11 maio Reforma da previdência: verdades para gregos e troianos, por Cíntia Teresinha Burhalde Mua*
Sua Excelência, o Presidente da República, veio a público para dizer que a reforma da previdência só incomoda os titulares de grandes salários e que 91% da população por ela não seria atingida, simplesmente porque recebem até dois salários-mínimos nacionais.
Ledo engano. Atinge a todos. Não se deixe enganar por meias-verdades.
O texto original da PEC 287 escandalizou a sociedade brasileira com a absurda exigência cumulativa de 49 anos de contribuição e idade mínima de 65 anos para que os cidadãos brasileiros pudessem almejar a aposentadoria de 100% da média aritmética simples de todas as contribuições previdenciárias vertidas para o sistema, respeitado o teto da previdência.
O substitutivo da Proposta de Emenda Constitucional provado em 03/05, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (por 23 votos a favor e 14 votos contra), manteve a idade mínima para a aposentadoria de 65 anos de idade para os homens, mas reduziu a idade das mulheres para 62 anos. Também, diminuiu o tempo de contribuição para ambos, de 49 para 40 anos.
Contudo, a propaganda oficial do substitutivo retoma a estratégia de divulgar apenas informações parciais, sonegando dados relevantes para que os brasileiros possam avaliar a extensão e o alcance das propostas sobre a situação jurídica de cada um de nós e seus reflexos sobre a sociedade como um todo para as presentes e futuras gerações.
Vamos focar em apenas um ponto: a aposentadoria voluntária pelo Regime Geral da Previdência Social. A população não está sendo esclarecida, por exemplo, que ao completar os requisitos mínimos para a aposentadoria voluntária (53 anos de idade para mulheres, 55 anos de idade para homens e 25 anos de contribuição para ambos) terá direito a apenas 70% da média aritmética simples das contribuições vertidas para o regime de previdência. Para conseguir chegar à integralidade da sua média, os segurados terão de cumprir mais 15 anos (40 anos de contribuição).
Ou seja, de largada, houve redução do piso da aposentadoria de 76% (texto original da PEC 287) para 70% (texto do substitutivo) e este ponto tem sido tratado sem maior destaque. O trabalhador perde 6% da sua média e nenhum barulho. A população está aturdida com tantas informações sobre este tema, que é juridicamente complexo, mas acima de tudo socialmente sensível. Por isso, tem o direito de ser esclarecida didaticamente.
Ademais, acaba com a fórmula 85/95, que hoje protege os segurados, correlacionando idade e tempo de serviço/contribuição como variáveis interdependentes, preservando o equilíbrio entre os princípios da contributividade e da solidariedade previdenciárias.
Traduzindo em miúdos, a fórmula impede que pessoas que começaram a trabalhar muito cedo – por exemplo aos 16 anos – precisem trabalhar muito mais e, consequentemente, contribuir muito mais, para obterem a aposentadoria de 100% da sua média.
Vejamos um exemplo: um segurado homem que, ao atingir os 55 anos de idade, acumulou 39 anos de tempo de serviço, dos quais 25 anos necessariamente com contribuição. Somando-se sua idade (55) com o tempo de serviço/contribuição (39), chegamos ao fator 94. Este cidadão, hoje, precisaria trabalhar mais um ano para obter o benefício aposentadoria de 100% de sua média contributiva. Aos 56 anos.
A proposta de Emenda Constitucional (PEC 287), em sua redação original, transcenderia os limites do poder reformador, revolucionando os parâmetros da Constituição de 1988. Mas cumpriu sua finalidade estratégica: induzir milhões de brasileiros a protocolarem seus pedidos de aposentadoria de acordo com as regras atuais, sujeitando-se às deduções do fator previdenciário, tornando-se titulares de benefícios muito menores que aqueles a que fariam jus se pudessem aproveitar a regra 85/95.
E com o texto aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados como, fica? No caso de um homem que aos 55 anos acumular 25 anos de contribuição para o sistema previdenciário – o que é nenhum absurdo, considerando o alto grau de informalidade do mercado brasileiro e as significativas taxas de desemprego – terá direito a 70% de sua média. Para atingir 100% da sua média contributiva, terá de verter ao sistema mais 15 anos de contribuição, quando terá 70 anos de idade.
Supondo o caso de uma mulher que aos 53 anos de idade tenha amealhado 25 anos de contribuição, terá direito a 70% da sua média. Se pretender chegar a 100% da sua média terá de contribuir durante mais quinze anos, quando estará com 68 anos idade.
Isto significa dizer que um número considerável de brasileiros contribuirá uma vida inteira para o sistema de previdência sem nada receber, posto que não viverá para usufruir o benefício. Segundo reportagem do jornal El Pais, de 18 de fevereiro de 2017, em 19 cidades do Brasil, nossos cidadãos têm expectativa de vida inferior a 65 anos.
Para os agraciados com expectativa de vida igual ou superior a 65 anos, outro dado tem sido reiteradamente sonegado na propaganda oficial pró-reforma.
A definição da idade mínima para aposentaria “integral” (100% da média contributiva do trabalhador), nos países que serviram como paradigma para a proposta brasileira, além de estar sendo implantada escalonadamente (no Japão, por exemplo, ao ritmo de 4 meses ao ano, com o atingimento dos 65 anos apenas em 2025), passou pela necessária contextualização do tempo em que o(a)aposentado(a) poderia usufruir do benefício da aposentadoria antes de ser acometido por uma doença que lhe debilite a saúde e reduza a qualidade de vida, privando-o, por exemplo, do direito à locomoção com autonomia.
Na Europa, segundo dados da ONU, considerando-se a idade mínima de 65 anos para aposentadoria, há expectativa que um (a) aposentado(a) possa aproveitar o benefício, no gozo da sua plena liberdade e com saúde, por um período médio de seis anos e meio; no Brasil, estatísticas demonstram que este intervalo gira em torno de 6 meses.
A recente aprovação da Emenda Constitucional nº 55/2016, que limita os investimentos em saúde pública nos próximos 20 anos, no mínimo congelará este cenário. Provavelmente será recrudescido, pela ausência de perspectiva de uma atenção em saúde para prevenção e, sucessivamente, tratamento eficiente de moléstias graves incapacitantes, num sistema hoje já precarizado e que migra a passos largos para o colapso.
Assim, impor aos brasileiros a idade mínima de 65 anos para aposentadoria voluntária com 100% de sua média contributiva, é aceitar que aqueles que alcancarem a idade tabulada, terão um tempo muito restrito para aproveitá-la com saúde. Redimensionada para 60 anos, para homens, e 58 anos, para mulheres, estaríamos dentro da média mundial de expectativa de vida com saúde (fator HLE).
Com suporte em dados parciais, que não consideram a totalidade das receitas da seguridade social – da qual a previdência é apenas uma parte – a estratégia do terrorismo fiscal constrange os cidadãos brasileiros, diuturnamente, a aceitarem que a reforma da previdência, tal qual está sendo imposta, é um caminho sem volta.
Mas não é. E você precisa saber disso. Há temperamentos que precisam ser feitos. Não podemos nos resignar. O desconsolador retrato da desigualdade social e da acintosa concentração de renda neste País, nunca poderia servir de divisor de águas para o primeiro mandatário da República fundamentar a reforma da previdência, antes devia determinar a realização exauriente de todas as medidas de gestão orçamentária (revisão das anistias fiscais, vedação da utilização de 30% das receitas da seguridade social para outras finalidades – a famosa DRU, melhor gerenciamento da cobrança dos créditos tributários, por exemplo), promovendo a máxima proteção possível do direitos fundamentais, dentre os quais a previdência pública, principalmente para aqueles que dela mais necessitem.
E os abastados 9%, que seriam, na dicção do Presidente, os únicos incomodados com a reforma pretendida? Migrarão para o regime de previdência complementar. E o prognóstico de expectativa de vida para este grupo é melhor? Basta ver o que já está acontecendo no Chile para chegarmos a uma resposta negativa. Os “privilegiados” daqui somente estarão se constituindo em instrumento involuntário para consolidar novos parâmetros da superconcentração de renda aos titulares do capital especulativo, donos dos fundos de pensão. E ao povo brasileiro, o que restará? Retrocesso social, indignidade para idosos e pessoas portadoras de necessidades especiais, aumento da desigualdade social e empobrecimento geral da população.
Vivemos um momento grave, que exige reflexão cívica, numa coesão que suplante ideologias político-partidárias. A reforma da previdência virá para gregos e troianos.
Cíntia Teresinha Burhalde Mua é juíza de Direito e diretora de Estudos Estratégicos da AJURIS