12 set Memória AJURIS 75 Anos: a desburocratização da Justiça
A foto acima é de um grupo de magistrados que se reuniu na década de 80 e começou a discutir a simplificação do trabalho da Justiça. Com o passar dos anos, outros magistrados foram aderindo ao movimento.
Quem admira a beleza natural e utiliza os espaços e a estrutura para a prática de esportes e para o convívio social da Sede Campestre da AJURIS, em Belém Novo, muitas vezes não imagina que a tranquilidade do local foi palco, há 36 anos, de uma revolução cultural no Judiciário brasileiro. Uma revolução ao estilo gaúcho, que começou às margens do Guaíba e ganhou o país: o movimento de racionalização da Justiça para facilitar a vida do cidadão que busca na magistratura a harmonia social.
Tudo começou em uma reunião na Sede Campestre da AJURIS, com o apoio do então juiz de Alçada Luiz Melíbio Uiraçaba Machado, onde se reuniram os juízes de Direito, atuando no primeiro grau de jurisdição, Diocles Gelatti, (coordenador e líder do grupo), Celso Santos Rodrigues, Durval da Fonseca Fraga, Norberto Barufaldi, Rui Portanova e Silvestre Jasson Ayres Torres, respectivamente, à época, magistrados das comarcas de Pelotas, Porto Alegre, Alegrete, Caxias do Sul, Novo Hamburgo e Soledade. Na oportunidade, os magistrados apresentaram ideias e sugestões para simplificar, racionalizar e descomplicar os procedimentos, tornando mais dinâmica a prestação jurisdicional.
Essa importante reunião ocorreu entre os dias 12 e 15 de setembro de 1983, quando o vento frio do inverno gaúcho ainda balançava as árvores da Sede Campestre e agitava as águas do Guaíba. A reunião surgiu de forma espontânea e deu origem à Comissão de Racionalização da AJURIS. O objetivo da conversa dos magistrados: simplificar o ritual das audiências e a formatação dos documentos usados pelos juízes para instruir e julgar os processos e, principalmente, simplificar o linguajar e termos com que as decisões, despachos e sentenças eram construídas e levadas ao público, abrangendo inclusive uma forma simplificada de modelos de editais, registros de audiências, despachos e decisões. Todos os documentos foram mais tarde oficializados pela Consolidação Normativa da Corregedoria-Geral de Justiça do RS.
Propostas iniciais surgiram no “Congressinho da Magistratura”
De registrar que a necessidade do encontro havia surgido alguns meses antes, julho de 1983, quando por ocasião do congresso em comemoração aos dez anos de vigência do Código de Processo Civil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o mesmo grupo aproveitou o momento para discutir um procedimento menos complicado no exercício da jurisdição e de desburocratização dos serviços judiciários. O encontro ficou conhecido como “Congressinho da Magistratura”. Ali foram expostas as ideias iniciais de desburocratizar o rito processual e de expandir o movimento para outros Estados da Federação.
Da reunião na Sede Campestre da AJURIS surgiu um pequeno caderno, com 18 páginas, com orientações básicas para dar o pontapé inicial de um processo cujo objetivo era modernizar a linguagem e o ritual jurídico e racionalizar o trabalho do Judiciário, evitando movimentos desnecessários do processo, com a dinamização dos despachos, atos ordinatórios, até a efetiva decisão. Mesmo vista com alguma desconfiança no âmbito dos Tribunais, que não se sensibilizaram com os pedidos de simplificação, o “caderninho” começou a cair no gosto de magistrados de outros estados, evoluiu para um manual de sugestões e virou mania nacional entre os juízes. A ideia nascida aqui no Rio Grande do Sul evoluiu para uma Comissão Interestadual de Racionalização dos Serviços Judiciários, com a participação também de magistrados do Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e depois, acabou amparada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), com adesão de magistrados de outros Estados.
Na mesma época, o governo federal havia criado o Ministério da Desburocratização com o mesmo objetivo: simplificar a vida do brasileiro e diminuir o número de documentos que cada cidadão precisava providenciar para fazer algum pedido ao governo. Em 1985, o então ministro da pasta, Paulo Lustosa, esteve em Porto Alegre e também se interessou pelo assunto encabeçado pelo grupo da AJURIS.
Com o crescimento do movimento em busca da racionalização da Justiça, um grupo de magistrado criou o slogan A Justiça Está Abrindo os Olhos, Venha Ver o Que Ela Descobriu e, em dezembro de 1985, foi organizado o I Encontro Nacional de Racionalização dos Serviços Judiciários, em Campo Grande (MS), depois de uma série de encontros interestaduais envolvendo dezenas de magistrados, onde a pauta da simplificação era discutida com veemência. Foi um sucesso: cerca de 2 mil juízes de 19 estados participaram da reunião em Campo Grande. O que era um caderninho virou, a partir do encontro nacional, o Manual da Racionalização da Justiça, patrocinado pelo Programa Nacional de Desburocratização do Governo Federal e posteriormente distribuído às associações de magistrados dos Estados.
O movimento de desburocratização teve um importante reforço na virada do século. No início dos anos 2000, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul criou o Conselho de Racionalização do Poder Judiciário por entender que a ideia nascida entre os juízes era meritória e faria bem para o trabalho jurisdicional. O desembargador Jasson, então presidindo esse conselho sugeriu e o Tribunal de Justiça nomeou juízes de Direito para atuar numa Comissão de Racionalização, junto ao Conselho, com o objetivo de sugerir melhorias nos trabalhos jurisdicionais de primeiro grau. Uma evolução efetiva integrando a magistratura de primeiro e segundo graus visando a racionalização dos serviços judiciais.
Juiz mandou tirar prateleiras e gavetas das mesas
O grupo que estava à frente do projeto defendia uma mudança cultural na prática jurisdicional, com um juiz mais comunicativo com a sociedade e mais celeridade em suas tarefas e, por consequência, mais próximo das necessidades de sua comunidade. Mas não foi tarefa fácil. Na presidência da AJURIS entre os anos de 1986 e 1987, o hoje desembargador aposentado Ivo Gabriel da Cunha entendeu ser importante valorizar a proposta da desburocratização. Assim, foi criado o Departamento de Estudos e Reformas da AJURIS, tendo sido seu primeiro diretor o então juiz de Direito Jasson Torres, com o objetivo de tratar da racionalização do trabalho do Judiciário. Integrante do grupo de magistrados com ideias visionárias para um efetivo acesso à Justiça e que se reuniu na Sede Campestre, Jasson lembra que havia muita resistência por conta dos colegas em adotar as medidas desburocratizantes, pois havia a sensação que simplificar os atos significava abrir mão de parte do poder de mandar no processo, esvaziando a autoridade do juiz. A luta pela causa foi tamanha que o juiz Melíbio lembra, em depoimento no livro AJURIS 60 Anos – O Fazer-se da Magistratura Gaúcha, que em determinado momento mandou tirar as prateleiras e as gavetas das mesas dos funcionários do cartório de sua vara para que não tivessem lugar para guardar papéis: queria mostrar que “o processo é um ente abstrato, é algo que você faz. Já os autos são arquivos de papel”.
Uma das queixas de partes envolvidas no processo judicial, que também precisaram se adaptar à nova cultura, eram quando recebiam documentos assinados apenas por funcionários do cartório com os dizeres “de ordem do juiz”. As partes (promotores, advogados, testemunhas e outros) criticavam, pois entendiam que só o magistrado devia assinar. Mas, aos poucos, a mentalidade foi mudando e a nova cultura sendo implantada nas varas, muitas vezes com rotinas autorizadas pelo próprio Conselho Superior da Magistratura. “Hoje não se admite mais uma instituição pública que não busque soluções visando a uma melhor prestação de serviço e, para tanto, deve auscultar as preocupações dos cidadãos, discutindo planos, viabilidades, caminhos que levem ao aperfeiçoamento e à eficiência, atendendo assim os interesses legítimos da sociedade. O Poder Judiciário tem essa responsabilidade com o jurisdicionado”, defende o desembargador Jasson em sua obra O Acesso à Justiça e Soluções Alternativas.
A luta desses magistrados que integraram o movimento pela racionalização dos serviços judiciários e que alcançou repercussão nacional e de tantos outros com efetiva atuação para um processo mais ágil e efetivo, atendendo os anseios dos jurisdicionados, não foi tarefa fácil. Mas, passados 36 anos de seu início, em um momento que a Justiça acelera ainda mais seus passos rumo à agilidade e o conforto do mundo digital, não há dúvida que valeu a pena.