15 maio A conveniência e a necessidade de uma Constituinte exclusiva, por Ingo Wolfgang Sarlet
Artigo de autoria do juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet, publicado no dia 5 de maio na coluna Direitos Fundamentais da revista eletrônica ConJur
Desde que promulgada, já se vão quase 30 anos, a nossa Constituição Federal, de 5/10/1988, foi objeto de 95 emendas aprovadas pelo procedimento ordinário do artigo 60, da CF, bem como de seis emendas constitucionais de revisão, totalizando 101 emendas ao longo de sua trajetória existencial. Atualmente, diversos projetos de emendas constitucionais (PEC) encontram-se tramitando no Congresso Nacional apenas no que diz respeito às reformas propostas pelo atual governo federal, várias delas impondo restrições a diversos direitos fundamentais, em especial os direitos sociais básicos e os direitos dos trabalhadores, isso sem falar nos projetos de lei e na legislação já aprovada, como no caso da terceirização.
Sobre tal ímpeto reformador, já tivemos oportunidade de nos pronunciar em colunas anteriores e mesmo apontar possível violação dos limites postos pelas assim chamadas cláusulas pétreas da CF e no âmbito de uma proibição de retrocesso social, o que não será o foco desta breve análise.
O que aqui se pretende sublinhar, num primeiro momento, é o fato de que, até o presente momento, o frenesi reformador praticamente deixou — e isso é algo a comemorar — intacto o núcleo estruturante e fundamental da CF, designadamente, os títulos dos princípios e dos direitos e garantias fundamentais. Aliás, não só nenhum direito foi suprimido (eventualmente e de modo isolado, apenas limitado, como no caso das reformas previdenciárias), como diversos direitos e garantias foram agregados ao texto constitucional mediante diversas emendas constitucionais.
Foi o caso dos direitos à moradia, alimentação e transporte, inseridos no elenco dos direitos sociais básicos do artigo 6º, CF, bem como do direito-garantia à razoável duração dos processos judiciais e administrativos.
Além disso, o poder de reforma constitucional contribuiu para reforçar o status normativo dos tratados internacionais de direitos humanos no meio doméstico, ao inserir um parágrafo 3º no artigo 5º, CF, dispondo que os tratados de direitos humanos aprovados em dois turnos de votação, nas duas casas do Congresso, por maioria de 3/5, serão tidos como equivalentes às emendas constitucionais.
Assim, em termos gerais, até o momento a regra foi — no domínio dos princípios fundamentais e estruturantes e dos direitos fundamentais — consolidar e mesmo ampliar. O mesmo — importa destacar — se verifica no caso da jurisprudência do STF, que decidiu muito mais frequentemente e com maior ênfase na defesa dos direitos e garantais fundamentais, como no reforço do seu regime jurídico-constitucional, do que em sentido oposto. Da mesma forma, o STF reconheceu um número significativo de direitos implícitos, ademais de ter identificado direitos fundamentais dispersos no texto constitucional.
À vista do que foi aqui sumariamente exposto, percebe-se que os direitos fundamentais seguem sendo os grandes vencedores da nossa trajetória constitucional pós-1988, ao menos quanto à sua previsão formal no texto da CF, já que do ponto de vista de sua eficácia social, ou seja, de sua realização na vida concreta de cada um dos cidadãos brasileiros, os motivos de jubilo certamente são em muitos casos bem menores, se é que há, em alguns casos, motivo para algum júbilo. Mas isso não é também o nosso mote específico, ainda que com ele guarde relação.
Aliás, essa em parte paradoxalmente a razão — ao menos de acordo com a justificativa de seus protagonistas — para propor e buscar aprovar algumas reformas constitucionais apregoadas como urgentes e indispensáveis à própria sobrevivência do país. Dito de outro modo, limitar e mesmo suprimir direitos (em geral direitos sociais básicos da classe assalariada e direitos dos trabalhadores) para poder salvar esses mesmos direitos, mas sem que se estabeleça qualquer mecanismo compensatório e mesmo sem qualquer redução das imensas desigualdades em relação aos grandes interesses econômicos, em especial o setor financeiro.
Paralelamente — e em parte em conexão com o processo referido —, situa-se o clamor pela reforma política, igualmente cada vez mais forte, e que, por sua vez, depende, em parte, de modificações no texto constitucional.
Mas, como já adiantado, não se está aqui a elencar nem analisar em si o problema das reformas constitucionais em andamento.
O que se revela igualmente e até mesmo mais preocupante, na atual quadra do debate público e político (mas também no ambiente jurídico), é o fato de se apontar para a convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva como a saída mais adequada para esse momento de impasse político-institucional-econômico-jurídico-social. Aliás, tal discurso não é sequer recente, tomando ímpeto em diversos momentos desde a promulgação da CF, que, como costuma acontecer, mal entrou em vigor, já passou a ser contestada, inclusive por alguns que firmaram o texto original.
Outros, e não tão poucos, chegaram e chegam ao ponto de sugerir a convocação — por meio de plebiscito ou por outro modo — de uma miniconstituinte, para realizar uma revisão pontual do texto constitucional, como ocorreu entre alguns que pugnaram (pugnam) por uma reforma política, mas preservando o restante da constituição, ressalvado o processo ordinário de reforma constitucional por meio de emendas ao seu texto.
Que a opção por uma Assembleia Constituinte exclusiva pelo menos assume uma feição (ainda que aparentemente, a depender do autor da proposta) mais democrática, no sentido de um novo pacto fundante, levado a efeito por representantes distintos dos que ocupam os cargos eletivos no Congresso Nacional, não pode ser negado, e, ademais disso, soa até mesmo sedutor, pois indica mesmo um recomeço, ou seja, a possibilidade de uma nova institucionalidade, com renovada e fortalecida legitimação democrática.
Mas a pergunta que não quer calar e que já foi objeto de importantes comentários nos meios de comunicação (como o recente texto da lavra de Oscar Vilhena Vieira, facilmente acessível) é: afinal de contas, quem realmente quer uma nova Constituinte e para quê?
Dito de outro modo, por mais que o país esteja enfrentando um momento de crise, em diversos domínios e sentidos, dificilmente se poderá afirmar que uma Assembleia Constituinte, exclusiva ou não, seja algo que corresponda aos anseios da nossa população, cuja vontade, também nesse passo, terá de ser devidamente (?) interpretada e filtrada por integrantes da elite política, econômica e jurídica…
Pelo contrário, o que se observa — e a greve geral de sexta-feira passada (28/4) bem o demonstra — é que, em geral, a população deseja manter intacto o conjunto de direitos e garantias consagrados em 1988, ademais de ansiar por sua efetiva realização e proteção.
Reforma política, administrativa, tributária, previdenciária e mesmo outras que possam a ser efetivamente necessárias não dependeram até o momento (e lembre-se que já passam de uma centena) nem dependerão de um novo pacto constituinte, podendo ser levadas a efeito, quando realmente necessário, pela via regular das emendas constitucionais.
Além disso, culpar a Constituição pelas mazelas da economia e das desigualdades sociais nunca saiu de moda, mas também nunca se revelou suficientemente convincente como estratégia política. Da mesma forma, eventuais alterações no texto constitucional deverão ter por escopo aperfeiçoar o sistema no seu conjunto para dar efetividade aos princípios fundamentais estruturantes e aos direitos e garantias fundamentais, e não o oposto.
Sem prejuízo disso, o que vale para avaliar a conveniência e oportunidade de reformas constitucionais deverá valer ainda mais para justificar um novo pacto constituinte.
No caso de emendas constitucionais, a regra de ouro deveria ser (Hesse) de que, apenas quando não se puder realizar os ajustes efetivamente necessários pela via da legislação ordinária ou por meio da interpretação constitucional, emendas à constituição devem ser promovidas.
Ora, um novo pacto constituinte, fundante de uma nova ordem estatal e jurídica, é algo que deveria assumir um caráter excepcional, como em situações de grave ruptura institucional, como na transição de regimes autoritários (que negam o próprio Estado Constitucional Democrático de Direito) para uma fase de reconstrução da ordem democrática, ou mesmo processos revolucionários.
Os direitos fundamentais, inclusive e em especial o direito à democracia (entre nós, Bonavides é o principal patrono dessa ideia-força), são incompatíveis com qualquer movimento que, em especial pela sua desnecessidade, mas também pela sua inconveniência, possa, em virtude das paixões exacerbadas e da instabilidade vigente, levar à sua subversão mediante um novo pacto constituinte supostamente desejado pelo povo brasileiro.
O que, sim, deveria ser cogitado é que emendas constitucionais que impactem de modo tão direto direitos e conquistas da maior parte da população sejam amplamente debatidas na esfera pública, sendo depois submetidas à aprovação (referendo) pelo voto dos cidadãos brasileiros.
Mais do que convocar uma Constituinte, há que se convocar o povo brasileiro a exercer mais frequentemente e de modo efetivo o seu direito fundamental à participação política e de controle do processo político. Os direitos fundamentais e a democracia consagrados pela Constituinte de 1988 merecem essa oportunidade, e o Brasil deve apostar na estabilidade, e não na ruptura.
Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito da PUC-RS, desembargador no TJ-RS, doutor e pós-doutor em Direito.