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O Judiciário não deve ser a primeira solução, mas a última, defende Guinther Spode

O Judiciário não deve ser a primeira solução, mas a última, defende Guinther Spode

No Especial XI Congresso Estadual de Magistrados, o desembargador defende
uma mudança de cultura e destaca os métodos autocompositivos.
 

O desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS) e ex-presidente da AJURIS (1994/1995) Guinther Spode é o destaque desta semana do Especial XI Congresso Estadual de Magistrados. Em entrevista ao Departamento de Comunicação da AJURIS e transmitida pela Radioweb, o magistrado ressalta os principais desafios da Magistratura estadual, entre eles, o de ser mais efetivo.

Ouça o programa em

 

O magistrado também defende uma mudança de cultura na sociedade brasileira, no sentido de que não se leve ao Judiciário, imediatamente, qualquer litígio. “A Justiça deveria ser a última alternativa, quando todas as outras formas de tentativas de solução do conflito tivessem esgotadas”, salienta. Nesse sentido, o entrevistado se diz um entusiasta dos métodos autocompositivos como a mediação, a conciliação e a Justiça Restaurativa.

Spode explica, ainda, que muitas vezes o cumprimento das decisões judiciais esbarra em questões de ordem econômica. “Um exemplo típico é o caso dos Juizados Especiais em que os valores das causas são pequenos, mas mesmo assim há uma dificuldade muito grande das decisões serem efetivadas, cumpridas”, frisa.

O programa tem o objetivo de antecipar assuntos que estarão em pauta no Congresso promovido pela Associação e, com isso, estimular a apresentação de teses pelos magistrados.

A primeira edição internacional do Congresso será realizada de 24 e 26 de setembro, em Montevideo, capital do Uruguay. Informações sobre inscrição, transporte, programação e o regulamento estão disponíveis em AQUI

 

O tema do Congresso Estadual de Magistrados neste ano será Efetivar Direitos: o desafio da Magistratura. Na sua opinião, quais são os principais desafios da Magistratura Estadual atualmente? 

Em primeiro lugar, gostaria de cumprimentar a AJURIS pela escolha do tema. Acho que foi muito feliz porque abre um leque muito grande de assuntos, praticamente chamando todo o debate que existe hoje a respeito dos problemas que o Judiciário e a própria Magistratura enfrentam. Os grandes desafios da Magistratura hoje se misturam ou estão muito ligados aos próprios desafios do Poder Judiciário. Um dos desafios da Magistratura, do meu ponto de vista, é não só efetivar os direitos, e isso de alguma forma está acontecendo em razão de todo o acesso à Justiça que existe, mas sim dar eficácia ao que se decide na Justiça. Nesse ponto, entramos na questão da crise do próprio Judiciário, porque no âmbito civil, por exemplo, muitas decisões têm dificuldade de serem executadas ou cumpridas por razões de ordem econômica. Um exemplo típico é caso dos Juizados Especiais em que os valores das causas são pequenos, mas mesmo assim há uma dificuldade muito grande das decisões serem efetivadas, cumpridas. No âmbito criminal, a dificuldade que existe para os julgadores é de, no momento que condenam alguém, ter um estabelecimento adequado para aquele tipo de pena que está sendo imposta ao condenado. E isso tem os mais variados efeitos, sob esse aspecto criminal. Por exemplo, uma pessoa condenada por um delito mais simples não deveria cumprir a pena no mesmo estabelecimento que uma outra que cometeu um crime grave. Isso, infelizmente, não é bem assim. Então, há questões de efetivar direitos que estão ligadas mais à eficácia, ao cumprimento efetivo do que se decide do que a própria consecução da Justiça, o atendimento daqueles direitos que são reclamados em juízo. 

E, na sua avaliação, quais são os caminhos para que o Judiciário seja mais efetivo? 

No que diz respeito ao volume excessivo de demandas, existe uma relação muito intima com as dificuldades do ponto de vista sócio-político-econômico. Tanto da criminalidade quanto do número de demandas cíveis. Por isso, nós temos de achar caminhos de como solucionar. E, nesse ponto, tem que se separar também os Judiciários, porque há a Justiça especializada, a federal, a trabalhista e a estadual. A estadual é a que pega a gama mais ampla, mais variada de demandas, a que está mais próxima do cidadão. Esta, se nós tomarmos o exemplo do Rio Grande do Sul, tem se mostrado muito eficiente no sentido de conseguir ter uma produtividade cada vez maior com os mesmos recursos, praticamente com o mesmo número de pessoas ou com pequenos acréscimos, tem conseguido aumentar a produtividade por servidor e por juiz. Todavia, o crescimento do número de demandas, ainda assim, tem sido maior do que esse aumento de produtividade. Então, nessa relação, se verifica que pelos meios até agora utilizados ou pela forma tradicional de se fazer Justiça não se consegue vencer. E é por isso que se está partindo, e eu sou muito favorável e um entusiasta, desses métodos autocompositivos, alternativas que devem ser utilizadas. Não que, por exemplo, a conciliação, a mediação, a Justiça Restaurativa vão substituir a Justiça convencional, a jurisdição convencional, mas vão auxiliar. E mais, está exatamente na linha daquilo que acho mais importante que ocorra: nós temos que mudar uma cultura no país no sentido que não se leve à Justiça tudo que em um primeiro momento signifique um conflito. A Justiça deveria ser a última alternativa, quando todas as outras formas de tentativas de solução do conflito tivessem esgotadas. Isso é uma questão lenta de se fazer, mas já começou entre os próprios operadores do Direito, nas universidades, uma mudança na formação para modificar a cultura de que não se deve simplesmente, para qualquer conflito, ingressar com um processo, abrir uma ação como se diz. “Ah, vai para a Justiça”. Essa não é a primeira solução, deve ser a última. 

O senhor acredita que na sociedade brasileira exista uma cultura do litígio? 

Penso que esse é um fenômeno talvez que diga respeito muito mais a nós do Rio Grande do Sul, que tem, disparado, o maior índice de litigiosidade do país. Então, esse é um fenômeno mais próximo de nós. O nosso Estado, e nós como gaúchos, temos menos moral para falar em uma mudança de cultura. Mas quem sabe exatamente por isso a gente esteja sentindo a necessidade de se mudar essa cultura. Isso não é uma questão cultural do Brasil como um todo, talvez seja até mesmo o reflexo de algo que não esteja bem do ponto de vista geral. Por quê? E vamos ser muito sinceros, hoje com a crise de credibilidade, de respeito em relação a toda estrutura do Poder Público são muito poucos órgãos que ainda têm o respeito e a credibilidade por parte da população e o Judiciário talvez seja aquele que ainda, e vou dizer ainda graças a Deus – e tomará que continue assim–, tem o respeito e a credibilidade da população. Talvez até mesmo por isso que cada vez mais o Judiciário seja procurado, por exemplo, foram criadas faz poucos anos as chamadas agências reguladoras que seriam um mecanismo interessante de evitar que os problemas que os cidadãos têm na área de telecomunicações, dos serviços públicos em geral ou concedidos pelo Poder Público, resultassem em um litígio judicial. Mas, infelizmente, elas não têm funcionado. E me parece que esse é o fenômeno detonador de um número cada vez maior de demandas. O cidadão, as empresas, não confiam que de outra forma as suas grandes questões serão resolvidas, se não na Justiça.  

A questão das agências reguladora é, de certa forma, uma síntese da ineficiência do Poder Executivo, que sobrecarrega o Judiciário? 

Eu acho que é um dos sintomas. Há “n” outros e, certamente, isso está sempre sendo abordado. A questão da saúde, por exemplo, dos medicamentos, é a face mais visível desse problema. E também não deve soar isso como um tom meramente acusatório de incompetência. O Poder Público, em geral, mas especialmente o dos municípios e dos estados tem uma carência, uma escassez muito grande de recursos. Então o que ele faz? Divide esses poucos recursos que tem entre todas as suas atividades. E, inevitavelmente, como não são suficientes, tem que optar entre utilizar os recursos em uma ou em outra área. Infelizmente, algumas áreas ficam completamente descobertas e tem sido mais visível hoje a área da saúde. Refletindo a respeito disso, é que coloquei como um dos ingredientes detonador do grande número de demandas o empobrecimento da população. Qual a razão da população buscar medicamentos e o atendimento a saúde, cobertura, despesas hospitalares e outras? Ela não tem recursos próprios para suportar esse tipo de despesas, por essa razão. Essa é a dura realidade do cidadão. Não tem como qualquer cidadão que não seja rico bancar o tratamento de uma doença séria ou uma hospitalização por muito tempo. Não tem condições. Nem mesmo as pessoas da classe média, porque os custos são elevadíssimos. 

E isso é uma peça na engrenagem que acaba sobrecarregando o Judiciário… 

Exatamente. O Poder Público, aí leia-se o Executivo, nesse caso, fecha a porta ou dificulta o acesso exatamente para que haja uma triagem e uma seleção mais rigorosa para que quem sabe os recursos sejam suficientes. Mas o que está acontecendo é que os recursos se mostram absolutamente insuficientes para o atendimento. Até mesmo quando há o comando judicial. 

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul é reconhecido como um dos mais eficientes do país. O senhor credita isso a quais fatores? 

Principalmente em razão da excelência do corpo de servidores e de magistrados. Aliás, da minha parte existe uma preocupação, porque não se sabe a essas alturas exatamente até aonde está havendo uma mudança do ponto de vista tanto da forma de atuar dos magistrados quanto dos servidores. Existem algumas verdades que são incontestáveis. O número de processos é absolutamente desumano para que os servidores e os magistrados deem conta das suas tarefas, em grande parte, talvez na maioria dos núcleos em que eles têm que trabalhar. Essa é uma realidade nova, tanto no 1º Grau quanto no 2º, mas especialmente no 1º Grau. E é uma realidade, por exemplo, na época em que eu estava no 1º Grau já de alguma forma se dizia existir, mas se nós olharmos os números hoje, aquilo que nós achávamos que era um volume extraordinário de processos para um juiz ou para um pequeno grupo de servidores resolver, hoje talvez as varas, as unidades, que têm o menor número de processos esse número seja igual ao que nós achávamos extremamente exagerados  

O senhor falou no começo da nossa conversa sobre os principais desafios do Poder Judiciário. Diante dessa realidade, como projeta o futuro do Judiciário nos próximos anos? 

Acho que uma das grandes questões é ser muito criativo, encontrar caminhos alternativos que ajudem a dividir essa carga. Afora, começar uma pregação no sentido de mudar a cultura do uso do Poder Judiciário. Por isso que esses métodos autocompositivos, do meu ponto de vista, são fundamentais, porque não resolvem só processos, resolvem o litígio. Quem lida no Direito tem a compreensão clara disso, mas quem sabe as pessoas de fora do Judiciário não tenham a exata noção disso. Por exemplo, uma briga de um vizinho com outro devido quem sabe a uma cerca, um muro que deveria estar alguns centímetros mais pra cá ou mais pra lá, isso demanda um processo, mas desse processo podem decorrer “n” outros. É um turbilhão de processos que podem derivar de um fato relativamente simples. Por isso que esses métodos autocompositivos conseguindo de alguma forma fazer que essas duas pessoas se convençam que cada uma delas cedendo um pouquinho estará resolvido aquilo que parecia o maior problema do mundo, se resolve um problema que se não se resolver dessa forma, com a boa vontade deles, nós teremos de um fato quem sabe cinco, dez processos. E, se nós multiplicarmos as pequenas questões que surgem na vida da comunidade, os processos se multiplicam. Então, quem sabe o grande filão de mudança está exatamente nesse ponto. Na Justiça Restaurativa, por exemplo, que procura, o nome já diz, restaurar uma situação que foi desarrumada e com isso evitar que uma série de pequenos litígios ou grandes litígios, às vezes até mortes, homicídios, aconteçam por causa de uma pequena intriga entre pessoas. Isso é uma solução a médio e longo prazo, mas  temos que começar a buscar esse tipo de solução. Afora isso também, há outras maneiras bem pontuais de se melhorar ou resolver o que hoje parece quase impossível, que é vencer o número de processos cada vez maior, porque não dá para ter a ilusão de que o Poder Público, assim considerado todos os agentes públicos, vai conseguir aumentar o valor destinado ao Judiciário para que ele cresça sempre mais para atender essa demanda que também cresce. A ideia é exatamente o contrário, é tentar encontrar uma maneira de evitar que o número de demandas cresça para que o Judiciário não continue tendo que ter a necessidade de crescer cada vez mais, porque vai se tornar um gigante inadministrável ou vai consumir tantos recursos que a própria sociedade vai começar a se questionar “Mas espera um pouquinho, isso não tem mais sentido, né?”. Então, nós temos que ser muito eficientes, e isso de alguma forma o nosso Poder Judiciário tem demonstrado que é possível fazer, com planejamento estratégico e outros planos, outros projetos, que não só são pensados, mas executados, se consegue e se tem conseguido, está comprovado com números, que o Judiciário tem diminuído a sua participação no orçamento do Estado e tem aumentado a sua produtividade. Isso é um ganho que se tem na gestão administrativa e financeira do Poder. Há outros mecanismos também, por exemplo, buscar consensos jurisprudenciais no sentido de que todos vejam melhor qual o rumo que a Justiça dá para decidir determinados assuntos. Esse também penso que foi um fator gerador de demandas, quando o cidadão observa, e os advogados observam antes e até mesmo estimulam eventualmente o ingresso de demandas, verificam que dependendo qual o momento ou qual o juiz, qual a Vara, ou qual a Câmara do Tribunal que vai determinado assunto a decisão pode ser favorável ou desfavorável. Quer dizer, sempre que se tem a possibilidade de algum ganho, se faz a tentativa, porque poderá haver o ganho. Agora, no momento em que se tem mais claro o rumo que a Justiça está dando para esses grandes assuntos que determinam a criação ou a existência de ações em grande número, às vezes, milhares ou até milhões de demandas, penso que isso contém um pouco esse avanço de demandas.

 

 

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