20 jun Abuso de autoridade por juízes: a insensatez, por Orlando Faccini Neto
Há coisas que sucedem apenas no Brasil. No ensejo em que se levou ao Parlamento as “10 medidas de combate à corrupção” toda discussão sobre o seu conteúdo parecia adequada, e a sua aprovação ou rejeição inserir-se-ia dentro das regras do jogo. Deu-se, contudo, o inusitado. O projeto de lei foi inteiramente desfigurado pelo Legislativo e, coremos todos, seu objetivo de confrontar a ignomínia nacional, que é a corrupção, converteu-se numa tentativa de cercear juízes, tornando-os vulneráveis no exercício de suas funções diante de gigantescas organizações que vilipendiam o patrimônio do Estado.
Hoje, o projeto que pretendia combater a corrupção consagra capítulo próprio em que se criam “crimes de abuso de autoridade por parte de magistrados”. São descrições vagas, como, por exemplo, a de atuar de maneira destoante com o “decoro de suas funções”, as quais já integram o catálogo das normativas administrativas, regentes da atividade jurisdicional, e que movem a atuação dos órgãos de correição.
Mais grave é a pretensão de criminalizar a “violação de prerrogativas dos advogados”. Nenhuma carreira profissional há de se colocar como tutora das demais. A violação da prerrogativa dos médicos, dos dentistas, dos próprios juízes e de qualquer outro tipo de profissional não colhe ensanchas no Direito Penal, e almeja-se fazê-lo, todavia, em benefício da advocacia. Além disso, favorece-se um clima belicoso entre os atores do processo, sobretudo quando o projeto consagra estranhíssimo poder de requisição de inquéritos policiais em favor da OAB, em ordem a que, ao término de qualquer audiência, converta-se o juiz da causa em potencial investigado, submetido à atuação policial como se acusado fosse.
O momento político nacional ainda não fez baixar a temperatura do radicalismo; as instituições estão distantes do ponto de equilíbrio, e, por isso, o escopo de criminalizar a magistratura deve ser tomado com o mais absoluto repúdio. Não será a fragilização do Poder Judiciário, e de seus juízes, que dará seu contributo ao aperfeiçoamento da democracia. Ao contrário, a simples discussão do tema, em momento conturbado, é sinal de seu ocaso.
Orlando Faccini Neto é juiz de Direito, doutor em Direito Penal pela Universidade de Lisboa e vice-presidente da AJURIS. Artigo publicado no jornal Zero Hora, edição do dia 20 de junho de 2019.