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Instituições gaúchas e nacionais discutem violência estrutural em seminário

Instituições gaúchas e nacionais discutem violência estrutural em seminário

Um profundo debate sobre a violência estrutural e o sistema de Justiça promovido pelo Departamento de Direitos Humanos e Promoção da Cidadania da Associação dos Juízes do RS (AJURIS) reuniu nesta quarta-feira (17/5) autoridades gaúchas e nacionais em Porto Alegre. O evento, com apoio da Brigada Militar e da Escola da Magistratura, ouviu integrantes da cadeia profissional que estudam e atuam na área penal do país, como magistrados, defensores públicos, promotores de Justiça, policiais militares, professores universitários, líderes comunitários e secretários de Estado.

O seminário abordou temas como a violência em dados, a segurança pública, o racismo estrutural e o sistema de Justiça. Logo na abertura do evento, a secretária nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Isadora Brandão Araújo da Silva, destacou um dos pontos principais abordados durante as palestras: o país concentra a terceira maior população carcerária do mundo. “O Brasil possui um sistema prisional, como o Supremo Tribunal Federal já reconheceu, marcado pela violação sistemática dos direitos humanos, um estado de coisas inconstitucionais. Precisamos reconhecer como premissa nesta discussão que esse estado de coisas inconstitucionais produz um impacto desproporcional para pessoas negras, que fica evidenciado quando olhamos os dados desagregados por raça e cor da nossa população prisional”, afirmou.

O presidente da AJURIS, Cláudio Martinewski, enfatizou que a violência estrutural deve ser analisada em todos os lados para entendermos como ela surge, como ela se mantém e como ela impacta as camadas mais desprotegidas da população, que mais necessita do amparo do poder público. “Esse evento expressa a dimensão do tema tratado. O Departamento de Direitos Humanos e Cidadania da AJURIS esteve à frente da realização, planejamento e interlocução deste seminário, o que salienta o papel histórico da AJURIS de protagonizar as discussões sociais necessárias para que a sociedade se transforme e ofereça melhor cidadania a todos”, destacou.

Representando a Brigada Militar do Estado, o comandante-geral Cláudio dos Santos Feoli reforçou que a iniciativa oportuniza o debate e a reflexão sobre um tema extremamente relevante em uma sociedade democrática, como a brasileira. “A violência estrutural promove o sofrimento de milhares de pessoas submetidas a tratamentos desiguais e humilhantes nas diversas interações sociais”, disse.

Além de Isadora, Martinewski e Feoli, a mesa de abertura teve a participação do secretário de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do RS, Mateus Wesp, do secretário municipal de Desenvolvimento Social de Porto Alegre, Léo Voigt, da vice-presidente institucional da Associação das Defensoras e Defensores Públicos do RS, Maína Pech, da vice-presidente da Associação do Ministério Público do RS, Karine Camargo Teixeira, da juíza federal Cristina de Albuquerque Vieira, representando a Associação de Juízes Federais do RS, e da diretora da Escola da AJURIS, Patrícia Laydner.

Violência em dados: uma questão de perspectiva

 

A primeira palestra do seminário, mediada pelas juízas de Direito Priscila Gomes Palmeiro e Patrícia Laydner, teve como mote os dados do Relatório de Violência Policial, produzido em 2022 pelo Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do RS. Apresentado pela defensora pública Mariana Py Muniz, o estudo mostra um aumento de 41% no número de atendimentos envolvendo a violência policial. Ao longo de 2021, foram registrados 751 atendimentos, enquanto, em 2022, esse número subiu para 1.061. “A vítima muitas vezes não se percebe vítima por causa da questão da territorialidade. A socialização daquela pessoa em determinado local está vinculada a essa vivência de múltiplas violências”, analisou.

O professor da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS) Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, que também atua como membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, reforçou durante sua fala o papel dos agentes jurídicos e das instituições na contenção da violência. “É preciso rediscutir o papel dos agentes jurídicos na defesa da democracia e contra ameaças autoritárias. Se no contexto da ditadura militar foi possível apontar a falta de iniciativa do Poder Judiciário para a contenção do arbítrio, o mesmo não se pode dizer no período recente, no qual a ação foi vital para a preservação das regras do jogo democrático e sua efetividade”, disse.

A Polícia Militar de São Paulo também esteve representada no painel pelo major Rodrigo Vilardi, que compartilhou a experiência da instituição com a implementação de câmeras nos uniformes dos policiais. Segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, após a adoção da tecnologia a letalidade durante os serviços caiu 62,7% no Estado, passando de 697 mortes em 2019 para 260 em 2022. No entanto, Vilardi aponta desafios como a adequação à tecnologia e a produtividade policial. “Em alguns batalhões e unidades, temos dados demonstrando que se diminuiu a produtividade policial em 70%. No momento da implantação, fomos acompanhando e demonstramos que em batalhões onde não tínhamos câmeras, além da diferença em relação a produtividade, tínhamos impactos negativos com relação a indicadores criminais. Ou seja, a polícia trabalha menos e o crime aumenta. Isso não quer dizer que temos que abandonar as câmeras, é uma tecnologia que vem para que a gente aperfeiçoe”, afirmou o major.

O tenente-coronel comandante regional do Planalto da Brigada Militar do RS, Cilon Freitas da Silva, enfatizou a importância dos cuidados com a saúde mental para a atuação profissional dos policiais. “O termo violência policial traz um peso muito grande para a vida do policial, que são na sua maioria pessoas servidoras, dedicadas e honradas. Homens e mulheres trabalhando cotidianamente, que estão lá defendendo as pessoas em momentos críticos”.

Segurança pública: direito e responsabilidade de todos

 

As discussões do segundo painel, mediado pela magistrada Jocelaine Texeira, teve como um dos destaques a fala da líder comunitária da Associação dos Moradores da Grande Santa Rosa (de Porto Alegre), Maria de Fátima Cardoso do Rosário, que compartilhou sua vivência  com a violência estrutural sendo moradorade um bairro periférico. Segundo Maria de Fátima, existe um medo concreto nas comunidades, que prejudica o número de denúncias em relação ao abuso de poder. “Precisamos desenvolver uma política pública que ouça a periferia. Qual é o meio, que não seja uma delegacia, onde podemos falar sobre isso?”, questionou.

Alinhado à fala da líder comunitária, o ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares comentou que os números de violência estão relacionados à desigualdade da sociedade, que concentra uma maioria negra em ambientes vulneráveis, como as periferias. O professor do Departamento de Sociologia e dos Programas de Pós-graduação em Segurança Cidadã e Sociologia da Universidade Federal do RS (UFRGS) José Vicente Tavares dos Santos discutiu a microfísica da violência e suas simbologias. Um exemplo citado por ele foi a violência de gênero, que está vinculada a uma estrutura machista e patriarcal. “A violência física é sempre justificada por uma violência simbólica, um homem que mata uma mulher é porque ele tem um valor dentro de si que acredita ser de um gênero superior. Ou seja, há uma dimensão cultural nessa reprodução da violência”, analisou.

O painelista Vladimir Luís Silva da Rosa, coronel corregedor-geral da Brigada Militar, destacou que o policial, o juiz, o promotor e até mesmo o traficante são frutos do mesmo seio da sociedade, e o que os diferencia são as escolhas de vida que fazem. Durante sua fala, Silva da Rosa explicou as funções designadas pelo Estado como de responsabilidade da Brigada Militar, seja na área criminal ou administrativa. “O policial militar não é o problema, mas sim o ser que está utilizando aquela farda. O problema não é a estrutura, mas sim as pessoas que são parte da sociedade. E o problema não tem culpados, pois ele é público”, enfatizou em relação aos estereótipos ditos sobre a categoria. 

(Anti)racismo estrutural

 

A promotora de Justiça da Bahia Lívia Sant’Anna Vaz, considerada uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, iniciou a palestra (anti)racismo estrutural com uma passagem histórica sobre a relação de pessoas negras com a ordem jurídica brasileira. “Se estamos falando hoje sobre racismo estrutural é porque o direito, o sistema de Justiça e o Estado existem como eles são. É importante pensarmos que se o Estado, o direito e o sistema de Justiça não são fins de si mesmo, precisamos que eles sejam instrumento de emancipação de todas as pessoas”, criticou.

O palestrante Fernando Sodré, o primeiro homem negro a chefiar a Polícia Civil do RS em 181 anos de história, trouxe para o debate a discussão sobre seletividade penal, que não responsabiliza criminalmente as pessoas de formas iguais. “A sociedade não responsabiliza penalmente todas as pessoas da mesma forma. Isso significa que se selecionam ‘alvos’ que são mais criminalizados do que outros. Com mais de 300 anos de escravidão, não são dez anos de cotas raciais que vão fazer a transformação em um fenômeno estrutural e estruturante na sociedade”, pontuou.

O coronel-subchefe de Proteção e Defesa Civil do RS, Marcus Vinícius Gonçalves Oliveira, enfatizou que as instituições militares têm sido as que mais possibilitam acesso às carreiras para a diversidade. “Temos problemas de preconceito, racismo e discriminação? Sim, muitos. Mas há uma transformação muito grande”, disse.

A temática foi finalizada com a fala da advogada e conselheira estadual da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional RS (OAB/RS) Letícia Marques Padilha, que conclamou a importância de a luta antirracista ser abraçada por toda a sociedade. “Essa luta não é só nossa, as pessoas negras. É uma luta de toda a sociedade, eu tenho o sonho de ouvir o Estado brasileiro se desculpando pelos quase 400 anos de escravidão, como fez a Austrália”.

Sistema de Justiça: olhar com olhos de ver

 

O seminário promovido pela AJURIS foi finalizado com um painel que debateu o sistema de Justiça do país. A secretária nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Isadora Brandão Araújo da Silva, deu destaque para a atuação do Ministério sobre o tema. “Não há possibilidade de lidarmos com os problemas e as violências estruturais que são praticadas por meio do sistema de Justiça se nós não promovermos esse diálogo interinstitucional. Acredito que olhar com os olhos de ver nos convoca a refletir sobre as concepções de justiça que tem sido elaborada e que nos trouxeram até aqui”, disse.

O presidente do Tribunal de Justiça Militar do RS, desembargador Amilcar Fagundes Freitas Macedo, lembrou que a violência policial no Brasil faz parte de uma longa herança histórica que marcou as relações de opressão entre as elites, governantes e classes subalternas em uma sociedade culturalmente oligárquica, excludente, elitista e autoritária. “Tratar a violência policial nesse contexto, é falar de uma sociedade violenta e desigual na sua origem, onde a própria gênese da instituição se confunde com as práticas dos colonizadores e senhores de escravos”, explicou.

O último palestrante do evento foi o desembargador Jayme Weingartner Neto, que fechou a noite com uma discussão dividida em quatro pontos: o poder do medo, a sociedade de aparências, os problemas oculares e um olhar empático. “O nosso problema é quando nos olhamos e não nos enxergamos, ou seja, o espelho se torna estátua. A minha angústia é saber até que ponto as nossas instituições não se transformam diante das pessoas em estátuas, porque nós não conseguimos vencer a tendência burocrática impessoal de manejar dados, de enfrentar o volume e de fazer acontecer”, refletiu. O seminário foi finalizado com apontamentos da diretora do Departamento de Direitos Humanos da AJURIS, Karen Luise Vilanova Batista de Souza.

Acesse o seminário completo aqui.