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Liberdade de expressão e biografias não autorizadas — notas sobre a ADI 4.815, por Ingo Sarlet

Liberdade de expressão e biografias não autorizadas — notas sobre a ADI 4.815, por Ingo Sarlet

Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Sarlet, publicado no dia 19 de junho na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.

No âmbito da Constituição Federal de 1988, as liberdades de expressão (ou liberdades comunicativas) foram, não apenas objeto de mais detalhada positivação, mas também passaram a corresponder, pelo menos de acordo com texto constitucional, ao patamar de reconhecimento e proteção compatível com um autêntico Estado Democrático de Direito.

Com efeito, apenas para ilustrar tal assertiva mediante a indicação dos principais dispositivos constitucionais sobre o tema, já no artigo 5º, inciso IV, foi solenemente enunciado que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”; Tal dispositivo, que, é possível arriscar, faz às vezes, no caso brasileiro, de uma espécie de cláusula geral, foi complementado e guarda relação direta com uma série de outros dispositivos da constituição, os quais, no seu conjunto, formam o arcabouço jurídico-constitucional que reconhece e protege a liberdade de expressão nas suas diversas manifestações. Assim, apenas para citar os mais relevantes, no artigo 5º, inciso V, “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”; No inciso VI do mesmo artigo, consta que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Além disso, de acordo com o disposto no artigo 5º, IX, “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, ao que se soma, dentre os dispositivos diretamente relacionados com a liberdade de expressão, o artigo 206, inciso II, que dispõe sobre a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, ao passo que o artigo 220, estabelece que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

Tais exemplos não esgotam o elenco de disposições constitucionais relacionadas com a liberdade de expressão, mas já demonstram o lugar de destaque e o alto nível de proteção que tais liberdades fundamentais experimentam na atual CF. Esse complexo de liberdades comunicativas, embora apresente muitos aspectos em comum, é formado por direitos fundamentais autônomos (liberdade religiosa, liberdade científica, liberdade de reunião e manifestação, liberdade artística, etc), que, a despeito de suas sintonias, exige tratamento por vezes diferenciado.

Já por isso, a liberdade de expressão, tal como o sugeriu Jónatas Machado, representa uma espécie de “direito mãe”[1], refutando-se uma abordagem compartimentada, tal como alguns costumam estabelecer entre as liberdades de comunicação e de expressão,  muito embora existam diferenças (seja no que diz respeito ao âmbito de proteção, seja no concernente aos limites e restrições) entre as diversas manifestações da liberdade de expressão consideradas especificamente.[2]

Aqui importa sublinhar que, se a liberdade de expressão encontra um dos seus principais fundamentos (e objetivos) na dignidade da pessoa humana, naquilo em que diz respeito à autonomia e livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo, ela também guarda relação, numa dimensão social e política, com as condições e a garantia da democracia e do pluralismo político, assegurando uma espécie de livre mercado das ideias, assumindo, nesse sentido, a qualidade de um direito político e revelando ter também uma dimensão nitidamente transindividual, já que a liberdade de expressão e os seus respectivos limites operam essencialmente na esfera das relações de comunicação e da vida social.

A liberdade de expressão consiste, mais precisamente, na liberdade de exprimir opiniões, ou seja, juízos de valor a respeito de fatos, ideias, portanto, juízos de valor sobre opiniões de terceiros, devendo o seu conceito, da perspectiva constitucional, ser compreendido em sentido amplo, de forma inclusiva[3]. Importa acrescentar, que além da proteção do conteúdo, ou seja, do objeto da expressão, também estão protegidos os meios de expressão, cuidando-se, em qualquer caso, de uma noção aberta, portanto inclusiva de novas modalidades, como é o caso da comunicação eletrônica[4], o que tanta complexidade embutiu em termos tecnológicos, mas também implica tantos desafios jurídicos, inclusive a querela em torno do assim chamado direito ao esquecimento na internet, objeto de nossas duas últimas colunas.

Mas a questão que hoje nos anima é a decisão do Supremo Tribunal Federal (10.06.15) no bojo da ADI 4.815, tendo como relatora a ministra Cármen Lúcia. No citado julgamento foi apreciada, depois de longa tramitação e amplo debate na esfera pública, inclusive em sede de audiência pública convocada pelo próprio STF, a interpretação constitucionalmente adequada da legislação infraconstitucional, notadamente dos artigos 20 e 21 do Código Civil, para efeito de vedar seja a confecção e publicação de uma biografia condicionada à prévia autorização do biografado ou mesmo de seus responsáveis. Como era de se esperar, em face dos precedentes da Corte, tanto o rechaço da autorização prévia como a interpretação conforme, tal como proposto pela ilustre relatora para a hipótese, foram chancelados pela unanimidade dos julgadores que integraram o colegiado por ocasião da votação, muito embora se verifiquem relevantes diferenças quanto ao conteúdo e fundamentos de cada voto.

Em causa, mais uma vez, esteve o problema do estabelecimento de limites à liberdade de expressão, em virtude de sua colisão com outros direitos fundamentais, no caso, os direitos de personalidade do biografado, mas também a posição da liberdade de expressão na arquitetura do sistema constitucional de direitos e garantias, já que ambas as dimensões guardam relação entre si.

Um primeiro aspecto que chama a atenção, independentemente da correção do resultado do julgamento, que também aplaudimos, em particular quanto à inexigibilidade de autorização prévia, é que foi retomada a questão de a liberdade de expressão ocupar, ou não, uma posição preferencial no nosso ordenamento, e, se este for o caso, o que implica tal posição preferencial.

Nesse contexto, dada a sua relevância para a democracia e o pluralismo político, a liberdade de expressão — pelo menos de acordo com a posição externada pelo ministro Luís Roberto Barroso, que já havia assim se posicionado na esfera doutrinária[5] — assume uma espécie de posição preferencial (preferred position), quando da resolução de conflitos com outros princípios e direitos fundamentais, o que foi objeto de particular afirmação também em parte dos votos — notadamente do ministro relator, Carlos Ayres Britto — quando do julgamento da ADPF 130, que considerou não recepcionada pela CF a antiga Lei de Imprensa. Tal concepção, aliás, alinha-se com o entendimento vitorioso, de há muito tempo, na Inglaterra e nos EUA.

Por mais que se seja simpático também a tal linha de entendimento, a atribuição de uma função preferencial à liberdade de expressão não parece, salvo melhor juízo, compatível com as peculiaridades do direito constitucional positivo brasileiro, que, neste particular, diverge em muito do norte-americano e mesmo inglês. Aliás, o nosso sistema, nesse domínio, está muito mais afinado com o da Alemanha, onde a liberdade de expressão não assume uma prévia posição preferencial na arquitetura dos direitos fundamentais.

Mesmo uma interpretação necessariamente amiga da liberdade de expressão (indispensável num ambiente democrático) não poderia descurar o fato de que a CF expressamente assegura a inviolabilidade dos direitos à privacidade, intimidade, honra e imagem (artigo 5º, inciso X), além de assegurar expressamente um direito fundamental à indenização em caso de sua violação e consagrar já no texto constitucional o direito de resposta proporcional ao agravo. Importa sublinhar, ainda no contexto, que a vedação de toda e qualquer censura por si só não tem o condão de atribuir à liberdade de expressão a referida posição preferencial.

Por outro lado, é de destacar que eventual rechaço da referida posição preferencial não tem por consequência a alteração do resultado do julgamento e não levaria ao reconhecimento da necessidade de autorização prévia para uma biografia, mas apenas não outorga à liberdade de expressão uma posição inicial de vantagem no caso de conflitos com outros direitos fundamentais, exigindo, pelo contrário, uma rigorosa avaliação dos direitos e bens jurídicos contrapostos e dos níveis de afetação dos mesmos, ademais de um cuidadoso teste de proporcionalidade, observando-se sempre a proibição de toda e qualquer censura prévia.

De qualquer modo, mesmo que admitida a doutrina da posição preferencial, não se trata de atribuir à liberdade de expressão (em qualquer uma de suas manifestações particulares) a condição de direito absolutamente imune a qualquer limite e restrição, nem de estabelecer uma espécie de hierarquia prévia entre as normas constitucionais, o que, aliás, também não parece decorrer da manifestação do ministro Luís Roberto Barroso. Assim, mesmo quando se fala de uma posição preferencial, o que se verifica é o reconhecimento — em favor da liberdade de expressão — de uma posição inicial e argumentativa de vantagem no caso de conflitos com outros bens fundamentais, de tal sorte que também aqui não há, ao fim e ao cabo, como deixar de considerar as exigências da proporcionalidade e de outros critérios aplicáveis a tais situações, o que, de resto, se percebe tem sido praticado pelo STF em algumas situações.

Tal polêmica, calha sublinhar, diz respeito ao problema do reconhecimento e legitimação jurídico-constitucional de limitações não expressamente autorizadas pela constituição, em virtude de conflitos entre a liberdade de expressão e a proteção de outros direitos e bens jurídicos fundamentais. Que também a liberdade de expressão, não é absoluta e encontra limites no exercício de outros direitos fundamentais e na salvaguarda, mesmo na dimensão objetiva (por via dos deveres de proteção estatal), de outros bens jurídico-constitucionais, praticamente não é contestado no plano do direito constitucional contemporâneo e no âmbito do direito internacional dos direitos humanos. No caso do STF e mesmo no julgamento ora comentado, tal possibilidade igualmente restou em aberto, em sintonia, aliás, com importantes precedentes da corte, até mesmo pelo fato de que a inexigibilidade de prévia autorização por parte dos biógrafos e editoras, não apenas não afasta eventual direito à indenização ou mesmo o exercício do direito de resposta, como bem ressalvado no voto da ministra Cármen Lúcia, como igualmente não afasta, em circunstâncias excepcionais, medidas mais rigorosas, a exemplo do que se deu — com os aplausos em geral dos órgãos de imprensa — no conhecido caso “Ellwanger”, quando em causa a publicação de obras de teor antissemita.

Mas isso nos remete a outros desenvolvimentos. Por ora, ficam aqui algumas reflexões iniciais e em geral a convicção do substancial acerto (sem prejuízo de críticas pontuais possíveis) da decisão do STF e da interpretação levada a efeito no caso das biografias não autorizadas.

[1] Cf. Jónatas E.M. Machado, Liberdade de Expressão: Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 370 e ss.

[2] Cf. WEINGARTNER NETO, Jayme. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007,  pp. 91-6, que postula, também partindo da permeabilidade categorial, a liberdade de consciência como matriz e ponte entre a liberdade religiosa como um todo e as liberdades comunicativas.

[3] Cf., por todos, MICHAEL, Lothar; MORLOK, Martin. Grundrechte, Op. Cit., p. 128.

[4] Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada, Op. CIt., p. 572, adotando uma concepção ampliada do âmbito de proteção da liberdade de expressão.

[5] Cf., por todos, na doutrina brasileira, Luis Roberto Barroso. “Liberdade de Expressão versus direitos da personalidade. Colisão de direitos fundamentais e critérios de ponderação”, in: Temas de Direito Constitucional, Tomo III, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 105-106.

 

Ingo Sarlet
Juiz de Direito e professor Universitário