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Regime jurídico dos direitos fundamentais sociais na Constituição (parte 3), por Ingo Wolfgang Sarlet

Regime jurídico dos direitos fundamentais sociais na Constituição (parte 3), por Ingo Wolfgang Sarlet

Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 2 de setembro
na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur.

Na coluna anterior comentamos o sentido e alcance da aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais, com destaque para os direitos sociais, enfatizando que com isso não se está a sustentar uma lógica do “tudo ou nada”, no sentido de que direitos sociais, como em geral os direitos civis e políticos, não são direitos “absolutos”, no sentido de ilimitados e irrestringíveis, portanto, não podem ser manejados como direitos subjetivos a todo e qualquer tipo de prestação social. Dentre tais limites, assumem relevo os que guardam relação com a dimensão “prestacional” dos direitos sociais, o que será objeto justamente da presente coluna.

Com efeito, justamente pelo fato de os direitos sociais na sua condição (não exclusiva, dada a existência de uma dimensão negativa!) de direitos a prestações terem por objeto prestações estatais vinculadas diretamente à destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação de bens materiais, aponta-se, com propriedade, para sua dimensão economicamente relevante. Com isso, calha sublinhar, não se está a afirmar a “irrelevância econômica” dos demais direitos, designadamente os assim chamados direitos civis e políticos, pois não se desconhece (nem se desconsidera) a noção de que todos os direitos fundamentais são, de certo modo, sempre direitos positivos, no sentido de que também os direitos de liberdade e os direitos civis e políticos em geral exigem, para sua tutela e promoção, um conjunto de medidas positivas por parte do poder público e que sempre abrangem a alocação significativa de recursos materiais e humanos para sua proteção e efetivação de uma maneira geral, ademais de atraírem um conjunto de deveres de proteção estatais, que, por sua vez, também implicam um dever de atuação positiva.

Mas dado o enfoque da presente coluna (e das anteriores), voltado ao regime jurídico dos direitos sociais, é nesse sentido que ora estamos direcionando a discussão, ainda que em boa medida as considerações aqui tecidas possam ser também utilizadas quando se trata de prestações destinadas a viabilizar o exercício de outros direitos fundamentais.

Diretamente vinculada a tal característica dos direitos fundamentais sociais a prestações está, como já referido, a problemática da efetiva disponibilidade do seu objeto, isto é, se o destinatário da norma se encontra em condições de dispor da prestação reclamada (isto é, de prestar o que a norma lhe impõe seja prestado), encontrando-se, portanto, na dependência da real existência dos meios para cumprir com sua obrigação, assim como outras objeções, como a invocação dos princípios democrático e da separação de poderes, apenas para citar os mais frequentes.

Distinta (embora conexa) da disponibilidade efetiva dos recursos, ou seja, da possibilidade material de disposição, situa-se a problemática ligada à possibilidade jurídica de disposição, já que o Estado (assim como o destinatário em geral) também deve ter a capacidade jurídica, em outras palavras, o poder de dispor, sem o qual de nada lhe adiantam os recursos existentes. Encontramo-nos, portanto, diante de duas facetas diversas, porém intimamente entrelaçadas, que caracterizam os direitos fundamentais sociais a prestações. É justamente em virtude desses aspectos que se passou a sustentar a colocação dos direitos sociais a prestações sob o que se convencionou designar de uma “reserva do possível”, que, compreendida em sentido amplo, abrange mais do que a ausência de recursos materiais propriamente ditos indispensáveis à realização dos direitos na sua dimensão positiva.

Em síntese, retomando aqui nossa posição de há muito sustentada, é o caso de afirmar que a assim designada reserva do possível, especialmente se compreendida em sentido mais amplo, apresenta uma dimensão tríplice, que abrange a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais, representada pelo fenômeno da escassez; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos; c) a razoabilidade da prestação reclamada do cidadão em face do Estado, mas também da proporcionalidade do fornecimento de tal prestação quando em causa eventuais restrições a outros direitos fundamentais[1].

Importa frisar que todos os aspectos referidos guardam vínculo estreito entre si e com outros princípios constitucionais (por exemplo, os da igualdade, subsidiariedade, solidariedade e mesmo e cada vez mais o da sustentabilidade), exigindo, além disso, um equacionamento sistemático e constitucionalmente adequado, para que, na perspectiva de um dever de assegurar a máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais sociais (ainda que não consagrados propriamente como tais, pois em geral aos Estados incumbe, já por força dos tratados internacionais, dever de progressiva realização dos direitos sociais), possam servir não como barreira intransponível, mas inclusive como ferramental para a garantia também dos direitos sociais de cunho prestacional.

O que se pode afirmar, em apertada síntese, é que a objeção (ou noção) da reserva do possível constitui, em verdade (considerada toda a sua complexidade), espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, mas também poderá atuar, em determinadas circunstâncias, como garantia dos direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflito de direitos, quando se cuidar da invocação — desde que observados os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo existencial em relação a todos os direitos fundamentais — da indisponibilidade de recursos com o intuito de salvaguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental[2].

Nesse contexto, há quem sustente que, por estar em causa uma verdadeira opção quanto à afetação material dos recursos, também há de ser tomada uma decisão sobre a sua respectiva aplicação, que, por sua vez, depende da conjuntura socioeconômica global, partindo-se, neste sentido, da premissa de que a Constituição não oferece, ela mesma, os critérios para essa decisão, deixando-a a cargo dos órgãos políticos (de modo especial ao legislador) competentes para a definição das linhas gerais das políticas na esfera socioeconômica[3].

É justamente por essa razão que a realização dos direitos sociais na sua condição de direitos subjetivos a prestações — de acordo com oportuna e ainda atual lição de Gomes Canotilho — costuma ser encarada como sendo sempre também um autêntico problema em termos de competências constitucionais, pois, segundo averba o autor referido, “ao legislador compete, dentro das reservas orçamentais, dos planos econômicos e financeiros, das condições sociais e econômicas do país, garantir as prestações integradoras dos direitos sociais, econômicos e culturais”[4].

O problema que se coloca, do ponto de vista prático, é o de em que medida o Poder Judiciário poderá impor ao poder público uma prestação material quando com isso se estiver, de algum modo, esbarrando em um dos limites acima referidos.

Que aqui também se deverá superar uma lógica do “tudo ou nada” nos parece evidente já do ponto de vista do bom senso, mas ainda mais se levarmos minimamente em conta que os direitos fundamentais sociais correspondem, de acordo com a expressa vontade do constituinte, a normas jurídicas vinculativas e não meras proclamações de cunho programático.

Dito de outro modo, a exclusão do controle judicial certamente transformaria os direitos sociais em direitos legais e mesmo esses sem uma possibilidade mais forte de controle pelo Poder Judiciário, sempre ao argumento de que não há recursos ou que com isso se estaria a violar outros princípios e regras constitucionais e mesmo de cunho infraconstitucional, como costuma ser o caso da invocação da lei de responsabilidade fiscal, da lei de licitações, entre outras.

Na perspectiva de uma lógica refratária ao “tudo ou nada”, por sua vez, não se poderá também deixar de levar a sério as objeções e os correspondentes limites fáticos e jurídicos que gravitam em torno da assim chamada “reserva do possível”.

Não é à toa, portanto, que, na esteira da doutrina de Robert Alexy, se fala, por exemplo — e sem que aqui se firme posição conclusiva a respeito —, que também no caso dos direitos sociais não se poderá abrir mão de uma “reserva geral de ponderação” (que remete, por seu turno, aos problemas — abusos — no manejo da proporcionalidade), que incluiria até mesmo a assim chamada “reserva do possível”[5], e nem afasta, a depender das circunstâncias, uma “superação” da eficácia jurídica pela realidade, visto que em situações devidamente justificadas e justificáveis (como é o caso, por exemplo, de um estado de calamidade pública, onde a realocação provisória de recursos seja inevitável, ainda que com consequências gravosas sobre alguns direitos) a eficácia jurídica e aplicabilidade, ainda que preservadas neste plano, poderão esbarrar na ausência (maior ou menor) de exequibilidade.

Assim, verifica-se ser desarrazoada a corriqueira afirmação de que a invocação da reserva do possível equivale a mero entrave burocrático que não poderia ter o condão de obstaculizar o reconhecimento, pelo Poder Judiciário, de direitos subjetivos a prestações estatais e impor tais prestações de forma coercitiva ao poder público.

Mas, reitere-se, trilhar um caminho intermediário, entre o tudo ou nada, significa reconhecer o quase elementar: os direitos sociais, a exemplo dos demais direitos fundamentais, não são, especialmente quando considerados como direitos em sentido amplo, direitos absolutos, no sentido de insuscetíveis de limites e restrições.

O problema é, portanto, identificar qual o alcance legítimo, do ponto de vista constitucional, de tais limites, de modo que não se subtraia ao poder judiciário o seu mister de fazer prevalecer o núcleo essencial dos direitos sociais, em especial e pelo menos o seu conteúdo correspondente ao mínimo existencial, por mais que tal fórmula também mereça alguma reserva e seja carente de adequada compreensão, bem como levando em conta que não há necessária equivalência entre o mínimo existencial e o núcleo essencial dos direitos sociais, o que, contudo, aqui não será desenvolvido.

Nessa perspectiva, enunciamos aqui, na linha do que já defendemos desde a redação de nossa tese de doutorado sobre os direitos sociais (1996) e depois de modo mais desenvolvido já desde a primeira edição do nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais (1998), a importância de se traçar uma distinção entre as ações judiciais que apenas buscam seja prestado aquilo que já está previamente determinado pela legislação ordinária e que conste o elenco de obrigações previstas no sistema de políticas públicas, e eventuais demandas nas quais se busca pela via judiciária acessar prestações sociais deduzidas diretamente da constituição.

Trata-se, ao fim e ao cabo, daquilo que os alemães (o que também foi assumido em Portugal por Gomes Canotilho) designam de direitos derivados a prestações e direitos originários a prestações, sendo que, no primeiro caso, o que está em causa é o pleito de igual acesso ao sistema de prestações já concretizado pelo legislador e nas políticas públicas.

Nesse contexto, o que se advoga é que a intervenção judicial na esfera dos assim chamados direitos derivados deve ser mais forte e mesmo em princípio plena, pelo menos no que diz, comprovada a violação, ao reconhecimento das posições subjetivas, o que não quer dizer que não se possam colocar problemas de natureza fática e até mesmo jurídica prevalentes, mas que então demandam equacionamento na esfera da maior ou menor exequibilidade das decisões.

Mas mesmo no que diz com os direitos originários, diretamente deduzidos da constituição, a total exclusão da possibilidade de seu reconhecimento pelo Poder Judiciário, levaria a fazer tábula rasa do preceito da aplicabilidade imediata, porquanto colocaria os direitos sociais, na sua dimensão de direitos a prestações fáticas, na completa esfera de disposição do legislador, e, o que é pior, poderia implicar até mesmo a impossibilidade de sindicar atos administrativos ou a total omissão da administração pública.

Nessa senda, cabe destacar que, de acordo com o nosso ponto de vista (reconhecidamente polêmico), o Supremo Tribunal Federal e em geral os demais tribunais nacionais, tem obrado com acerto ao afirmarem que em caráter excepcional não se poderá deixar de reconhecer um direito subjetivo originário a prestações, especialmente quando em causa o mínimo existencial.

É claro, por outro lado, que aqui não se está a desconsiderar o quanto é possível e mesmo necessário questionar casos concretos nos quais eventualmente o Poder Judiciário tenha levado a efeito uma ponderação adequada de todos os fatores envolvidos, inclusive no que diz com uma necessária deferência aos demais atores estatais.

Tampouco se está aqui a questionar o fato de que a via judiciária é seguramente a menos apta a resolver os problemas vinculados ao déficit de cumprimento dos direitos sociais, da mesma forma como deve ser lançado um olhar crítico os critérios utilizados para dar suporte às decisões judiciais e mesmo o modo pelo qual o poder judiciário tem (ou não) mantido uma relação de diálogo com os demais atores estatais, de modo a minimizar o impacto da sua intervenção. Tais questões, contudo, deverão ser tematizadas em outra ocasião.


[1] Sobre tais dimensões da reserva do possível v. para maior desenvolvimento o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Uma Teoria dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional, 12ª Ed., Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2015.
[2] Cf. por todos, novamente o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, op. cit..
[3] Nesse sentido, posiciona-se José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Livraria Almedina, Coimbra, 1987, p. 200 e ss.
[4] Cf. José Joaquim Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra, 1982, p. 369.
[5] Cf. Jorge Reis Novais, Direitos Sociais, p. 89 e ss.

*Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Desembargador no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris).