14 abr “Coronavírus e a cura da cegueira social”, por Karen Luise Vilanova Batista de Souza
Estamos em um momento diferenciado em nossas vidas por conta da proliferação do novo coronavírus, que surpreendeu a todos e, infelizmente, transformou-se em uma pandemia, sendo o isolamento social a melhor forma de evitar contaminação, conforme orienta a Organização Mundial da Saúde. O momento é de salvaguardar as vidas e a integridade física de todas as pessoas.
Em que pese a adversidade da situação, vê-se quão oportuna pode ser essa parada para refletirmos sobre como nos relacionamos com as pessoas e com o mundo, como chegamos até aqui e o que queremos daqui para diante.
Neste sentido, embora a ordem do dia seja encontrar alternativas para superar a calamidade que nos abate – e uma minoria privilegiada preocupa-se em enfrentar os desafios psíquicos do isolamento social nas atividades domésticas cotidianas, o que é de todo relevante – a maioria da nossa população não sabe se irá sobreviver a ela, razão por que é preciso pensar sobre aspectos importantes que hão ser considerados neste contexto.
Nessas situações de caos, em que pese todos sejamos atingidos, será sobre os que têm menos que os impactos do descontrole irão pesar. São pessoas financeiramente desfavorecidas que residem em espaços insalubres, os quais estão longe de se enquadrarem no conceito arquitetônico de residências multifamiliares. Ora, uma residência multifamiliar é aquela edificação desenhada em forma de prédio ou conjunto habitacional para abrigar um número determinado de famílias.
Contudo, a realidade que se apresenta em nosso país é a de muitas famílias vivendo em cada cômodo do mesmo imóvel, ou todas naquele que é o único. Para elas o sair de casa é uma necessidade, já que o sistema de rodízio é que viabiliza estarem sob o mesmo teto e, assim, enquanto uns trabalham outros dormem. São casas, casebres, malocas em condições precárias de sobrevivência, pouco arejadas, sem luz, água, banheiro, saneamento.
Então questiona-se: como viabilizar o isolamento social àqueles que trabalham de dia para comer de noite? Como evitar a propagação do vírus sem condições mínimas para promover o distanciamento social?
Uma das medidas indispensáveis e necessárias para evitar o contágio desta e de muitas outras doenças é o ato de lavar as mãos. Contudo, como adotar tal comportamento se em determinadas comunidades o abastecimento de água é tão precário que as pessoas chegam a permanecer muitos dias sem fornecimento? Não há como realizar higiene pessoal nem manter adequadamente limpos os espaços.
Por outro lado, são mais de 7 milhões de sem teto e de pessoas em situação de rua a demonstrar que o que vemos hoje nada mais é do que resultado histórico de ações e omissões de todos. Fomos acostumados a viver em um mundo no qual uns possuem mais direitos à saúde, educação, habitação, à vida, que outros. Temos um sistema frágil que nos sustenta e que, colapsado, irá eliminar os vulneráveis.
Segundo dados do IBGE, já eram mais de 12 milhões de desempregados antes da pandemia e a crise que ela traz atingirá em cheio a base da pirâmide social. Serão mais pessoas que chegarão às linhas de pobreza e miséria, sem condições de subsistência e sem o devido suporte social para enfrentar esse momento de crise, vivendo o dilema entre morrer trabalhando ou morrer de fome.
Outrossim, será esse mesmo grupo social que fatalmente irá morrer em decorrência da covid19, seja pela infecção com o próprio vírus, seja por qualquer outra patologia que venha ser acometido nesse período, uma vez que o sistema de saúde – que normalmente já é precário e não atende a todos – não terá condições de atendê-lo pela falta de leitos, deixando-o à própria sorte e talvez a espera pelo fim da vida em sua residência.
Por óbvio, compreende-se quão difícil mensurar e lidar com todos impactos causados por essa pandemia, mas é certo que no Brasil o novo coronavírus matará para além da contaminação, tornando evidente o abismo de desigualdades existente em nosso país.
Em meio a esse horror que nos é imposto pelo distanciamento, temos a oportunidade de parar tudo, contemplar, observar e refletir sobre nossas existências.
O vírus nos isolou para que possamos preservar a espécie humana e reduzir os impactos produzidos por ele e por nossas condutas. Portanto, espera-se que ao percebermos nossa mortalidade, sejamos capazes de compreender que apenas com políticas solidárias, individuais e coletivas – e para a coletividade, eliminando privilégios –, tanto do Estado como da sociedade civil, podemos promover a emancipação de todos e assim a nós mesmos. Afinal, igualdade apenas existirá quando além de ser admirada como princípio, seja ela devidamente nomeada e adotada como prática cotidiana.
Na acepção da palavra quarentena significa o período de isolamento de um grupo de pessoas para evitar a propagação de uma doença. Passamos por uma quarentena coletiva e deseja-se que ela sirva para a proteção e cura dessa cegueira social que nos abate. Saibamos aproveitar esse período de isolamento para refletir e voltarmos com outras ideias, ideais e ações. Não podemos voltar à normalidade, porque até então ela nos desigualou. Devemos retornar melhores, para um novo mundo, cientes dos nossos acertos, erros e responsabilidades, corrigindo os rumos da vida humana neste planeta.
Chegou o tempo de entendermos definitivamente: não é apenas o vírus! Somos todos nós!
* Karen Luise Vilanova Batista de Souza, juíza de Direito do TJRS, é membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Artigo publicado na edição do dia 11 de abril de 2020 do jornal O Estado de S. Paulo.