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Cadeia Pública de Porto Alegre é resultado da atuação do Fórum da Questão Penitenciária

Cadeia Pública de Porto Alegre é resultado da atuação do Fórum da Questão Penitenciária

A Cadeia Pública de Porto Alegre, erguida no mesmo local do antigo Presídio Central, foi inaugurada na manhã desta quarta-feira (10/9) depois de uma ampla reforma estrutural. O ato contou com a presença do governador do Estado, Eduardo Leite, e de diversos líderes do setor da segurança pública do Estado. O novo estabelecimento penal passou por uma radical transformação: deixou de ser a pior estrutura carcerária do Brasil para dar lugar a um estabelecimento moderno e seguro.

A solenidade foi acompanhada pela diretora do Departamento de Direitos Humanos e Promoção da Cidadania da AJURIS, Rosana Garbin, e pela diretora da Escola da AJURIS, Clarissa Costa de Lima, e pelo vice-diretor, Daniel Neves Pereira. “A nova estrutura permite um cumprimento de pena dentro de condições de dignidade que se espera. O Fórum da Questão Penitenciária vai seguir atuante no acompanhamento do que foi entregue e sobre o futuro, se as promessas serão devidamente cumpridas”, disse a diretora do Departamento de Direitos Humanos da AJURIS.

A história dessa transformação começou em 10 de janeiro de 2013, quando o secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), Emilio Alvarez Icaza, recebeu um ofício do Fórum da Questão Penitenciária, liderado pela Associação dos Juízes do RS (AJURIS) e integrado por outras sete entidades, denunciando as péssimas condições humanitárias e estruturais do então Presídio Central. O Fórum havia sido formado no ano anterior, em 2012, agregando um grupo de entidades de diferentes áreas de atuação pública e privada alarmadas com a situação, que já havia sido alvo de denúncias junto aos governos do Estado e Federal, o que não surtiu efeito. 

O Fórum decidiu, então, buscar ajuda internacional, mobilizando a OEA. Junto com a AJURIS, integram o colegiado a Associação do Ministério Público do RS, a Associação dos Defensores Públicos do RS, o Conselho Regional de Medicina do RS, o Conselho da Comunidade para Assistência aos Apenados das Casas Prisionais Pertencentes às Jurisdições da Vara de Execuções Criminais e Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas de Porto Alegre, o Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia, o Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais e a Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero.

“As condições desumanas do Presídio Central sempre foram denunciadas pelos juízes gaúchos que agora se sentem participantes dessa nova fase agora da Cadeia Pública, que está dentro dos padrões humanos mínimos exigidos para receber quem cumpre pena. É um avanço civilizatório no sistema carcerário do Rio Grande do Sul”, disse o presidente da AJURIS, Cristiano Vilhalba Flores.

Duas informações citadas no documento de 104 páginas enviado à OEA sintetizavam as condições do Presídio Central. A capacidade era de 1.984 presos, mas, naquele momento, a ocupação era superior ao dobro da capacidade oficial: 4.591 presos. Quatro anos antes, em 2009, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário da Câmara dos Deputados já havia alertado, com muita ênfase, para o tamanho do problema. No relatório final, o Central é citado como “a masmorra do século 21” e é descrito como “o pior lugar visto pela CPI. Uma visão dantesca, grotesca, surreal, absurda e desumana. Um descaso! A visão é tenebrosa”, afirmou o documento.

O que os deputados viram, a CPI concluiu e a imprensa mostrava fartamente na época era um cenário que mais parecia o próprio inferno e que foi chamado, à época, de “o pior presídio da América do Sul”, com as mazelas repercutindo além do território brasileiro. Presos empilhados em celas semidestruídas, muitos com enfermidades graves e sem o devido atendimento médico, vivendo em meio a ruínas de uma estrutura física que já mostrava sinais de colapso. Nesse espaço, o Estado não entrava. As galerias (o conjunto das celas) eram comandadas pelos próprios presos, que impunham a lei da força no local, sem a interferência das autoridades. Sem a mínima condição de dignidade para cumprir a sua pena, restava ao detento se sujeitar a lei da selva, a lei do mais forte.

Decisão liminar: situação é grave e urgente

Quando fez a denúncia à OEA, o Fórum da Questão Penitenciária elencou uma série de pedidos para mudar a situação. Pediu a “adoção das medidas necessárias para que o Presídio Central de Porto Alegre obedeça aos padrões interamericanos de tratamento de pessoas privadas de liberdade, garantindo a vida, a integridade pessoal, o acesso à justiça, à saúde, ao bem-estar, à educação, à alimentação e ao tratamento humano aos detentos”. Também pediu a “gradual substituição da administração e pessoal militar do Presídio por administração e pessoal civil” (por uma questão de segurança, desde meados da década de 90 a unidade era administrada por policiais da Brigada Militar, e não pela equipe de agentes da Superintendência de Serviços Penitenciários, ligada ao governo do Estado). Um terceiro item era, ainda, mais impositivo: “Verificada, durante o procedimento, a impossibilidade das adequações necessárias em face das condições da construção ou no caso de não adoção das medidas necessárias em prazo razoável, observar a recomendação da CPI do Sistema Carcerário e desativar o Presídio Central”. Por fim, pediu a indenização adequada para as violações de direitos reconhecidas, nas dimensões material e moral.

A decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos saiu no penúltimo dia de 2013, por meio da Resolução 14/2013, uma liminar de sete páginas assinada pelo presidente do colegiado, Jesús Orozco, e demais integrantes. Encaminhada ao Governo Federal brasileiro (a OEA se relaciona apenas com governos nacionais), a situação é considerada de “gravidade e urgência” e as solicitações são divididas em cinco itens. Pede que a União adote “as medidas necessárias para salvaguardar a vida e a integridade dos pesos”, providencie “condições de higiene na área e proporcione o tratamento médico adequado, de acordo com as patologias presentes”, implemente “medidas para recuperar o controle da segurança do local, seguindo os preceitos internacionais dos direitos humanos para resguardar a vida e a integridade dos presos”, implemente “um plano de contingência para caso de incêndio, com as medidas necessárias” e, por fim, adote ações para “reduzir substancialmente a superlotação do local”.

Apesar da decisão da OEA, pouca coisa mudou no cenário nos anos seguintes. O Presídio Central continuou enfrentando superlotação, as condições humanitárias se degradaram ainda mais e as autoridades, mesmo com o uso da força militar da Brigada, não conseguiram manter o controle das galerias, amplamente comandada pelos presos. A junção dos fatores criou o ambiente perfeito para o surgimento de facções organizadas no recinto, que passaram a comandar o crime nas ruas do Rio Grande do Sul mesmo com suas lideranças atrás das grades.

Em 27 de novembro de 2019, o assunto esteve na pauta de uma audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em Washington. A pedido da comissária Antonia Noguera, responsável pelo processo, o Fórum da Questão Penitenciária foi convidado a participar da reunião para apresentar informações atualizadas da situação. O juiz de Direito Daniel Neves Pereira, hoje vice-diretor da Escola da Magistratura da AJURIS, representou o Fórum no encontro. O magistrado apresentou documentos e novas fotos do interior do local, além de um trecho do documentário Central, que trata do assunto e mostra o dia a dia dos presos que viviam na casa prisional.

As mudanças concretas só vieram em julho de 2022, com o início da obra de completa reestruturação do Presídio Central, já então chamado de Cadeia Pública. Depois de uma desativação das antigas celas, com a transferência de presos para outras unidades prisionais, os prédios das galerias começaram a ser destruídos. Deram lugar a nove módulos de convivência com 240 celas (para quatro ou seis pessoas), refeitório e pátio ao ar livre que vão receber no máximo 1.884 presos em prisão provisória (o local não será destinado aos presos já julgados e em cumprimento de pena). Também foram reformadas toda a área de serviços (enfermaria, reservatório, casas de bombas, lavanderia e cozinha), além da estrutura de segurança (torres de controle e corredores suspensos para que os agentes acompanhem a movimentação das celas por cima, sem contato físico com os detentos). Também a BM deixou o local, substituída por uma equipe de agentes penitenciários ligados ao Executivo. O investimento total do governo do Estado foi de R$ 139 milhões.

Ex-juiz de Execuções Penais, Sidinei Brzuska acompanhou a degradação do Presídio Central e denunciou as mazelas da estrutura, muitas vezes com fotos tiradas do interior do estabelecimento retratando as péssimas condições onde viviam os presos. “É importante que a gente não repita os erros que a gente cometeu lá atrás, quando da ocupação dessa nova unidade. Essa é uma unidade grande, é a maior do Estado. Por isso a gente tem que ter muito cuidado para que pequenos problemas não se tornem grandes. Então, o Estado tem que ser muito cuidadoso na ocupação dessa casa prisional e, sobretudo, na questão da saúde”, disse.

Leia aqui a representação feita à OEA pelo Fórum da Questão Penitenciária em 2013