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Grupos Reflexivos de Gênero: por uma cultura de paz e o fim da violência contra mulher

Grupos Reflexivos de Gênero: por uma cultura de paz e o fim da violência contra mulher

Em agosto, a Lei Maria da Penha completou 14 anos de existência. Desde a instituição, a legislação representou um avanço na proteção contra a violência doméstica e familiar. No entanto, a cada dia milhares de mulheres seguem sendo vítimas de violência física, psicológica e patrimonial. 

Se já foram estabelecidos mecanismos de proteção e punição, mesmo que em alguns locais ainda não funcione plenamente, como podemos avançar para transformar essa realidade? 

Para além da punição, a necessidade de educar para uma cultura de não violência surge como uma forma de colaborar com este cenário. É neste contexto que os Grupos Reflexivos de Gênero, destinado aos homens agressores, se apresentam como um dos caminhos deste cenário tão complexo.

Grupos Reflexivos de Gênero

Os Grupos Reflexivos de Gênero são espaços criados no Poder Judiciário em que homens autores de violência contra a mulher podem ser direcionados no momento da decisão judicial. No Rio Grande do Sul, as comarcas de Porto Alegre e Caxias do Sul foram as pioneiras no trabalho e a metodologia já é realidade em 42 comarcas. 

Durante os encontros, com uma equipe técnica e olhar multidisciplinar são trabalhadas, além da parte jurídica-legal, também questões de gênero, violência, relacionamentos, sentimentos, entre outras que forem pertinentes dentro da realidade de cada grupo. O tempo de duração, formato, quantidade de pessoas depende da organização de cada local.

Desde abril deste ano, os grupos reflexivos passaram a integrar o rol das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, mas até então a criação de espaços de educação e reabilitação de agressores constava de forma genérica na legislação.


As experiências nas comarcas

Na Capital, no 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, os grupos são realizados desde 2011, idealizados pela juíza de Direito Madgéli Frantz Machado e pela psicóloga judicial Ivete Vargas. 

O reconhecimento desse trabalho chegou em 2018 para a juíza Madgéli Machado, na forma do Prêmio Mulheres que Inspiram, da Revista Donna/ZH. “É algo muito caro, não pra mim Madgéli, porque acho que foi um reconhecimento para uma equipe que se dedicou e se dedica a estudar e dar conta da execução desse trabalho, e reconhecimento também da magistratura gaúcha e brasileira”. 

Na Comarca de Caxias do Sul, a inquietação do juiz de Direito Emerson Kaminski, aliada à disposição da psicóloga Maria Elaine Tubino, levou à criação do Projeto Hora – Homens: Orientação, Reflexão e Atendimento. Em 2009, ao assumir os processos de violência doméstica, que na época eram atribuição da 2ª Vara Criminal, o magistrado observou que a maioria dos agressores ou acusados de violência ingressavam na sala de audiência sem saber exatamente o que estava acontecendo.

O projeto foi criado inicialmente com o propósito de traçar o perfil do homem agressor, analisando aspectos socioeconômicos, culturais e antecedentes de envolvimento com a criminalidade. Mas, desde 2014, com a instalação do Juizado de Violência contra  Mulher em Caxias, o trabalho dos grupos do Projeto Hora é realizado de forma regular, e é parte importante da rede de proteção criada no município, que permite o deferimento das medidas protetivas em cerca de quatro horas.

Conforme o magistrado, o trabalho como objetivo proporcionar que todos os participantes, com a mediação de um psicólogo e provocados por um determinado objetivo, desenvolvam suas falas: “Mas aqui não há nenhuma preocupação de acolher individualmente cada um, tratar como se fosse um processo de acompanhamento psicológico”, ressalta Kaminski.

O magistrado complementa que a proposta é que o participante consiga identificar sentimentos: “Compreender quando ele tá em uma situação de stress, que emoções ele tá vivenciando, que sensações, e como conversar com elas para impedir que tenha um comportamento explosivo, agressivo e violento”.

A educação emocional, com identificação de sentimentos também é um dos eixos do trabalho desenvolvido na Comarca de Rio Grande, onde os grupos reflexivos de gênero existem desde novembro de 2018. 

Coordenados por Juliana Segat, que além de facilitadora é mestranda com foco de pesquisa em questões de gênero, os quase dois anos de trabalho já trazem relatos positivos, especialmente nas reflexões sobre a origem da violência.


Resultados

O trabalho produzido pelos grupos reflexivos apresentam resultados significativos. Na Comarca de Caxias do Sul, por exemplo, desde o início do projeto já foram atendidos mil homens nos grupos reflexivos e apenas 27 voltaram a se envolver em outros relacionamentos conflitivos, o que representa menos de 3%, conforme relata Kaminski.

O índice é promisso, ainda mais quando não se trata apenas um resultado pontual. Segundo Madgéli Machado, nas experiências que têm ocorrido em diversos cantos do país, o índice de reincidência de um novo delito de violência doméstica, considerando os homens que participam dos grupos, é de cerca de 4%.

Também importante ressaltar que os resultados não são apenas quantitativos. “Eles chegam ao final do grupo e dizem pra gente o quanto foi importante ter dado aquela possibilidade de participar, que realmente transformou a vida dele, transformou a vida da família, transformou até a vida no espaço de trabalho, porque realmente abre horizontes”, relata a titular do 1º Juizado de Violência Doméstica de Porto Alegre.

O retorno positivo ao fim do trabalho também se repete na Comarca de Rio Grande. De acordo com Juliana Segat, muitos homens chegam aos grupos sem compreenderem o motivo do encaminhamento: “Mas a mudança no comportamento deles, o envolvimento deles com as questões vai aumentando muito, a ponto de chegar no último encontro e todo mundo se abraçar, pedir que tenham mais encontros”.

Na Comarca de Porto Alegre, um fato positivo também foi marcante para a psicóloga Ivete Vargas: “Lembro de um homem que me trouxe um documento da polícia com a nota de entrega de duas armas e ele disse: ‘pensei muito depois que vim para o grupo, eu ficar com estas armas em casa é só pra me incomodar’”, recorda. “Não acho que o grupo tenha esse alcance de transformar uma pessoa em algo que ela não é, mas ele tem a possibilidade de fazer pensar quem eu sou e o que eu quero para mim”, ressalta a psicóloga.


Políticas Públicas

Os resultados positivos dessas ações do Judiciário, e a necessidade de ampliar e garantir a execução desta política pública, que agora está na lei, também ganhou apoio na Assembleia Legislativa. 

O deputado estadual Edegar Pretto é um aliado no combate à violência doméstica. Filho da dona Otília, ele conta que cresceu vendo a mãe agricultora engajada na luta por direitos das mulher do campo. O ambiente familiar com divisão das tarefas, também serviu como estímulo para refletir sobre o papel dos homens nas questões de gênero. 

Atualmente coordenador do Comitê Gaúcho Impulsor He for She, movimento das Nações Unidas (ONU) pela igualdade de gênero, Pretto tem levado discussões como paternidade ativa e tipos de masculinidade para dentro do parlamento, temas importantes, mas não comuns no ambiente político, predominantemente masculino.

Em dezembro do passado, Edegar Pretto, com a colaboração de entidades que atuam no tema, apresentou o PL 539/2019, que institui a Política Estadual de Reeducação de Autores de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e torna os grupos reflexivos de gênero uma política pública no RS. A proposição está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e aguarda parecer do líder do governo deputado Frederico Antunes.

Na próxima reportagem vamos falar sobre alguns caminhos e como as mudanças culturais podem colaborar para o enfrentamento à violência contra as mulheres.


Reportagem: Joice Proença
Edição dos vídeos: Vinicios Sparremberger