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Seminário Direitos Sociais em Foco: a atuação e o valor do ECA em sua fase adulta

Seminário Direitos Sociais em Foco: a atuação e o valor do ECA em sua fase adulta

A segunda parte do Seminário Direitos Sociais em Foco, ocorrida na manhã desta sexta-feira (23/10), marcou o encontro de magistrados que viveram a criação e a afirmação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao longo de seus 30 anos, completados em 2020. O encontro foi promovido pelo Departamento de Direitos Humanos e Promoção da Cidadania da AJURIS.

A primeira parte do encontro foi marcado pelo tom emotivo das lembranças. Mediada pela ex-presidente da AJURIS e vice-presidente de Políticas Remuneratórias da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Vera Lúcia Deboni, a conversa resgatou fatos promovidos pela Caravana da Justiça, um movimento dos magistrados nos primórdios da criação do ECA.

As lembranças mais distantes surgiram na fala do desembargador aposentado Antônio Fernando do Amaral e Silva, ex-presidente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e um dos redatores do ECA, com uma longa trajetória na defesa do Direito da criança e do adolescente. Amaral lembrou que a semente foi plantada em 1979, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou o ano como sendo o da criança em todo mundo. No Brasil, nessa época, surgiu o novo Código de Menores. Com o crescimento da importância do assunto, o Ministério da Educação determinou que os cursos de Direito do país passassem a oferecer uma cadeira sobre o Direito do Menor, enquanto a ONU preparava uma convenção internacional para proteger crianças e adolescentes.

O magistrado lembrou que, convidado a dar aula na nova cadeira, passou a estudar o tema e percebeu que o então Código de Menores estava em desacordo com normas elementares seguidas pela Justiça, principalmente na parte que o menor enfrentava a lei. A solução veio por meio da mobilização de um grupo de magistrados, grande parte deles integrantes da Justiça de São Paulo, para incluir o assunto com uma legislação adequada na Constituição Federal que começava a ser elaborada em meados da década de 80. “Temos que estar atentos para o principal objetivo do ECA, que é reconhecer o adolescente como sujeito de direito e, por isso, também sujeito a deveres e obrigações, que só se processam por meio do processo castigo-recompensa. Não castigos degradantes, mas a imposição de limitações necessárias para a convivência humana. O Estatuto não é uma carta de alforria total”, afirmou.

As memórias dos 30 anos seguiram na fala do desembargador aposentado Marcel Esquivel Hoppe, que resgatou importantes momentos da consolidação do ECA no Rio Grande do Sul. O magistrado foi responsável pelas primeiras e mais importantes reestruturações do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, impactando toda a estrutura da jurisdição no Estado. “Após a criação do ECA, nós montamos uma equipe de estudos para pensar a nossa nova estrutura. E o que era um juizado único foi transformado em três. Mas nós precisávamos ir além, mais do que reduzir os processos, precisávamos agilizá-los. Foi quando criamos a Justiça Instantânea e passamos a julgar os casos no mesmo dia em que ocorriam”, destacou.

A Justiça Instantânea (JIN) é até hoje uma das principais inovações do Judiciário gaúcho e tem como objetivo garantir a agilidade nos processos de adolescentes apreendidos em flagrante, que, conduzidos ao Centro Integrado de Atendimento à Criança e ao Adolescente (Ciaca), são atendidos pelo Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (Deca), Defensoria Pública, Ministério Público e Judiciário, em regra, no mesmo dia. O projeto nasceu em 1996 por iniciativa do então juiz de Direito Marcel Hoppe, que identificou no Artigo 88 do ECA a necessidade de atendimento dos adolescentes infratores com todo o Sistema de Justiça reunido.

As lembranças da participação do Ministério Público na longa jornada de proteção à infância e à juventude foram apresentadas pelo procurador de Justiça aposentado Afonso Armando Konzen, hoje professor da Faculdade de Direito da Fundação do Ministério Público. Konzen lembrou do tempo em que foi curador de menores, então um grande benemérito da cidade por cuidar dos menores quase como com “uma jurisdição dos problemas sociais da cidade”, comparou. Agia de ofício para retirar os menores carentes da rua, atendendo a pedidos, mas sem um amparo jurídico melhor estruturado por trás de sua atuação. “O Estatuto chegou e mudou tudo isso. Descobri o ECA e ele me encantou, me apaixonei, e com o tempo tive a compreensão e o compromisso com o seu obedecimento”, disse, lembrando que fez parte da equipe que preparou o MP para começar a atuar dentro da nova legislação.

“Usar adequadamente em defesa dos direitos das pessoas os instrumentos criados pelo ECA: essa foi uma mudança de pensamento que, para ser compreendida e assimilada, precisa de tempo e ainda hoje não sei se já entendi essa situação. Hoje, somos mais defensores da sociedade do que dos menores, como era no tempo da curadoria dos menores”, afirmou, lembrando que considera como atual desafio aproximar o ECA das práticas da Justiça Restaurativa e fazer uma “releitura” do Estatuto.

O diretor do Núcleo de Promoção da Cidadania da AJURIS, Charles Maciel Bittencourt, foi o responsável por mediar a participação no debate de magistrados que hoje estão na linha de frente da aplicação do ECA em casos envolvendo menores. O primeiro a falar foi o juiz aposentado João Batista Costa Saraiva, que ressaltou o amadurecimento do Estatuto nesses 30 anos e fez questão de destacar a importância da agilidade da resposta na jurisdição da Infância e Juventude. “Nós, enquanto sistema de Justiça, ainda temos que encontrar mecanismos capazes de fazer a harmonia entre a necessária rapidez da solução dos conflitos e a segurança dessa decisão. Nós sabemos que o tempo de vida de uma criança é outro, ela não pode esperar, especialmente nos casos envolvendo a destituição do poder familiar”, pontuou.

Saraiva, que hoje atua como consultor em direito da criança e do adolescente, defendeu a necessidade de uma revisão da normativa regulatória de operacionalidade do atual sistema envolvendo os casos de adolescente em conflito com a lei. Para o magistrado, é preciso uma definição de tempos diferenciados em relação à privação de liberdade dos adolescentes, estabelecendo uma gradação possível entre tipos penais diversos. “Nós temos que trabalhar na perspectiva de que operamos no Estatuto da Criança e do Adolescente a partir de um avanço democrático que é o chamado Direito Penal de Fato, e não fazermos uma revivência de Direito Penal do Autor, onde as pessoas eram julgadas pelo que aparentemente seriam e não pelo que fizeram”, ressaltou.

Presidente da Associação Brasileira dos Magistrados da Infância e da Juventude (Abraminj), o desembargador José Antônio Daltoé Cezar voltou, em sua fala, ao início dos anos 90 para mostrar o quanto o ECA evoluiu. Naquela época, o magistrado criou o primeiro cadastro eletrônico para adoções de crianças no Brasil, por perceber que os processos, distribuídos em diferentes comarcas, ficavam nas mesas dos juízes e não se comunicavam, impedindo que crianças abandonadas em uma região ganhassem lares novos de forma mais rápida em outras regiões. “Antes do ECA, ninguém falava em crianças, mas a gente assume a magistratura e vê que criança também participa dos processos”, disse.

Outro importante avanço destacado pelo magistrado foi a criação do depoimento especial, também chamado de depoimento sem dano, quando a criança vítima de violência e maus-tratos é ouvida em um ambiente seguro e acolhedor. “Essa é a função do Poder Judiciário. Não somos despachantes. Cumprimos o ECA para melhorar a vida das pessoas. Hoje, 80% das vítimas de abuso sexual são crianças e adolescentes, com até 13 anos, e que são atendidas pelo depoimento especial, o depoimento sem dano. O ECA é uma das legislações mais qualificadas nessa área no mundo”, defendeu Daltoé.

Encerrando o resgate histórico de 30 anos do Estatuto, o desembargador Leoberto Brancher, que também é coordenador de formação em Justiça Restaurativa da Escola da AJURIS, relembrou o trabalho de estruturação do ECA no Rio Grande do Sul, realizado durante sua passagem como diretor do então Departamento de Cidadania da AJURIS na gestão 1994/1995. 

O projeto, que nasceu a partir da vivência jurisdicional de Brancher na Comarca de Dom Pedrito, na região da campanha gaúcha, percorreu todo o Estado com o objetivo de garantir a implantação efetiva do ECA. “Nós acabamos desenhando um modelo de mobilização voltado à arregimentação da sociedade civil que, inclusive, deveria participar dos conselhos, e que funcionou muito bem em Dom Pedrito. Nós, então, apresentamos para um grupo de instituições que abraçou a proposta, numa articulação visando levar o estatuto ao estado inteiro”, explicou. Com o projeto, foram realizados eventos regionais em todo o RS, incluindo a distribuição de um pacote de materiais, com projetos de lei, propostas de reorganização de estruturas, cartilhas sobre a nova legislação, além de palestras e reuniões para esclarecer dúvidas.

Por fim, também lembrou que um dos principais desafios daqueles que fazem parte do sistema de Justiça é saber reestruturar e aprimorar a atividade jurisdicional em consonância com as novas realidades. “É preciso que constantemente redesenhemos nossa estrutura institucional para que ela alcance aquilo que representa de mais essencial, a Justiça. Uma Justiça que prime mais pelos valores do que pelas leis, mais pelo humano do que pelas fórmulas dogmáticas”, disse. 

Ao final do encontro, realizado em ambiente virtual, a AJURIS homenageou os desembargadores Amaral e Hoppe com uma placa em bronze, destacando o fato de terem abertos os caminhos e transformados os sonhos em estradas para a nova geração de magistrados que atuam na área da proteção da infância e da juventude.

A íntegra do painel pode ser assistida no YouTube da AJURIS: