusto.
De forma propositiva e construtiva, está na hora de nós, juízes e advogados, essenciais e indispensáveis que somos para a Justiça, pararmos de uma vez por todas de apenas reclamar das consequências da difícil situação atual da jurisdição e começarmos a examinar as razões que levaram a este quadro, visando com isto o planejamento de soluções.
Alguns números falam por si. Em 20 anos, a população gaúcha cresceu cerca de 20% e a demanda judicial, 1.120%. No mesmo período o número de juízes de primeiro grau aumentou apenas 35%, sendo que o número de advogados habilitados na Ordem foi superior a 200%.
Isso já demonstra que o Estado não conseguiu acompanhar estruturalmente o aumento da demanda, quer pelas conhecidas dificuldades orçamentais, seja pela, reconheça-se, falta de planejamento adequado.
Por outro lado, o crescimento absolutamente desproporcional do número de advogados para um mercado sem qualquer condição de absorver minimamente os milhares de novos profissionais que são jogados semestralmente pelas faculdades de direito alterou profundamente o perfil dos processos judiciais. E isso se vê através da descaracterização dos litígios originariamente individualizados e normais da vida em sociedade, revestindo-se as atuais demandas de verdadeiro produto de mercado — massificado, produzido, procurado, oferecido.
Portanto, o quadro que aí está tem uma série de causas, passando pela estruturação deficiente do Judiciário, pela absoluta ineficiência de órgãos de controle e regulação que impõem a judicialização de todo e qualquer problema, ausência da cultura de soluções conciliadas ou coletivas, mas, principalmente, pela profunda alteração do perfil das demandas contemporâneas, em decorrência da mudança da própria sociedade e, em especial, pela necessidade de adequação ao mercado da advocacia atual, onde grandes e pequenos escritórios oferecem ações massificadas como se produto fossem.
Faço essa afirmação sem o viés crítico, mas como uma constatação, na expectativa de contribuir para o melhor enfrentamento do difícil momento, sob pena de que continuemos apenas discutindo as consequências sem tratar as causas, até porque, relacionamentos autofágicos, felizmente já superados pela grandeza dos que atualmente nos representam, já resultaram, recentemente, na extinção dos depósitos judiciais, onde, se não houver reversão a esta verdadeira ameaça, o quadro já crítico só tende a piorar; e, nesse caso, perdem magistrados, advogados e o jurisdicionado, nossa razão de ser, ganhando, mais uma vez, apenas os que nunca perdem neste País, os bancos.
Carlos Eduardo Richinitti – Juiz de Direito