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Uma Constituição aberta a outros Direitos Fundamentais?, por Ingo Sarlet

Uma Constituição aberta a outros Direitos Fundamentais?, por Ingo Sarlet

Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Sarlet, publicado na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur nesta sexta-feira (13/3).

Que o Estado Constitucional e os direitos fundamentais, na condição de direitos reconhecidos e atribuídos às pessoas pelo constituinte histórico e dotados de um regime jurídico peculiar e reforçado, encontram-se inseridos num contexto mais amplo e complexo num mundo globalizado e marcado cada vez mais pelo fenômeno da internacionalização do Direito e dos Direitos, é algo que — nesse momento — não iremos discutir, mas que nem por isso deixa de ser atual e relevante para a problemática dos direitos fundamentais e de sua relação com os direitos humanos e mesmo com os direitos fundamentais consagrados em outras ordens jurídico-constitucionais.  Importa, por ora, sublinhar que o Brasil assumiu (pelo menos no que diz com o texto constitucional) a condição de um Estado do tipo aberto e cooperativo, incluindo entre os seus princípios fundamentais a prevalência dos direitos humanos, a igualdade entre os Estados, a cooperação entre os povos, além de adotar como objetivo a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, tudo conforme disposto no artigo 4º da Constituição Federal de 1988.

Que o conceito de direitos fundamentais da CF não se limita a um conceito formal, abraçando uma dimensão material, também já foi devidamente sinalizado nas colunas anteriores. Uma das faces de tal dimensão material é precisamente representada pela assim chamada abertura material do catálogo de direitos fundamentais, consagrada expressamente pelo artigo 5º, § 2º, da CF, dispondo que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Corretamente batizado de uma cláusula inclusiva, que repudia a ideia de uma exaustividade (ou taxatividade) do catálogo constitucional de direitos, o referido dispositivo constitucional segue desafiando doutrina e jurisprudência, especialmente quanto a sua real abrangência e significado.

Numa primeira mirada, mantendo aqui o entendimento que de há muito advogamos (ver o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 12ª ed., Livraria do Advogado Editora), percebe-se que, na perspectiva da mencionada cláusula de abertura, existem dois grandes “grupos” de direitos fundamentais na ordem constitucional interna brasileira, os direitos expressamente positivados e os direitos implicitamente positivados, como tais considerados os que não encontram referência direta no texto constitucional, de tal sorte que também o conceito material de direitos fundamentais é um conceito de direito constitucional positivo.

Dada a importância teórica e prática da matéria, vamos nos fixar em primeiro plano nos direitos expressamente positivados, inclusive pelo fato de que já aqui são diversas as questões a serem discutidas. A própria indagação formulada nos comentários à coluna anterior, sobre a condição de direito fundamental da garantia da inimputabilidade penal dos menores de dezoito anos de idade (artigo 228 da CF), se insere nesse contexto.

Para assegurar um mínimo de clareza convém distinguir, na seara dos direitos “expressamente positivados”, três situações: a) os direitos previstos no Título II da CF, em relação aos quais o constituinte desde logo assegurou a condição de direitos fundamentais; b) os direitos dispersos ao longo do texto constitucional, como poderia ser o caso da garantia prevista no citado artigo 228; c) os direitos expressamente enunciados nos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Que não se trata de situações idênticas parece elementar. Com efeito, no concernente aos direitos previstos no Título II da CF segue controverso se tais direitos são de fato todos fundamentais (pois há quem conteste tal condição) e, mesmo em isso sendo admitido, polêmico se o regime jurídico de tais direitos é exatamente o mesmo, o que pode ser ilustrado pela discussão em torno da condição de “cláusulas pétreas” de todos ou de apenas parte dos direitos fundamentais, o que aqui, contudo, não se pretende desenvolver nessa coluna.

No caso de direitos eventualmente consagrados (expressamente) em outras partes do texto constitucional os problemas são em parte distintos, pois, à falta de decisão prévia e expressa do constituinte sobre a condição de direito fundamental, é preciso identificar se determinada norma atributiva de um direito ou enunciadora de garantia é, ou não, também uma norma de direito fundamental. A afirmação da fundamentalidade de um direito, portanto, carece aqui de uma especial justificação, que, por sua vez, deverá guardar sintonia com os critérios materiais fornecidos pela própria ordem constitucional, razão pela qual nesse contexto não se pode dispensar um conceito material de direitos fundamentais. Por tal razão, afirmar se a garantia da inimputabilidade penal até os 18 anos completos (o mesmo se poderia dizer em relação à proteção do meio ambiente, da motivação das decisões judiciais, da igualdade dos filhos e dos cônjuges, dentre tantos outros exemplos) é, ou não, um direito-garantia fundamental, demanda um exercício de justificação constitucionalmente adequada, sobre o que ainda teremos ocasião de nos pronunciar.

Mas ainda temos um terceiro bloco de direitos a ser devidamente inserido na análise, qual seja, o dos direitos consagrados nos tratados internacionais de direitos humanos. Também aqui existem peculiaridades a serem consideradas, especialmente no tocante ao procedimento de internalização de tais tratados e quanto ao valor jurídico dos direitos neles previstos na ordem jurídica interna, o que se torna particularmente relevante nos casos de eventual conflito entre a constituição ou mesmo a normativa infraconstitucional e o disposto no tratado ratificado pelo Brasil.

Já os direitos implícitos ou implicitamente positivados abrangem todas as posições jurídicas fundamentais não direta e explicitamente consagradas pelo texto constitucional, mas que podem ser deduzidos de um ou mais direitos (e mesmo princípios) expressamente consagrados, em geral mediante a reconstrução (ampliação) hermenêutica do âmbito de proteção de um determinado direito, como é o caso, entre outros, do sigilo fiscal e bancário, que tem sido deduzido do direito à privacidade.

O leque de opções que se oferece, é, portanto, de uma riqueza e complexidade significativas e demanda uma análise detida. A opção do constituinte pela abertura do catálogo constitucional de direitos, contudo, também remete a alguns questionamentos, com maior ou menor repercussão prática, o que em parte já se vislumbra com base e a partir das considerações já tecidas.

Além disso, o tema guarda conexão com o assim chamado “ativismo judicial”, pois em parte estamos nos movendo na esfera de uma “criação” de direitos fundamentais pelo Poder Judiciário, seja quando atribui tal condição a direitos constantes do texto constitucional, mas que não foram com tais assim consagrados pelo constituinte, mas também quando, no domínio dos direitos implícitos, reconhece posições fundamentais que sequer encontram correspondência direta no texto da constituição, debate, aliás, que marcou profundamente a doutrina e mesmo a jurisprudência constitucional norte-americana no que diz com as discussões em torno do alcance e significado da IX Emenda.

Mas vamos centrar-nos, nesta coluna, nos direitos dispersos pelo texto constitucional, ou seja, naqueles casos em que é possível justificar a condição de direito fundamental a direito como tal não previamente gravado pelo constituinte, ou seja, direito não expressa (ou implicitamente) positivado no contexto do Título II da CF.

Numa primeira mirada, é preciso atentar para o fato de que se há de buscar na própria constituição os critérios materiais para tal reconhecimento, não sendo à toa que o já citado artigo 5º, § 2º, da CF, tenha feito referência a direitos decorrentes do regime e dos princípios da constituição. Também aqui já se deduz que o princípio da dignidade da pessoa humana pode até assumir a condição de principal critério, mas não exclusivo, até mesmo pelo fato de que nem todos os direitos fundamentais apresentam um fundamento direto ou mesmo um conteúdo em dignidade. Mesmo se assim fosse, a dignidade não necessariamente seria o fundamento exclusivo da fundamentalidade de um direito.

Além disso, em diversos casos a justificação da fundamentalidade de um direito pode ser demonstrada mediante a demonstração de que se não houvesse previsão expressa no texto constitucional ainda assim se poderia justificar a existência de um direito implicitamente positivado. Em caráter ilustrativo, cita-se o direito-garantia de motivação das decisões judiciais, que já pode ser deduzido do direito-garantia do contraditório e mesmo da ampla defesa, já que sem motivação das decisões dificilmente se poderá viabilizar o contraditório e a defesa. No caso, o dever de motivação é mesmo pressuposto e condição de exercício do contraditório. A igualdade dos cônjuges e dos filhos não precisaria constar do texto constitucional e ainda assim estaríamos diante de direitos fundamentais, pois já do direito geral de igualdade se poderia deduzir tais posições jurídicas, que, ao fim e ao cabo, correspondem a cláusulas especiais de igualdade.

O STF igualmente tem decidido nessa linha, sufragando a noção de abertura do catálogo constitucional de direitos, como o fez no caso da regra da anualidade tributária, do direito de greve dos servidores públicos, do direito (dever) de proteção ambiental, entre outros.

Mas também aqui grassa a controvérsia, como se dá no caso da inimputabilidade penal dos menores de 18 anos. Razões favoráveis e contrárias tanto à condição de direito-garantia fundamental quanto em prol ou contra a redução da idade penal propriamente dita ocupam os foros acadêmicos, políticos, midiáticos e forenses, razões que nem sempre são coincidentes, pois é possível negar a condição de direito fundamental e simultaneamente ser contrário à redução da idade quanto é possível advogar o ponto de vista contrário, de tal sorte que mais cedo ou mais tarde deverá o STF vir a decidir sobre o ponto de modo vinculante.

Se a existência de uma idade penal mínima como tal faz sentido e pode ser justificada com relativa facilidade, a blindagem reforçada (por via das “cláusulas pétreas”) como garantia fundamental de que uma determinada idade penal (no caso, 18 anos) não pode ser ajustada ao longo do tempo, já se revela de mais delicada, para não dizer onerosa, quanto à sua fundamentação com base nos critérios materiais da constituição.

Isso, por outro lado, quer dizer que mesmo quando não reconhecida a fundamentalidade de determinado direito, se possa permitir a redução da idade penal nessa quadra de nossa evolução jurídico-constitucional, até mesmo pelo fato de existirem outros critérios (exigências) a serem atendidas, especialmente os da proporcionalidade. Dito de outro modo, impende sondar a existência de outros meios para atender os anseios de quem pugna pela alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente do que mediante o recurso a uma reforma constitucional.

Por outro lado, especialmente na esfera dos direitos implícitos é que se percebe o quanto a reconstrução permanente do catálogo constitucional de direitos desnuda o caráter histórico-relativo dos direitos fundamentais (Bobbio), além de induzir um processo de diálogo institucional e fortalecer a ideia de uma sociedade aberta dos intérpretes da constituição. Na próxima coluna iremos tematizar especificamente o problema da relação entre tratados e a ordem jurídico constitucional, de tal sorte que por ora renunciamos a maior desenvolvimento.

Ingo Wolfgang Sarlet é juiz de Direito e professor titular da PUC-RS.