06 jun “Manifesto político para um Judiciário contra o racismo estrutural”, por Karla Aveline
Como magistrada, proponho que meus colegas de Judiciário transformem indignação em ação. Nós, brancos e brancas, somos os responsáveis pelas violências que culminaram com as mortes de João Pedro – no Brasil – e de George Floyd – nos EUA – e esses homicídios guardam intensa relação com todo o passado escravocrata dos dois países.
Escravização de corpos negros produzida por nós, brancos e brancas.
Violência estatal produzida por nós, brancos e brancas, que ocupamos a quase totalidade dos cargos de poder nas instituições públicas.
Racismo estrutural produzido por nós que estamos à frente de todas instituições de saber e de poder, aqui ou lá.
Racismo sistêmico, cotidiano, que mantêm segregados negros/as e nos concede, por isso mesmo, os privilégios materiais e imateriais decorrentes do simples fato de termos menos melanina no corpo.
Não tenhamos memória seletiva! EUA e Brasil abrigam as maiores populações negras fora do continente africano e essa migração forçada foi causada por nós.
Nossas terras foram e são testemunhas de todas as atrocidades cometidas por nós e, por conta de um projeto colonial que perdura até os dias de hoje, racializamos, classificamos, hierarquizamos, oprimimos, violentamos e exploramos os povos originários e os corpos negros – de homens, mulheres, crianças e idosos.
Brancos e brancas têm sido, por ação ou omissão, em todo o globo terrestre, o que já se viu de mais violento, sanguinário, perverso, abusivo e opressivo. Somos o mais vivo exemplo da total falta de humanização, empatia, respeito; pecamos pela ganância, pela sede de poder, por perversão, pela falta de ética e de valores dignos.
Desde a invenção das Américas, sempre estivemos à frente de toda e qualquer estrutura de poder – sejam escolas, igrejas, universidades, justiças, fábricas, hospitais, presídios, manicômios, abrigos, polícias e somos os responsáveis diretos pela construção desse sistema mundo indigno. É das mãos brancas que escorre esse fel!
Nós, brancos e brancas, permanecemos usufruindo desses privilégios que nossos/as descendentes brancos/as nos deixaram. Somos herdeiros desse mundo branco e violento que oprime, subalterniza, hierarquiza, mata e prende corpos negros.
Ainda que negros/as levantem as mãos para o alto, que se comportem como a sociedade branca requer e obriga, ainda que sejam “civilizados” como alguns brancos e brancas ainda argumentam, ainda que sigam regras e ordens injustas e ilegais, ainda assim, seguem sendo assassinados, seguem tendo seus direitos mais básico violados.
EUA e Brasil lideram o número de encarceramentos e, de forma causal, pessoas negras são as que superlotam essas prisões indignas, pessoas negras são as que mais morrem de causa violenta. Aqui e lá.
Há uma linha ainda não rompida, direta, entre escravização de corpos negros e os grandes encarceramentos, entre desumanização de corpos negros e o assassinato da juventude negra no Brasil.
A academia já produziu – tanto lá como aqui – muito material de qualidade para discutir a questão da violência estatal direcionada ao povo negro e empobrecido das periferias, da seletividade penal, do super encarceramento, da segregação racial, do racismo estrutural e institucional, e da ausência de negros e negras ocupando cargos de poder no sistema de justiça brasileiro e americano.
Proponho, do alto do meu privilégio de classe e raça, enquanto magistrada branca, que todos os homens e mulheres que ocupam cargos de poder no Poder Judiciário, na Defensoria Pública, no Ministério Público, nas demais esferas do sistema de Justiça, nas associações de classe, que transformemos nossa indignação em ação.
Não nos calemos mais.
Não sejamos omissos.
Que nossa indignação seja capaz de levar para as instituições a discussão necessária a respeito das causas estruturantes que são responsáveis pelos grandes encarceramentos, pela violência estatal, pelo genocídio da juventude negra.
Que nos responsabilizemos, estudando e compreendendo o contexto histórico, social, cultural, antropológico, político, das instituições a que pertencemos para que passemos a discutir ações propositivas.
Que usemos o poder que está em nossas mãos para promover as transformações sociais que construirão um mundo digno e respeitoso para todos.
Karla Aveline é juíza de Direito. Artigo publicado no site CartaCapital em 5 de junho de 2020