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Evolução e Criação, por José Nedel

Evolução e Criação, por José Nedel

        Artigo de autoria do juiz de Direito aposentado, José Nedel, para o espaço Voz do Associado do Informativo Social & Cultural da AJURIS. 

1 – Fatos. Em data recente, a deputada Liziane Bayer (PSB) protocolou na Assembleia Legislativa do RS um projeto de lei visando a impor às escolas públicas e privadas do Estado a obrigação de ensinar o criacionismo nas aulas de ciências. De imediato, surgiram manifestações em sentido contrário, por razões boas e as de costume: que se trata de proposta absurda, pseudocientífica, puramente religiosa, que afronta a escola (Fernando Becker, professor da UFRGS). O deputado Tarcísio Zimmermann (PT) observou que a escola deve ensinar ciência, não dogmas. Bruno Eizerik, presidente do SINEPE/RS, disse que era exagero criar um projeto de lei sobre o assunto, mas que não discordava da exposição desse conteúdo em aula. Segundo o Ministério da Educação, o criacionismo não é tema para aula de ciências (ZH, 30/4/15). O professor Luís Augusto Fischer criticou com veemência a proposta de Liziane Bayer, afirmando que ela “parece desejar nos arrastar para um poço de irracionalidade” com tal “projeto regressivo, anticientífico, obscurantista” (ZH, 5/5/15, 2º Cad., p. 6 ). Pelo visto, em sua adjetivação pesada só faltou o termo “medieval”, um dos qualificativos preferidos dos críticos para assuntos, temas ou situações similares.

Independente do mérito e do destino do mencionado projeto de lei no Parlamento, onde provavelmente naufragará, vale a pena refletir sobre a questão em si, que está longe de ser puramente religiosa, a inquinar de irracionalidade a quem a examina com postura objetiva e racional. O próprio Papa Francisco, em 27 de outubro de 2014, tocou no assunto, declarando perante a Pontifícia Academia de Ciências que o Big Bang e a teoria da evolução não se opõem ao cristianismo – não contradizem a intervenção criadora, mas a exigem. Isso, aliás, não é novidade para filósofos nem para teólogos tradicionais, como ele, na qualidade de experimentado jesuíta. Sobre os fundamentos desse mesmo entendimento já escrevi em outra oportunidade (Crítica da razão popular. Aparecida, SP: Santuário, 1990, p. 51-53). Volto agora a manifestar-me, tendo em vista o novo debate sobre essa velha questão.

2 – Reflexões. Sabem os cientistas que a prova definitiva da evolução do homem a partir de organismos inferiores, supostamente os macacos antropoides, ainda não foi encontrada. Falta o elo de ligação entre eles e o homem, a hipotética forma intermediária de animal, o missing link – tão procurado e ainda não visto.

Os filósofos em sua maioria expressiva, na esteira do pensamento clássico, têm por certo que o homem, composto de matéria (corpo) e espírito (alma), difere de modo radical dos organismos inferiores. Disso brota a certeza de que ao menos a alma humana, não evoluiu da matéria ou daqueles organismos, pelo simples fato de a eles ser superior. Assim como o efeito não pode ser superior à causa, não pode a alma espiritual provir da matéria, coisa extensa, pesada, inerte, não consciente. Dito tout court, matéria e espírito são realidades descontínuas.

A impossibilidade metafísica de o homem todo, corpo e alma espiritual, ter evoluído da matéria, contudo, não descarta a possibilidade da evolução do corpo humano, a partir de organismos inferiores. Isso é possível, se muito provável, de modo algum certo ou comprovado. É uma hipótese já de barbas brancas, em eterna expectativa de confirmação. Enquanto esta não surge de forma cabal e irretorquível, mediante a investigação científica, não alcança o status de ciência, que é cognitio certa – saber certo.

De qualquer forma, se essa hipótese vier algum dia a ser confirmada, não colocará em xeque a metafísica nem a religião. Ficaria inequívoco apenas que o homem provém de antropoides quanto ao físico, não quanto ao espírito. A eventual evolução do corpo humano não afastaria a necessidade de uma dupla criação: a da matéria primitiva, originária, com sua força evolutiva, que não poderia existir por acaso nem criar-se a si própria; e a do espírito do homem, após a hipotética formação de um corpo idôneo, por via evolucionária, a partir da primeva natureza. O organismo inferior no qual, após as devidas adaptações, o espírito diretamente criado por Deus tivesse sido infundido, não deixaria de ser o “barro” de que fala a Bíblia (Gn 2, 7). Ainda seria “barro”, embora organizado, desenvolvido, portador de um sopro de vida, que atingiu aquele patamar em virtude do elã evolutivo outorgado pelo Criador.

A teoria da evolução, entendida nesses termos, não só não contraria a da criação, como pretendem os evolucionistas radicais, mas ainda a pressupõe ou exige, ao início de tudo. Ambos os conceitos – criação e evolução – se harmonizam e se prestam a compor uma concepção ampla, arejada, compreensiva, à maneira da visão do paleontólogo jesuíta Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), que em outros tempos foi vítima de incompreensões, hoje vencidas e afastadas. A evolução assim compreendida expressa a própria criação no tempo.

3 – Conclusão. Em suma, o que há de certo é a criação da matéria primeva, dotada de força evolucionária, sem o que não estaria explicada sua origem; e do espírito do homem, que não pode evoluir de um ser inferior. Da matéria original até os organismos superiores pré-hominianos há longo intervalo temporal, ainda não cabalmente desvendado pela ciência. Bem poderia ter sido recoberto por evolução, a partir de um fenômeno extraordinário como um Big Bang, que a ciência propõe como certo, mesmo que exiba mais o aspecto de obra-prima de ficção do que de fato ou verdade incontroversa.

Enfim, o que sobra? Para os transformistas, a certeza científica de uma evolução ou transformação física e biológica no planeta ou no universo; e para os metafísicos, a convicção de que o espírito não surge dessa evolução geral, só podendo originar-se de criação ex nihilo – do nada, sem uso de matéria prejacente. O resto são hipóteses.

O esclarecimento objetivo dessas questões nas escolas está longe de representar irracionalismo, atitude pseudocientífica ou dogmática. Pelo visto, o tema é limítrofe entre ciência, filosofia, teologia e religião. Com todas essas dimensões, merece ser abordado com prudência e expertise. Irracional seria vedar tratamento objetivo, científico e filosófico, sem proselitismo, a questões como esta, por comportarem também viés teológico ou religioso.

Merece, pois, encômio a equilibrada postura adotada por Bruno Eizerik, presidente do SINEPE/RS, ao defender a apresentação de todas as versões aceitas dos fatos aos alunos. “Não podemos ter uma escola única, com uma única verdade. Se nós concordamos ou não com o criacionismo, é outra questão”. Podemos concordar com Eizerik: se não há aula de religião em que o assunto seja ventilado, e o professor de ciências dele não trata, a escola fica devendo uma teoria, com a qual se pode concordar ou não (ZH, 30/4/15). É salutar sempre dar-se conta da advertência bíblica: “A verdade vos libertará” (Jo 8, 32).

 

José Nedel
Juiz de Direito e professor aposentado