13 fev O conceito de direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, por Ingo Sarlet
Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Sarlet, publicado na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur nesta sexta-feira (13/2).
Que existem razões suficientes, jurídicas e filosóficas, para distinguir os direitos humanos dos assim chamados direitos fundamentais, me parece algo suficientemente elucidado nas duas colunas anteriores (clique aqui e aqui para ler). Da mesma forma, como se procurou demonstrar mediante recurso a alguns exemplos (proibição da pena de morte e FGTS, entre outros), tal distinção assume particular relevância, maior ou menor, mas não permite uma equiparação pura e simples entre as duas categorias, especialmente quando a distinção é efetuada com base em determinados critérios.
Mas é claro que os próprios critérios podem ser em si contestados e também nada impede que se lance mão da mesma nomenclatura (direitos humanos, ou mesmo apenas e de modo genérico, direitos fundamentais, ou, como preferem outros, direitos humanos fundamentais) para todos os direitos, sejam eles consagrados no plano do direito internacional dos direitos humanos, sejam eles consagrados ao nível constitucional interno dos Estados e mesmo os direitos na condição de direitos morais, que, em determinado sentido, são também direitos humanos e fundamentais. Mas, tal qual como já demonstrado, não afasta diferenças relevantes, acompanhadas de consequências jurídicas igualmente significativas e em diversos níveis.
De qualquer sorte, chama a atenção que também a terminologia direitos fundamentais pode assumir sentidos distintos a depender do conteúdo que se lhe atribui. Ou seja, ainda não chegamos ao fim do problema inaugurado com as colunas anteriores. Aliás, precisamente nesse contexto convém ressaltar que nem todas as ordens constitucionais se valem da expressão direitos fundamentais, mas também ocorre que mesmo as que adotaram tal terminologia não contemplam necessariamente, em toda extensão, o mesmo conceito de direitos fundamentais, por mais que possa haver elementos comuns.
Com isso já se percebe que os direitos fundamentais na condição de direitos constitucionalmente assegurados possuem uma abrangência em parte distinta dos direitos humanos, seja qual for o critério justificador de tal noção, por mais que exista uma maior ou menor convergência entre o catálogo constitucional dos direitos fundamentais e o elenco de direitos humanos, convergência que será maior quanto maior a sinergia com os níveis de positivação dos direitos humanos na seara internacional.
Para a compreensão adequada do que são, afinal de contas, direitos fundamentais, não basta saber que se cuida de direitos assegurados pela ordem constitucional de determinado Estado, pois tal circunstância, embora essencial, por si só não é suficiente, ao menos de acordo com a evolução que marcou o constitucionalismo do Segundo Pós-Guerra e da qual o modelo adotado pelo nosso próprio constituinte de 1988 é tributário.
Dito de outro modo, o conceito de direitos fundamentais também entre nós não se limita à condição de direitos positivados expressa (ou mesmo implicitamente) em determinada constituição: um direito fundamental não é, portanto, apenas um direito de matriz constitucional.
Tal mudança de paradigma, ainda que não assimilada da mesma forma por todas as ordens constitucionais, teve sua expressão mais significativa na Alemanha, quando, à vista da fragilidade (do ponto de vista jurídico-normativo) dos direitos fundamentais consagrados pela Constituição de Weimar, de 1919, que não vinculavam diretamente e em toda extensão os órgãos estatais, especialmente o Poder Legislativo, os “pais” da Lei Fundamental de 1949, ao que se sabe pela primeira vez na história do constitucionalismo, inseriram uma cláusula expressa (artigo 1º, III) dispondo que os direitos fundamentais vinculam diretamente os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Com isso, a exemplo do que de certo modo já vinha ocorrendo em alguns outros (embora na época ainda isolados) países, como é o caso dos EUA (mas sem disposição constitucional expressa equivalente) os direitos fundamentais passaram a ser considerados autênticos “trunfos contra a maioria” (Dworkin), ou, na acepção de Robert Alexy, posições jurídicas subtraídas à plena disposição dos poderes constituídos. Não é à toa também que a todo momento se invoca a afirmação de Herbert Krüger no sentido de que na época de Weimar os direitos fundamentais se encontravam na dependência da lei e que com a Lei Fundamental de 1949 a lei é que passou a estar na dependência dos direitos fundamentais.
Mas tal não bastou aos olhos dos constituintes alemães de então. Por mais importante que seja a afirmação da eficácia (vinculação) direta dos direitos fundamentais, a ausência de uma instância competente e suficientemente forte para assegurar a devida aplicação de tal comando, a exemplo do que ocorria sob a égide da constituição weimariana, levou, entre outros motivos, à criação de um Tribunal Constitucional cujas competências abarcam precisamente o controle da vinculação de todos os órgãos estatais, no âmbito de uma vinculação isenta de lacunas (aqui na dicção de um Gomes Canotilho) às normas de direitos fundamentais. Paralelamente a isso, criou-se um poderoso mecanismo de acesso direito por parte da cidadania ao Tribunal Constitucional para instrumentalizar, mediante uma típica ação constitucional (a famosa Verfassungsbeschwerde ou Reclamação Constitucional), a proteção dos direitos fundamentais do cidadão em face de atos dos órgãos estatais. Com isso, resulta cristalino que os direitos fundamentais não deveriam em hipótese alguma seguir sendo, em geral, direitos sem eficácia e efetividade.
Mas também isso ainda não se revelou suficiente, pois eficácia direta e acesso direto mediante um instrumento processual próprio não garantem, por si só, os direitos fundamentais em face de um processo de esvaziamento e mesmo de substancial aniquilação especialmente por parte dos órgãos legislativos, que seguem (como há de ser em um Estado Democrático) com a prerrogativa da regulamentação da constituição e dos direitos fundamentais.
Pelo menos quatro outras medidas (para citar as mais relevantes) somam-se às anteriores nessa mesma toada: proteger ao máximo os direitos fundamentais!
De acordo com o disposto no artigo 19, II, da Lei Fundamental a lei poderá restringir os direitos fundamentais desde que preserve o seu respectivo núcleo essencial, ou seja, a restrição, embora legítima do ponto de vista constitucional, não representa uma “carta em branco” para as instâncias legislativas. Mas também a exigência de respeitar os requisitos das reservas legais e os critérios da proporcionalidade, bem como a inclusão (ainda que não necessariamente integral, na Alemanha) dos direitos fundamentais na esfera das assim chamadas “cláusulas pétreas” da Constituição constituem mecanismos cujo escopo é reforçar a proteção dos direitos fundamentais, seja mediante inclusão de tais garantias na constituição escrita (formal), seja mediante construção jurisprudencial.
A “fórmula” germânica de fato, tudo somado, representou, como já adiantado, um marco na trajetória constitucional e levou à própria reconstrução e mesmo formatação do atual conceito de direitos fundamentais, pois vincula a circunstância de se tratar de um direito reconhecido (atribuído) pela ordem constitucional à existência de um particular e sempre diferenciado regime jurídico que, ao fim e ao cabo, simultaneamente assegura, de modo reforçado (qualificado) a normatividade e proteção de tais direitos (precisamente por serem fundamentais do ponto de vista material) mediante um conjunto de garantias constitucionais, expressas ou mesmo implícitas, garantias que passam a integrar a própria noção de direitos fundamentais.
Foi, aliás, com base em tal evolução, levada a efeito pelo legislador constituinte e pela jurisprudência constitucional, em diálogo com a doutrina, que Robert Alexy, na sua famosa (mas não inconteste!) Teoria dos Direitos Fundamentais, acertadamente remete a um duplo esteio, material e formal, da noção de direitos fundamentais: do ponto de vista material, cuida-se de posições jurídicas selecionadas pelo constituinte histórico como sendo suficientemente relevantes para serem alçados à condição de direitos fundamentais; na perspectiva formal (que se soma à primeira), cuida-se do conjunto de garantias atribuídas a tais direitos e que lhes assegura um regime jurídico diferenciado e qualificado na arquitetura constitucional.
Por isso, calha repetir: um direito fundamental é sempre um direito de matriz constitucional (sendo ou não também um direito humano) mas não se trata de um mero direito constitucional. Numa outra formulação: entre um direito fundamental e outra simples norma constitucional (a despeito da terem em comum a hierarquia superior da constituição e o fato de serem todas parâmetro para o controle de constitucionalidade) situa-se um conjunto, maior ou menor, de princípios e regras que asseguram aos direitos fundamentais um status, representado por um regime jurídico, diferenciado.
Tal paradigma, como já se pode inferir, foi adotado – ressalvadas importantes diferenças – por muitos outros Estados Constitucionais e também corresponde ao modelo incorporado pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a jurisprudência dos dois grandes Tribunais Europeus nessa seara, sem prejuízo de que mesmo lá existem distinções entre os diversos níveis (supranacional e nacional) de reconhecimento e proteção.
O que importa, para nosso efeito, é que o Constituinte de 1988 igualmente trilhou tal caminho, muito embora não tenha, no plano textual, instituído um regime jurídico tão detalhado em matéria de direitos fundamentais quanto o foi na Alemanha ou mesmo em Portugal e na Espanha.
Desde logo, do ponto de vista das opções expressas do Constituinte histórico, o texto constitucional vigente entre nós assegurou, de modo inovador em nossa ordem jurídica, a aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (artigo 5, § 1º), embora não tenha feito referência à vinculação direta dos poderes públicos. De qualquer sorte, cuida-se também de elemento peculiar de um regime jurídico-constitucional próprio dos direitos e garantias fundamentais. O mesmo pode ser afirmado em relação à previsão do artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, onde, juntamente com a separação dos poderes e do federalismo (princípios fundamentais estruturantes), o direito fundamental ao sufrágio e os demais direitos e garantias individuais foram erigidos à condição de limites materiais ao poder de reforma constitucional, o que também integra o regime jurídico reforçado dos direitos fundamentais.
Diferentemente de outros Estados Constitucionais (especialmente Alemanha e Espanha) o nosso constituinte, contudo, não optou por criar uma ação constitucional genérica e própria para a proteção dos direitos fundamentais, mas sim instituiu, para além da garantia da inafastabilidade do controle judicial (que assume a condição de um direito-garantia fundamental de caráter geral), diversos instrumentos processuais, sejam eles mais específicos, destinados à proteção de determinados direitos (habeas data, habeas corpus), sejam eles mais abrangentes (mandado de segurança, mandado de injunção e mesmo a ação civil pública), mas sem que tais ações constitucionais tenham por escopo exclusivo a proteção de direitos fundamentais.
Também de modo distinto de outras ordens constitucionais (Alemanha, Portugal, Espanha etc.), a Constituição Federal de 1988 não atribuiu expressamente às pessoas jurídicas a condição de titulares de direitos fundamentais, embora tal aspecto tenha sido objeto de reconhecimento e desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial, o mesmo ocorrendo com a aplicação, no plano do controle da legitimidade constitucional de intervenções restritivas dos direitos fundamentais, dos critérios da proporcionalidade e mesmo da razoabilidade. Situação similar se verifica com a garantia do núcleo essencial, que diversos autores deduzem da previsão (artigo 60, § 4º) de que as propostas de emenda constitucional não poderão sequer serem submetidas à deliberação quando de modo efetivo ou tendencial levarem à abolição dos conteúdos protegidos por conta das “cláusulas pétreas”, mas que também – segundo muitos – é decorrência da própria proporcionalidade, o que aqui agora não será desenvolvido.
Importante, a essa altura, é a percepção de que o conceito e o correspondente regime jurídico dos direitos fundamentais depende das opções expressas e implícitas do constituinte histórico, mas também se encontra na dependência da construção e reconstrução permanente pela doutrina e jurisprudência, ademais de ajustes levados a efeito por meio dos mecanismos formais de reforma constitucional, como, aliás, ocorreu no caso brasileiro mediante a inserção do § 3º no artigo 5º, que dispõe sobre a incorporação e valor jurídico-normativo dos tratados internacionais de direitos humanos.
Com isso, mais uma vez, é possível compreender as razões pelas quais a garantia do FGTS, do adicional de 1/3 sobre as férias do trabalhador, a garantia da anualidade em matéria eleitoral, dentre tantos exemplos que aqui poderiam ser colacionados — são direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira e não o são, necessariamente, em outras constituições.
Mas também é certo que tal processo é complexo e dinâmico. Seja pelo fato de que é submetido a constantes testes e câmbios, em maior ou menor escala, seja pelo fato de que em geral os catálogos constitucionais de direitos são compreendidos como sistemas materialmente abertos, porquanto inclusivos de direitos não necessariamente expressamente consagrados e mesmo dos direitos humanos. É o que, no caso brasileiro, indica claramente o artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal, de uma riqueza ímpar, mas que também implica problemas teóricos e práticos de nem sempre fácil equacionamento.
Da mesma forma, segue controversa, aqui e alhures, não apenas a própria configuração do regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais, quanto especialmente conturbada se mostra a querela em torno de sua correta compreensão e mesmo de sua aplicação a todas as modalidades de direitos. Assim, por exemplo, continua a provocar discussões em debates acadêmicos e mesmo nos foros judiciais a aplicação da reserva de lei e suas respectivas consequências, a aplicação dos critérios da proporcionalidade e da razoabilidade (sequer está superada a discussão sobre a eventual fungibilidade das noções), bem como a intepretação do mandamento da aplicabilidade imediata e da subsunção ao artigo 60, parágrafo 4º (cláusulas pétreas) de todos os direitos ou apenas de parte deles.
Com isso também se pode aferir o quão fascinante é o tema e quanto uma determinada compreensão, ainda mais quando convertida em jurisprudência constitucional vinculante pelas mãos do Supremo Tribunal Federal, implica consequências de alta repercussão para a interpretação/aplicação dos direitos fundamentais e para as nossas vidas em nível individual e coletivo. Nas próximas colunas seguiremos, sempre à luz de exemplos, desenvolvendo os diversos aspectos de tais problemas.
Ingo Wolfgang Sarlet é juiz de Direito e professor titular da PUC-RS.