23 out Seminário Direitos Sociais em Foco: a criação do Código de Defesa do Consumidor e os desafios para sua atualização
A primeira parte do Seminário Direitos Sociais Em Foco, ocorrida na noite da quinta-feira (22/10), reuniu magistrados e especialistas para discutir os 30 anos da criação de uma das mais importantes legislações de proteção ao cidadão no Brasil: o Código de Defesa do Consumidor (CDC). O seminário foi promovido pelo Departamento de Direitos Humanos e Promoção da Cidadania da AJURIS.
A abertura do evento foi feita pelo presidente da AJURIS, Orlando Faccini Neto, que destacou a preocupação da Associação em produzir e oferecer aos magistrados e à sociedade eventos que proporcionem momentos de reflexão durante a pandemia causada pelo coronavírus. Em seguida, a vice-presidente Social, Karen Rick Danilevicz Bertoncello, e o diretor do Núcleo de Direitos Humanos, Daniel Neves Pereira, fizeram a mediação das apresentações.
Primeiro a falar, o presidente do Tribunal de Justiça do RS, relembrou o cenário histórico que deu origem a proposta de criar o código. Lembrou que no final dos anos 70 e início dos anos 80, houve em diversos países uma discussão sobre os interesses difusos, assunto que chegou ao Brasil com o um “efervescente debate sobre a tutela dos novos direitos”. Voltaire considerou que toda a discussão ganhou forma na Lei 7.347, de julho de 1985, que considerou como um marco em termos de ação civil pública por disciplinar as ações nas áreas do consumidor, meio ambiente e outras. A partir de uma participação expressiva de juristas e magistrados paulistas, como Voltaire fez questão de frisar, o assunto passou a fazer parte das discussões no trabalho de elaboração da Constituição Federal de 1988, levando empresários da construção civil, de empresas de consórcios e dos supermercados fazerem um movimento forte por entenderem que suas áreas de negócios seriam as mais atingidas com a nova legislação.
Para contrapor a pressão econômica, líderes do judiciário se mobilizaram em todos os estados brasileiros reforçando a tese da importância da criação de uma legislação de proteção ao consumidor. “O Código buscou um equilíbrio entre a figura do consumidor e a figura do fornecedor. É um equilibro entre partes desiguais”, avaliou Voltaire. Entre suas inovações, na avaliação do magistrado, estão a definição do conceito de consumidor e de fornecedor, o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado, a inversão do ônus da prova e o princípio da vinculação publicitária, todos itens estipulados em diferentes artigos do CDC. “A cobrança de porta em porta, de homens de vermelho, prática que existia para expor ao ridículo o devedor, foi varrida pelo Código de Defesa do Consumidor”, disse Voltaire.
O evento continuou com a participação do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Paulo de Tarso Sanseverino. O ministro considerou que o CDC representa uma das leis mais modernas de proteção do consumidor no mundo, responsável por oxigenar todo o sistema de Direito brasileiro. Em sua análise das três décadas do Código, Sanseverino resgatou os primeiros passos da nova legislação e trouxe importantes decisões que marcaram a aplicação da lei dentro do STJ.
O ministro, contudo, foi enfático ao afirmar que ainda é preciso avançar. “Há uma necessidade, sem dúvida, de atualização do Código do Consumidor para as novas realidades da sociedade contemporânea. Todos nós somos agora consumidores digitais e precisamos de uma tutela cada vez maior da nossa privacidade”, destacou, enfatizando também a necessidade de um olhar maior para as questões envolvendo o superendividamento da população, especialmente nesse momento em que a pandemia causada pelo coronavírus impactou fortemente a vida financeira de toda a sociedade.
A terceira palestrante da noite, a professora de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Cláudia Lima Marques, que foi eleita pela comunidade acadêmica como a primeira mulher diretora da Faculdade de Direito da UFRGS, explicou que faria uma apresentação que considerou “da tradição do passado ao futuro do Código de Defesa do Consumidor”. Listou o que considera como os “cinco grandes momentos” do CDC: as definições de consumidor e fornecedor, inclusive com a previsão que os serviços valem tanto quanto os produtos; a teoria da qualidade, que garante a segurança de produtos e serviços a serem oferecidos, com previsão de reparação quando isso não acontece; a nova teoria contratual, baseada na boa-fé e na confiança; a transparência da informação, pois tudo o que está com o “expert” deve ser oferecido ao leigo de maneira clara; e, por fim, o que chamou de “diálogo das fontes”, que é proporcionado por leis temáticas transversais abrangendo diferentes segmentos.
Ao final de sua fala, a professora, no entanto, fez um alerta: apesar das conquistas do CDC, o Código precisa ser atualizado. “Hoje, 67,5% da população está com o nome sujo, e quase metade da população brasileira vive de ajuda social na pandemia. Então é preciso de um juiz e de um plano compulsório para trazer a pessoa de volta para melhorar a economia brasileira, e vamos precisar da magistratura brasileira nessa tarefa”, disse. O plano compulsório, na visão da professora, é o Projeto de Lei 3.515, que está para ser votado no Congresso Nacional e trata de dar melhores condições de negociações para as famílias brasileiras que estiverem endividadas.
Quarto palestrante da noite, o desembargador Cláudio Luís Martinewski, vice-presidente Administrativo da AJURIS e presidente da União Gaúcha em Defesa da Previdência Social, abordou os desafios da aplicação do CDC e a importância do olhar do magistrado a partir do prisma da dignidade do consumidor. Como exemplo, destacou a decisão dada em favor a uma mãe do interior do Rio Grande do Sul, cujo filho é portador do transtorno do espectro autista e apresentava a necessidade de atendimento especial tanto de saúde quanto de educação.
O caso envolvendo o inadimplemento das prestações do financiamento e a consequente penhora do veículo automotor da família teve como base o que, para Martinewski, deve ser tido como prioridade na operacionalização do Direito, sobretudo em relação aos vulneráveis: atuar pela dignidade da pessoa humana. “Enquanto julgadores, ela nos coloca em questionamento constante sobre a essência da nossa atividade jurisdicional, no confronto entre a literalidade do sistema normativo e a maior amplitude do Direito”, destacou, ao afirmar a importância desse olhar.
A primeira parte do seminário foi fechada por figuras da literatura brasileira. Vice-presidente Cultural da AJURIS, Márcia Kern revelou aos participantes que, como juíza, sempre tentou transformar as histórias dos seus processos em literatura. “Pensar o Direito pela Literatura faz sentido. Por isso, a questão dos devedores tem a ver com o livro Os Ratos, de Dyonélio Machado. Li diversas vezes a obra, agora sobre a perspectiva do endividado”, afirmou a juíza
Márcia traçou um paralelo do romance, escrito em 1935, com o mundo real. A história relata 24 horas na vida de um devedor, o personagem Naziazeno Barbosa, um funcionário público. Ele percorre o mundo penoso de um devedor, com fome, cansado, inseguro, correndo atrás de um empréstimo. “Isso tudo está acontecendo agora. São 30 milhões de endividados com a mesma sensação do Naziazeno, sensações universais que ultrapassam o tempo”, disse a vice-presidente da AJURIS.