17 dez ‘O uso da tecnologia para o arbitramento de danos morais: a recente inovação gaúcha’, por Eugênio Facchini Neto
Problema ainda sem solução no Direito Comparado, na área de responsabilidade civil, diz respeito ao arbitramento dos danos morais (ainda que preferível, por ser mais ampla, a denominação de danos não patrimoniais ou extrapatrimoniais, a de danos morais está demasiadamente impregnada na jurisprudência, razão pela qual será ela utilizada neste texto).
O princípio da reparação integral, que rege a responsabilidade civil entre nós (artigo 944, caput, do CC), é relativamente fácil de ser observado quando se trata de danos materiais. Basta a vítima mandar consertar o dano, pagar, pegar recibo e pedir o ressarcimento. Ou então providenciar em orçamentos relativos ao conserto, que embasarão posterior ação de reparação dos danos. Em casos mais complexos, como a fixação de lucros cessantes, por vezes a nomeação de um perito será necessária.
Todavia, todas essas alternativas são descartadas quando se trata de fixar o valor de um braço amputado, da perda da visão de um olho, dos danos decorrentes da necessidade de internação hospitalar por alguns dias, da perda de um ente querido, do constrangimento de um protesto indevido, da ofensa à honra, da exposição ilícita da imagem de alguém ou do vazamento de dados pessoais, para citar alguns dos casos que rotineiramente transitam pelos escaninhos forenses.
Para essas hipóteses, o legislador apenas pode oferecer alguns critérios genéricos, como aqueles indicados entre os artigos 948 e 954 do Código Civil, ou um pouco mais específicos, como os indicados no artigo 223-G, da CLT (introduzidos pela reforma trabalhista de 2017), mas cabe ao julgador a tarefa de fixar um valor preciso, mesmo nas hipóteses em que o legislador procura indicar limites mínimos e máximos, como ocorreu no artigo 223-G, §1º, da CLT.
Em nenhum país existe um tarifamento dos danos morais. Isso demonstra que tabelamento é algo inadequado ou até mesmo impossível, diante da imensa variedade das situações fáticas. Um braço direito é um braço direito, para qualquer pessoa. Todavia, sua perda tem um peso diverso para quem é canhoto ou destro, para quem tem 15 anos (e uma vida pela frente) ou para quem tem 85 anos (e um número menor de anos a serem ainda vividos com tal déficit). A perda de dois dedos da mão esquerda, para um destro, provavelmente não impactará a atividade profissional de um professor, um advogado, um magistrado, mas impedirá o trabalho de um pianista ou de um violinista (provavelmente acarretando-lhes também danos existenciais ou aos seus projetos de vida). Ou seja, a ineliminável diversidade de situações fáticas torna impensável um preciso tabelamento, sendo inafastável a necessidade de se confiar no prudente arbítrio do juiz, à luz das circunstâncias concretas do caso a ser julgado.
Todavia, não só os fatos se diferenciam em maior ou menor grau uns dos outros — o que per si explicaria a diversidade de valores —, mas também os julgadores que avaliarão esses fatos são diversos entre si. Suas visões de mundo, suas cargas axiológicas, seus conceitos e preconceitos, suas vivências e seus valores inevitavelmente contaminarão sua análise. O resultado, todos o sabemos, é que dois julgadores diversos, examinando os mesmos fatos, poderão chegar a valores diferentes, especialmente se um não souber do resultado a que chegou seu colega ao apreciar caso semelhante.
Assim, ainda que seja inevitável que valores indenizatórios diversos sejam fixados por juízes diferentes, julgando situações envolvendo situação fática assemelhada, a discrepância de valores pode ser expressiva — e até chocante, pois ofende o princípio básico de justiça, que prega que casos iguais sejam julgados de forma idêntica, e apenas na medida e proporção em que se diferenciam é que se tolera a diversidade de julgamento.
Essa aparentemente anômala disfunção da atividade judicante nunca foi bem tolerada. Descartada, por impraticável, a possibilidade de elaboração de uma tabela uniforme para todos os tipos de danos não patrimoniais, algumas experiências estrangeiras foram bem-sucedidas na tentativa de se alcançar não a uniformidade, mas uma maior harmonização e racionalidade. Limito-me a indicar duas, a experiência inglesa e a italiana, exatamente para pontuar que esse é um problema que aflige tanto sistemas de common law quando sistemas de civil law, ou romano-germânico.
Na Inglaterra, em 1992 foi publicada a primeira edição (atualmente já está na 15ª) dos “Guidelines for the Assessment of General Damages in Personal Injury Cases”, elaborado pelo Judicial Studies Board (órgão oficial integrante da administração judiciária inglesa, substituído, em 2011, pelo Judicial College). Trata-se de um guia para a fixação judicial do valor dos danos à integridade psicofísica, a partir de precedentes. Substancialmente o guia “mapeou” o corpo humano e, para cada tipo de lesão (cabeça, ombros, membros, órgãos internos, sentidos etc.), localizaram-se acórdãos que foram analisados e identificados como referindo-se a lesões muito severas, severas, moderadas, leves etc. Para cada nível, indicaram-se os valores mínimos e máximos fixados nas decisões. Também constam breves explicações sobre os aspectos que foram destacados pelos juízes para a identificação do nível de severidade. Assim, para qualquer juiz que tiver de julgar um caso envolvendo lesão à integridade psicofísica, a consulta do guia lhe permitirá, em instantes, identificar quais os parâmetros valorativos vêm sendo utilizados para casos semelhantes ao que está a julgar.
Na Itália também se sentiu a necessidade de fornecer ao julgador parâmetros para a fixação da indenização em se tratando dos lá chamados danos biológicos (danos à integridade psicofísica). Muitas tabelas foram criadas por diversos tribunais (de Roma, Pisa, Gênova, Milão), há cerca de 40 anos, sendo que a de Milão foi a que melhor acolhida teve, sendo hoje utilizada nacionalmente (inclusive por recomendação da própria Corte de Cassação, como se vê do acórdão nº 19.376, de 08/11/2012). Referida tabela utiliza três fatores, quais sejam, o grau de invalidez (quanto maior o grau, maior a indenização), a idade da vítima (quanto menor a idade, maior a indenização) e um valor-base fixado a partir das médias jurisprudenciais.
No Brasil, utiliza-se cada vez mais o chamado método bifásico para o arbitramento do valor indenizatório dos danos extrapatrimoniais. Referido método, desenvolvido na tese de doutoramento do então desembargador do TJ-RS Paulo de Tarso V. Sanseverino, foi posteriormente utilizado na fixação dos danos morais, pelo mesmo jurista, após sua nomeação para integrar o STJ, onde obteve larga acolhida. Como consta da ementa do AgInt no REsp 1.608.573/RJ, julgado em 20/8/2019: “2. O método bifásico, como parâmetro para a aferição da indenização por danos morais, atende às exigências de um arbitramento equitativo, pois, além de minimizar eventuais arbitrariedades, evitando a adoção de critérios unicamente subjetivos pelo julgador, afasta a tarifação do dano, trazendo um ponto de equilíbrio pelo qual se consegue alcançar razoável correspondência entre o valor da indenização e o interesse jurídico lesado, bem como estabelecer montante que melhor corresponda às peculiaridades do caso. 3. Na primeira fase, o valor básico ou inicial da indenização é arbitrado tendo-se em conta o interesse jurídico lesado, em conformidade com os precedentes jurisprudenciais acerca da matéria (grupo de casos). 4. Na segunda fase, ajusta-se o valor às peculiaridades do caso com base nas suas circunstâncias (gravidade do fato em si, culpabilidade do agente, culpa concorrente da vítima, condição econômica das partes), procedendo-se à fixação definitiva da indenização, por meio de arbitramento equitativo pelo juiz”.
Pensando nessas experiências alienígenas e na orientação contida na primeira fase do método bifásico, a Justiça gaúcha buscou inovar, unindo essas ideias à tecnologia hoje disponível. Um grupo de magistrados integrantes do Núcleo de Inovação e Administração Judiciária (Niaj), ligado à Escola Superior da Magistratura/Ajuris, com apoio da Comissão de Inovação do Tribunal de Justiça/RS (Inovajus), fez contato com o setor tecnológico da PUC-RS — Tecnopuc, parque tecnológico da PUC-RS — e, mediante profícuo diálogo com professores e pesquisadores da área da informática que trabalham com jurimetria, chegou-se a um convênio entre aquela instituição e a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) para elaboração de uma tabela contendo parâmetros para a fixação dos danos morais. Ao longo de todo o ano de 2020, uma equipe de técnicos daquela instituição, assessorada por juristas, acessou o acervo de acórdãos do Tribunal de Justiça gaúcho dos últimos anos, identificou todos aqueles que fixaram indenização para danos morais — qualquer que fosse a denominação utilizada, como danos estéticos, danos à imagem etc. — e elaborou uma tabela contendo parâmetros, muito intuitiva, de rápido e fácil acesso. Digitando-se os termos de busca desejados, chega-se rapidamente a uma lista contendo dados tratados de casos semelhantes, indicando-se os valores máximo, mínimo, mediano e a média, com breves referências às peculiaridades dos casos selecionados. Assim, o julgador pode comparar as peculiaridades do caso que está analisando com as peculiaridades dos casos já julgados e constatar os valores já usados para casos semelhantes. A pesquisa permite acesso por matéria, assunto, ou palavra-chave. Localizando-se uma informação potencialmente interessante, um duplo clique permite o acesso à ementa do acórdão e a posterior pesquisa do seu inteiro teor, se necessário.
Evidentemente que cada caso é um caso e que o julgador não deve, acriticamente, simplesmente optar pela média ou pela mediana ou por qualquer outro valor entre o mínimo e o máximo. Mas ele terá diante de si referências úteis para auxiliar na sua decisão. Tais dados obviamente já estavam dispersos no sistema, mas o que essa tabela permite é localizar, em segundos, todos os casos já julgados sobre situações semelhantes, devidamente tratados e sistematizados. Além disso, normalmente as ementas não informam os valores das indenizações, ou não especificam as peculiaridades fáticas dos casos, o que exigia, do pesquisador, um considerável tempo para obter um agregado de informações úteis. Como os elaboradores da tabela referencial analisaram o inteiro teor dos acórdãos, e não simplesmente a ementa, todas essas informações agora estão facilmente acessíveis ao julgador e seus assessores. O que antes representava uma pesquisa de horas, e provavelmente incompleta, agora em segundos se obtém informações completas.
A vantagem dessa novel espécie de “parametrização eletrônica”, relativamente aos modelos europeus antes citados, é dupla. Em primeiro lugar, abrange não só os danos corporais (ofensas à integridade psicofísica) mas todas as espécies de danos extrapatrimoniais constantes da jurisprudência gaúcha. Em segundo lugar, a consulta aos precedentes se dá de forma muitíssimo mais célere, pois com poucos cliques do mouse e a digitação de poucos termos chega-se aos dados desejados.
A tabela (denominada de Tabela de Parâmetros do Dano Moral) foi apresentada no último dia 17 de novembro a um grupo restrito de unidades jurisdicionais do TJ-RS com competência específica sobre o tema, para experimentação e sugestões. No último dia 3, foi oficialmente disponibilizada para uso de todos os magistrados gaúchos.
Trata-se de um projeto piloto, com potencial de expansão futura, abarcando os precedentes dos tribunais superiores, e estendendo-se a outras áreas do Direito em que o uso de semelhante tecnologia possa ser útil.
Há coisas que não mudam — como a necessidade da sensibilidade de juízes humanos para julgar seus semelhantes [1]. Mas mesmo coisas imutáveis podem ser feitas de forma mais rápida e com maior objetividade com o uso da tecnologia disponível. Afinal, como já advertira Josserand [2] há muito tempo, “los juristas, por fieles que sean a la tradición, deben, en las horas en que vivimos, mirar en su derredor más bien que hacia atrás; deben vivir con su época, si no quieren que ésta viva sin ellos”.
*Eugênio Facchini Neto é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, professor titular dos cursos de graduação, mestrado e doutorado da PUC-RS, professor e ex-diretor da Escola Superior da Magistratura/Ajuris (Escola da Ajuris), doutor em Direito pela Universidade de Florença (Itália), mestre em Direito pela Faculdade de Direito da USP e integrante do Núcleo de Inovação e Administração Judiciária (Niaj). Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, no dia 16 de dezembro de 2020.
[1] Nesse sentido, GRECO, Luís. Poder de julgar sem responsabilidade de julgador: a impossibilidade jurídica do juiz-robô. São Paulo: Marcial Pons, 2020.
[2] JOSSERAND, Louis. Derecho civil. T. II, vol. I. Trad. de Santiago C. y Manterola. Buenos Aires: E.J.E.A., 1950, p. 449.