fbpx

Cadeia Pública de Porto Alegre: obra de reestruturação humanitária é luta histórica da AJURIS

Cadeia Pública de Porto Alegre: obra de reestruturação humanitária é luta histórica da AJURIS

As fotos que ilustram esse texto são de autoria do juiz Sidinei Brzuska. Ao alto da página, uma imagem inédita da Galeria B esvaziada e pronta para receber a reestruturação anunciada pelo governo. No meio da página, o contraste: a ocupação do mesmo lugar durante os piores momentos de superlotação do Presídio Central (hoje Cadeia Pública), com os presos vivendo em péssimas condições sanitárias

Ao anunciar no último dia 28 a readequação nos módulos de vivência e na infraestrutura da Cadeia Pública de Porto Alegre (o antigo Presídio Central), o governo do Estado atendeu a uma antiga demanda da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS), que ao longo dos últimos dez anos se tornou uma questão fundamental para todas as gestões da Associação: a recuperação das condições estruturais e da dignidade humana do sistema penitenciário gaúcho e, especialmente, da Cadeia Pública.

Em 10 janeiro de 2013, a AJURIS e demais entidades gaúchas que formam o Fórum da Questão Penitenciária, instituído em 2012, alarmadas com a situação do então Presídio Central, ingressaram na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) com uma representação denunciando a violação dos direitos humanos no local, com pedido de medidas cautelares. Além da AJURIS, assinaram o documento a Associação do Ministério Público do RS, a Associação dos Defensores Públicos do RS, o Conselho Regional de Medicina do RS, o Conselho da Comunidade para Assistência aos Apenados das Casas Prisionais Pertencentes às Jurisdições da Vara de Execuções Criminais e Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas De Porto Alegre, o Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia, o Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais e a Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero.

O documento pede que a OEA recomende ao governo brasileiro “a adoção das medidas necessárias, dentre as quais, no mínimo, as postuladas como medidas cautelares, para que o Presídio Central de Porto Alegre obedeça aos padrões interamericanos de tratamento de pessoas privadas de liberdade, garantindo a vida, a integridade pessoal, o acesso à justiça, à saúde, ao bem-estar, à educação, à alimentação, e ao tratamento humano aos detentos do Presídio Central de Porto Alegre.” No final de 2013, em decisão liminar encaminhada ao governo do Brasil, a Comissão da OEA atendeu o pedido da AJURIS e demais entidades e solicitou que a União adotasse medidas necessárias para salvaguardar a vida dos presos e melhorar as condições de higiene e médicas oferecidas aos presos, além de recuperar a segurança em todas as áreas do presídio, que eram dominadas pelos presidiários. Na oportunidade, a Comissão da OEA considerou a casa prisional como a pior da América Latina pelo conjunto de irregularidades e desumanidades. 

Passados quase dez anos da notificação da União, pouco foi feito para melhorar a situação. Ao anunciar o início da reestruturação da Cadeia Pública (um investimento de R$ 116 milhões que será distribuído em seis fases durante um ano, que incluem a desocupação dos pavilhões, realocação de presos, construção dos novos módulos e plano de reocupação, com a administração passando para a Susepe, e não mais a Brigada Militar), o governo admitiu que a demanda atende o que foi determinado há quase uma década pela OEA, a pedido da AJURIS e das demais entidades parceiras, e se comprometeu com a transformação definitiva do local.

É possível construir uma linha de tempo da atuação da AJURIS na questão a partir do depoimento dos presidentes que atuaram na questão:

Pio Giovani Dresch (presidente de 2012-13, quando houve ingresso com a representação na OEA)

“O problema do sistema carcerário vem de uma vida inteira, pois cadeia sempre foi um lugar insalubre, um lugar de sofrimento. O movimento em torno da questão penitenciária articulou um número significativo de entidades de peso da sociedade civil, desaguando na representação à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Lembro que o então governador Tarso Genro reclamou da representação, por ter ocorrido em seu governo, embora o problema fosse antigo, mas enfatizamos que o movimento não era para desgastar um governo, porque tínhamos uma visão crítica da administração do sistema por uma sucessão de governos, que nunca deram a devida atenção à questão penitenciária. Passados dez anos, a questão continua em aberto e exige um enfrentamento permanente. Por isso, qualquer medida que venha para melhorar as condições do sistema penitenciário deve ser saudada como positiva.”

Eugênio Couto Terra (presidente de 2014-15)

“Não foi uma situação muito fácil. Lembro que tivemos uma audiência com a Secretaria de Segurança para tratar do assunto, pois havia pedido de informações da Corte da OEA e discutimos como seria a defesa do nosso pedido. As condições em que estavam os presos eram horríveis. O então presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, esteve em visita ao Presídio Central, no esforço que o CNJ fazia para acelerar a análise dos processos dos presos.”

Gilberto Schäfer (presidente de 2016-17 e que participou da confecção da peça encaminhada à OEA em 2013)

“Discutimos muito como colocar a questão prisional no debate, como um todo, e o Presídio Central em especial pela calamidade que vivia. O objetivo foi dar visibilidade para a questão, pois decisões judiciais de interdição não eram mais suficientes. O sistema não conseguia cumprir a sua função pela superlotação, pelo fato dos presos controlarem o presídio, a alimentação era inadequada, o poder do Estado reduzido, as revistas eram vexatórias. A recuperação do prédio é uma das questões, mas precisa haver investimento em ressocialização e recuperação dos presos, combatendo o ambiente de analfabetização e pobreza em que vivem as pessoas.”

Vera Lúcia Deboni (presidente de 2018-19)

“Na minha gestão buscamos reforçar a importância da denúncia e as ações tomadas pelos colegas. Em setembro de 2019, o colega Daniel Neves Pereira, que morava nos Estados Unidos, representou o Fórum da Questão Penitenciária em uma audiência convocada pela comissária Antônia Nogueira, responsável pelo processo na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em Washington, e mostrou que desde a denúncia inicial a situação do Presídio Central só havia piorado, não tendo sido adotada nenhuma medida efetiva para cessar a violação dos direitos humanos dos presos. Hoje é possível dizer que a notícia anunciada agora pelo Executivo demonstra que a AJURIS estava correta quando trouxe o debate para a sociedade e também quando capitaneou a organização de tantas entidades para denúncia à Corte.”

Orlando Faccini Neto (presidente de 2020-21)

“Contribui muito modestamente, apenas dando curso aos expedientes iniciados noutras gestões da AJURIS, e, agora, vejo com satisfação a conquista dos objetivos, com a virtual melhoria das condições no sistema carcerário.”

Cláudio Martinewski (presidente de 2022-23)

“Considero um dever civilizatório da AJURIS o envolvimento com a questão penitenciária, pauta que há dez anos mobiliza a atuação de todas as administrações da nossa Associação. Zelar pela civilidade do sistema prisional gaúcho é imperativo para interromper o ciclo de barbárie que elege a todos como vítimas. Esse foi o espírito que levou a AJURIS a ombrear com as demais entidades o pedido de intervenção da OEA. Como em outros momentos de uma história de 78 anos, a AJURIS expandiu sua atuação para além de sua missão de trabalhar pelas causas associativas por entender que tem o compromisso de defender a preservação dos direitos humanos e a dignidade da vida de todos.”

Um alerta em imagens

Juiz que atuou durante 23 anos na Vara de Execuções Criminais (VEC), Sidinei Brzuska é, provavelmente, o magistrado gaúcho que mais viveu de perto toda a história de precariedade estrutural e ambiente desumano do Presídio Central. Em diversos momentos ao longo desse período, fez manifestações de alerta sobre a situação e tornou pública imagens que mostraram a cruel realidade dos presos. As fotos viraram exposições públicas e foram usadas em vídeos e documentários sobre a precariedade da hoje Cadeia Pública. Em 2019, Brzuska deixou a VEC.

“Pela primeira vez na história conseguimos uma união de entidades civis respeitáveis em torno da causa penitenciária. O laudo que foi feito por engenheiros mostrou que a estrutura do Central estava falida, não tinha como recuperar. Uma análise dos médicos mostrou que a comida não tinha condição de ser servida. O filme sobre o poder das facções (o documentário Central – O Poder das Facções no Maior Presídio do Brasil, dos jornalistas Renato Dornelles e Tatiana Sager, produzido em 2017) levou a realidade para a sociedade. Mostra que se não for cuidado, o sistema gera mais violência. O alerta que fica é que o olhar de preocupação, observação e acompanhamento devem ser constantes, pois o sistema prisional está sempre em movimento. Os avanços e as melhoras são lentos, demorados, com muitos obstáculos a serem vencidos, já os retrocessos são rápidos, basta breves descuidos e se retrocede no tempo. Jamais poderemos relaxar.”