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O caso da cracolândia de São Paulo e a (in?)dignidade da pessoa humana, por Ingo Wolfgang Sarlet

O caso da cracolândia de São Paulo e a (in?)dignidade da pessoa humana, por Ingo Wolfgang Sarlet

Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 16 de junho na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.

Ainda que se trate de tema já versado em coluna anterior (12/16), o episódio envolvendo o recente processo de internação compulsória coletiva e evacuação da assim chamada “Cracolândia”, na região central da cidade de São Paulo, recolocou o assunto – embora de modo altamente polêmico e trágico – na agenda da mídia, com repercussão na sociedade e mesmo na esfera política e judiciária.

Além disso, os fatos veiculados nos órgãos de comunicação social e também nas mídias sociais, embora evidentemente não possam ter retratado a integralidade dos fatos e muito menos ter transmitido com completude e total fidedignidade toda a dramaticidade do ocorrido, tiveram suficiente impacto para atrair a atenção da população, gerando tanto aplausos quanto indignação e crítica.

Embora a indignidade e miséria humana que a situação de vida das pessoas que habitam ou frequentam a região da “Cracolandia” não seja desconhecida e vez por outra tenha sido objeto de divulgação e discussão, a crueza e violência – real e simbólica – dos acontecimentos recentes, protagonizados pelo Poder Executivo municipal e chancelados pelos órgãos judiciários da primeira Instância, não encontra precedente similar no que diz com suas proporções.

Mesmo assim, tirante a gravidade, violência e ilegitimidade jurídica das medidas tomadas e de suas consequências, ao menos é possível extrair algum efeito positivo útil dos fatos, designadamente a circunstância de terem dado alguma e nova visibilidade (ainda que da pior forma possível) à violação de direitos humanos e fundamentais verificada, ademais de ensejarem reflexão e intenso debate, que, quem sabe, poderá resultar em medidas mais adequadas para o equacionamento e superação do problema, especialmente não mediante deslocamentos e internações compulsórias generalizadas de pessoas humanas cuja dignidade já tem sido de há muito violada, sem que aqui se esteja a apontar culpados.

Antes de avançarmos em termos de uma avaliação mais geral, calha recordar que toda e qualquer medida adotada e implementada pelo poder público (e mesmo por atores privados), há de observar o marco normativo constitucional e legal (inclusive e em especial – para o caso – da Lei da Reforma Psiquiátrica) iluminado pelo dever de respeito e proteção da dignidade de cada pessoa humana e de seus direitos fundamentais.

A internação obrigatória (expressão que aqui se utiliza como gênero, abarcando, nessa fase, as modalidades compulsória e involuntária), contudo, nem sempre tem sido apropriadamente manejada, seja no âmbito dos serviços de saúde, seja na esfera jurídica, o que se deve a uma série de fatores que aqui não poderão ser examinados, mas que desafiam maior reflexão e impõe o enfrentamento de uma série de perplexidades, jurídicas e práticas, consoante, aliás, ficou evidenciado no caso ora comentado[1].

Um primeiro problema diz respeito ao escopo e alcance das internações de caráter cogente (no episódio da cracolandia utilizou-se o expediente da internação compulsória) estabelecidas pela Lei 10.216;2001, a intitulada Lei da Reforma Psiquiátrica (LRP).

Dentre os principais vetores da legislação referida, está a proibição de toda e qualquer discriminação das pessoas com transtornos mentais, além de privilegiar o acompanhamento e tratamento no núcleo familiar e evitar ao máximo a institucionalização de tais pessoas, de modo a assegurar a sua integração na vida social e familiar. Ademais disso, a Lei da Reforma Psiquiátrica enfatiza o respeito à autonomia da pessoa com transtornos mentais e aposta no caráter excepcional das internações involuntárias (aqui designadas de obrigatórias).

Especificamente no que diz respeito ao ponto focado nessa coluna, a internação psiquiátrica é regulada pelos artigos. 4º, 6º, 7º, 8º e 9º, da LRP. Consoante o disposto no artigo 4º, caput, a internação psiquiátrica, em qualquer das modalidades, somente se mostra cabível quando os recursos não hospitalares forem tidos como insuficientes e houver risco à integridade física, à saúde ou à vida dos portadores de transtorno mental ou a terceiros. A situação de perigo concreto deve estar prevista em laudo médico circunstanciado, caso contrário, torna-se incabível a obrigatoriedade de internação do paciente (artigo 6º, caput). Em havendo necessidade do internamento, este deverá buscar a cessação do estado de perigo, com consequente reinserção social do paciente em seu meio (arigo. 4, parágrafos 1º e 2º).

De acordo com a LRP são três as modalidades de internação psiquiátrica (artigo 6, parágrafo único, incisos I a III), quais sejam: voluntária, involuntária, e compulsória. Na internação voluntária pressupõe-se o consentimento do paciente, que deverá assinar uma declaração atestando sua escolha por este tipo de tratamento (art. 7º, caput). A internação involuntária dá-se sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro, sendo que seu término somente ocorrerá por solicitação escrita do familiar ou responsável legal ou ainda quando houver manifestação do médico responsável pelo tratamento (art. 8, § 2º). Nesse caso, tanto a internação como a alta do paciente devem ser comunicadas no prazo de setenta e duas horas ao Ministério Público estadual, (art. 8º, § 1º). Restando configurado que a internação involuntária não atende aos requisitos legais e cuidando-se de restrição ao direito de liberdade, cabível a impetração de habeas corpus, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça. (STJ, HC 35301/ RJ, Rel. Nancy Andrighi, j. 03.08.2004).

Já a internação compulsória (art. 6º, § único, inciso III), é decorrente de ordem judicial, necessariamente, amparada em laudo médico que descreva de forma detalhada a situação de perigo concreto. Será utilizada quando não for possível, ou insuficiente, o tratamento não hospitalar e houver probabilidade de risco à integridade física, à saúde ou à vida da pessoa com transtorno mental ou a terceiros. Tal tipo de internação consiste em um “procedimento judicial cautelar ou de mérito”, ao qual são aplicáveis, segundo entendimento corrente, as mesmas normas relativas à internação psiquiátrica involuntária.[2]

Note-se que STJ já decidiu – sem nenhum questionamento sobre a constitucionalidade da medida – pela possibilidade do internamento obrigatório, entendendo que a medida, excepcional, objetiva resguarda a própria saúde e mesmo vida da pessoa com transtorno mental e mesmo de terceiros, não tendo por escopo a privação da liberdade em si, mas sim, fazer valer o direito fundamental à vida e à saúde (STJ, HC 130.155/SP, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 04.05.2010).

Frise-se, portanto, a necessária observância de um devido processo formal e material para legitimar as internações obrigatórias (sejam compulsórias, sejam involuntárias, nos termos da LRP), o que também deverá balizar – em se admitindo tal hipótese!!! – eventuais internações cogentes em casos de dependência química ou alcoolismo, que, – IMPORTA FRISAR, NÃO FORAM EXPRESSAMENTE PREVISTAS PELA LRP!

O que deve ser destacado, é que eventual aplicação da LRP para dependentes de drogas e alcoolistas, apenas poderia – em sendo esse o caso – ser admitida em restando comprovado, mediante laudo médico-psiquiátrico circunstanciado, que da dependência química ou alcoólica tenham resultado graves transtornos mentais, equivalentes aos abarcados pela LRP, mas não apenas com base na demonstração da dependência em si.

Com efeito, NÃO HÁ COMO AGASALHAR qualquer medida que tenha por escopo uma “conveniente limpeza das ruas e dos lares”, isolando pura e simplesmente as pessoas com dependência química e alcoólica, usando para tanto o instrumento da internação psiquiátrica obrigatória.

Pedindo licença para seguir em boa parte reprisando a coluna anterior, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) – órgão de representação da OMS no continente americano -, por meio de nota técnica divulgada em maio de 2013, teceu críticas à priorização conferida à internação compulsória para o tratamento de usuários de drogas no Brasil. Por meio da referida nota, a OPAS considera inadequada e ineficaz o uso da internação involuntária ou compulsória como principal meio para o tratamento da dependência de drogas. Reconheceu, ainda, que a priorização do internamento obrigatório, como medida extrema que é, encontra-se na “contramão do conhecimento científico sobre o tema” e pode “exacerbar as condições de vulnerabilidade e exclusão social dos usuários de drogas”.[3]

Assim, em caráter de síntese, a internação obrigatória (aqui- cumpre repisar – compreendida como gênero!), além de assumir caráter excepcional, demanda adequada justificação médico-psiquiátrica, pressupondo a existência de transtorno mental grave (que poderá, ou não, decorrer do uso abusivo de drogas, álcool e congêneres, mas deverá sempre consistir em transtorno mental grave!) cujo tratamento seja inviável do ponto de vista de sua eficácia sem a medida coercitiva, o que, por sua vez, corresponde ao requisito do menor sacrifício, ou seja, da exigibilidade, que integra o teste de proporcionalidade. Além disso, a medida pressupõe que esteja em causa o grave comprometimento da própria integridade física e mental da pessoa que se busca internar e a salvaguarda de direitos fundamentais de terceiros.

Tais premissas e retornado ao recente caso das medidas tomadas (depois corretamente suspensas) em relação aos ocupantes da assim chamada “Cracolandia”, não há como transigir com o fato de que o instrumento da internação obrigatória em hipótese alguma poderá ser utilizado de modo generalizado, em especial para internações em massa e/ou em caráter preventivo de dependentes químicos ou outras situações em que não esteja configurada, em concreto, grave distúrbio mental, a reclamar, para a própria proteção do paciente e de terceiros, ademais de inexistentes outras alternativas, sua temporária e controlada internação, assegurando-se sempre um tratamento humano e condigno em todo e qualquer caso e em sintonia com as exigências da ética e da medicina.

 

É evidente, por outro lado, a configuração de um dilema de difícil solução jurídica e prática, mas cuja dificuldade e complexidade não pode – em hipótese alguma! – ser objeto de solução simplista, autoritária, invasiva (para não dizer violenta) e generalizada, sequer reduzida às – por si só já graves- internações, mas também acompanhada da evicção forçada de grupos de pessoas.

Em primeiro lugar não se pode presumir pura e simplesmente que centenas ou mesmo mais pessoas sejam viciadas em drogas pesadas (em especial o crack) pelo fato de conviverem e circularem em local onde se verifica alta concentração de pessoas dependentes. Da mesma forma não se pode partir da presunção de que tais pessoas (mesmo se houvesse indicação individualizada!) estejam em situação de risco efetivo em termos de sua saúde e vida ou que estejam concretamente colocando em risco real a vida e integridade de terceiros, ainda mais de modo generalizado. Acrescenta-se a isso que não se pode de modo generalizado ter elementos indicativos de que os dependentes químicos estejam com sua saúde mental comprometida (tenham transtorno mental), indicativos concretos e individualizados sem os quais uma internação compulsório, mas também uma apresentação coercitiva para avaliação médica são categoricamente vedados pela ordem jurídica nacional e pelos critérios do direito internacional dos direitos humanos.

Por outro lado – e nisso reside o dilema – o Estado está vinculado a deveres de proteção da dignidade, saúde e vida tanto de dependentes químicos, quanto de terceiros. Assim, sem que se questione as evidências de que em geral os moradores da “cracolândia” estejam vivendo em estado de manifesta indignidade e risco, bem como levando em conta que as pessoas que ali se encontram muitas vezes lá estão em virtude de sua condição (dependência) físico-psíquica, mas também econômica e social, o fato de o poder público ter a obrigação de sanar o problema não serve de autorização para fazê-lo de qualquer modo, ainda mais mediante atropelo de direitos humanos e fundamentais e correspondentes garantias.

A situação se agrava diante da complexidade do problema. O recurso a uma solução simplista e generalizada (tal como protagonizada pelo poder público paulista), ademais de autoritária e invasiva, além de juridicamente inadmissível, ainda mais quando o Estado (aqui em sentido geral) tanto se manteve distante e mesmo ausente, de certo modo permitindo a potencialização do problema. As medidas a serem tomadas devem ser cuidadosamente avaliadas, graduais e baseadas prevalentemente numa presença amiga do poder público, agindo de modo pedagógico e persuasivo, recorrendo a expedientes mais rigorosos (como a internação e/ou apresentação coercitiva para avaliação) em casos individualizados e escorados em evidências concretas, mediante o devido controle jurisdicional e respeitado o alcance da legislação.

Por mais que isso se revele difícil de ser executado, ademais de demandar um tempo maior, o caminho há de ser esse, e não um processo que mais se assemelha a uma medida de higienização coletiva. O que se faz necessário é incrementar os debates, aperfeiçoar legislação e instituições, mas acima de tudo se faz cogente o devido respeito e consideração que a todas as pessoas merecem em virtude de sua dignidade.

[1] Para aprofundamento do tema em suas diversas manifestações v. em especial a recente e imprescindível obra de MONTEIRO, Fábio de Holanda. A Internação Psiquiátrica Compulsória na Perspectiva dos Direitos Humanos e Fundamentais, Curitiba: Editora Prismas, 2017, que corresponde ao texto submetido como dissertação de mestrado, que tive o privilégio de orientar, no PPGD da PUCRS.

[2]PINHEIRO, Gustavo Henrique de Aguiar. Comentários à lei da reforma psiquiátrica:uma leitura constitucional da lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Fortaleza: Tear da Memória, 2010. p. 86.

[3] Disponível em: ˂https://www.douradosagora.com.br/brasil-mundo/ciencia-saude/priorizar-internacao-compulsoria-para-tratamento-de-drogas-e-inadequado˃. Acesso em: 28 jan. de 2015